terça-feira, 4 de novembro de 2014

Fernando Pessoa_A despedida de si

"O trabalho está feito. O martelo foi lançado. Saúdo todos os que me lerem, e deixo escrito neste livro a imagem do meu desígnio morto. Farewell, farewell for ever. Adeus para sempre, rainha das folhas. Deponho a pena, acabo a minha solitária peregrinação. A vida é um intervalo entre o que passou e o que passará, intervalo morto entre a Morte e a Morte. E eu vivi a vida inteira. Somos todos mortais, com uma duração justa, nunca maior ou menor. Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco na memória dos que os viram e amaram; outros ficam na memória de nação que os teve. Mas a todos cerca o abismo do tempo, que por fim os some.

Por que escrevo eu este livro? Eu escrevo este livro para mentir a mim próprio. Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso Fado. Tu, que me ouves e mal me escutas, não sabes o que é esta tragédia! Quem me dera que de mim ficasse uma frase, uma coisa dita de que se dissesse Bem feito! Mas ninguém consegue: Terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo; terás o repouso, porque ao terás a vida. Depois do depois virá o dia, mas será tarde, como sempre. De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra. E tenho saudades de mim.

What is fame after death? A life that's not a life, my dearest boy. Vêm memórias, com as suas saudades ou a sua esperança, e um sorriso de magia. Tudo quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso do que sou ou fui, tudo isso se perde de repente - o segredo, a verdade, a ventura talvez. Death - What is death? A morte é o triunfo da vida. Tudo morto, minha ama, tudo morto. Reza por mim. Sinto que este mesmo sol doira os campos onde não estou. Quanta, quanta solidão. Reza por mim, minha ama.

Cumpri. L'Heure est à Nous! Combattons! Amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um "o que será dele?" Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo de ânsia como um diamante possível. Céu vasto, céu azul, céu próximo do mistério dos anjos. Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos. O resto é com o Destino. O porvir...Sim, o porvir...Que por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto. E clareira pequena, ao longe, a primeira estrela.
FIM"

Texto, Fernando Pessoa


    

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