quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Crónicas do Vento Salgado


Aqui deixo um belíssimo conto, com a devida autorização da Autora, brilhante na sua intensidade:












terça-feira, 4 de Novembro de 2014



Crónicas do Vento Salgado







Ela chega sempre primeiro. Senta-se à mesma mesa, na mesma cadeira, repete com lentidão os mesmos gestos: despir o casaco, dobrá-lo cuidadosamente, pendurá-lo nas costas da cadeira, arranjar o cabelo com gestos indiferentes, abrir a carteira e tirar óculos e telemóvel... Depois liga-lhe e lê-lhe a ementa. Faz o pedido para os dois. E espera. Tem um olhar triste e envelhecido, a pele baça, as raízes do cabelo a precisar de retoque há muito tempo, o verniz das unhas estalado, em tons de ruína.


Ele chega dez minutos depois. Apressado, não a beija, não a olha, senta-se em silêncio e destapa a tigela da sopa que ela cobriu amorosamente com um prato para que não arrefecesse. Come com os olhos colados na televisão sem som, responde com monossílabos às perguntas que ela lhe faz. Engole a comida como se cumprisse uma obrigação e no fim, levanta-se e repete sempre a mesma pergunta: Pagas isto? Ela, a meio de uma garfada, confirma - Sim, vai lá à tua vida - e sente-se o estalar da indiferença com que ele lhe vira as costas e sai...


Ela não sabe quem eu sou, eu nunca a esquecerei. Eu era uma adolescente sentada na mesa de um café que já não existe, entre um grupo ruidoso de amigos... Na parte do restaurante, ela era a noiva mais bela que já vi. Tinha os negros cabelos soltos, caindo pelos ombros, enfeitados com flores naturais e um maravilhoso vestido branco bordado a pérolas... A saia era voluptuosa, vaporosa, como se ela caminhasse dentro de uma nuvem... Estava feliz e ria, ria muito... Dançou nos braços do marido e juro que flutuava, os olhos brilhando mais do que as pérolas do vestido... Foi a primeira noiva que vi tão de perto e desejei muito poder vir a ser uma noiva assim tão feliz, assim tão bela...


Quando ele sai, a noiva outrora feliz fica sozinha a terminar vagarosamente a refeição. Enquanto espera pelo café, não tira os olhos dos dedos que, em gestos repetitivos e ritmados, enrolam e desenrolam o guardanapo de papel onde se nota o borrão do batom cor de cereja que faz parecer mais pálido o seu tom de pele.


Eu saio antes dela. Deito-lhe um último olhar discretamente e percebo que se mantém cosida consigo própria, refém da solitária dança dos dedos e parece-me mais do que nunca, uma ilha perdida no meio do mar, uma flor murcha, tombada no vidro estilhaçado dos dias...


Às terças é mais triste o meu almoço no restaurante de sempre... Não sei bem se por causa da limpidez das minhas memórias, se por culpa da aspereza do presente...



Publicada por Anna à(s) 23:53 3 comentários:






Luís M.Castanheira disse...














Um belíssimo conto da paixão perdida e do amor que nunca o foi.




Como se fica prisineiro(a) aos sonhos duma vida, no quotidiano do dia, que passa para outro dia, sem futuro ou alegria.




A indiferença pelo outro, num hábito que se afunda, onde o tempo não perdoa.


5 de Novembro de 2014 às 20:22




Luís M.Castanheira disse...


Anna




O seu conto "Crónicas do Vento Salgado" esteve comigo desde que o li.

Por o achar tão belo, descritivo, profundo, e muito bem escrito no seu enredo sentido, gostaria de o publicar num dos meus blogs.




Para isso peço-lhe autorização para o postar, tendo que indicar, caso o consinta, se devo pôr o nome da Autora (Anna) mais o blog 'De Profundis', ou usa nome e apelido (mesmo pseudónimo)?




Publique, que tem (na minha modesta opinião - gostando eu muito de contos e biografias) muita qualidade e, como disse Fernando Pessoa, a prosa é uma expressão da literatura mais fiel ao que o autor quer efectivamente escrever. Deixa-lhe a total liberdade de escolher naquilo que sente e quer transmitir, podendo ser até poética - que é o caso.




Se a Anna fosse uma exploradora das Terras Africanas, do século XIX, seria"um Serpa Pinto", - nele havia paixão, sentimento,poder de observação e qualidade na comunicação -.




P.s. se quiser, não publique este comentário.




Com um grande Abraço


6 de Novembro de 2014 às 10:18



Anna disse...


Olá Luís :)




O que por aqui vou escrevendo são as minhas inquietudes, o meu olhar sobre os outros e o mundo... Sim, muitas vezes também espio os meus fantasmas, tiro os esqueletos do armário e sacudo-lhes o pó... Não há nisto nenhuma pretensão de publicação mas ainda bem que os meus textos tocam as emoções de quem me lê...

Agradeço profundamente os seus elogios, dos quais não me sinto merecedora... O texto é seu, pode levá-lo e publicá-lo no seu espaço, assim como está e com a assinatura que aqui uso. O facto de o Luís acreditar que o meu texto tem valor para pertencer ao seu espaço, honra-me muito :)Repito, é seu. Aceite-o como um presente que me doeu escrever e que por isso valorizo muito. Sabe, a pior ferida que podemos fazer a alguém é com a faca da nossa indiferença, do nosso desprezo... Foi isso que eu presenciei à mesa daquele restaurante.E incomodou-me. Inquietou-me. Muito.

Obrigada!




Deixo-lhe um abraço


6 de Novembro de 2014 às 13:45

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