terça-feira, 27 de julho de 2021

primeira impressão...



"O QUE EU ANDO A LER

Ando preocupado com as coisas à primeira vista, não propriamente aquelas paixões e aqueles amores à primeira vista poeticamente emocionantes e exclusivamente literários, esses são geralmente inofensivos na nossa vida quando circunscritos à arte, mas preocupo-me com as outras coisas à primeira vista: as certezas à primeira vista, as desilusões à primeira vista, as desistências à primeira vista, os incómodos à primeira vista, as avaliações à primeira vista, as precipitações à primeira vista, os julgamentos à primeira vista e todos esses derivados comportamentais impressivos e tantas vezes excessivos, creio que tudo isso é certamente dissuasor e possivelmente destruidor de segundas oportunidades que devíamos dar às pessoas, o que é circunstancialmente ofensivo quando acontece na nossa vida - às vezes somos os ofendidos noutras os ofensores e por vezes somos isso nas ocasiões mais inofensivas: alguém novo no trabalho fala-nos de uma maneira que nós velhos nesse trabalho não gostamos e decidimos imediatamente que essa pessoa é arrogante, um desconhecido num jantar em que quase todos são conhecidos discute com mais extravagância e concluímos irremediavelmente que é intragável, alguém que admiramos por ter feito coisas admiráveis um dia reúne-se connosco e achamos que afinal é um palerma por nos ter feito sentir palermas nesse encontro, e é assim que às vezes se perdem coisas determinantes na vida por nos perdermos com os determinismos das conclusões à primeira vista: a pessoa nova no trabalho pode ser uma grande amizade desperdiçada, a pessoa do jantar uma grande relação desaproveitada e a pessoa da reunião uma grande mentoria menosprezada, é certo que há situações mais graves que estas e com danos maiores quando julgamos e sentenciamos à primeira impressão sem estarmos disponíveis para uma segunda oportunidade mas há também ofensores que são privilegiados porque são ofensores perdoados, é um grande ensinamento com ganhos únicos: houve um dia que me aconteceu há muitos dias mesmo, foi há tanto tempo que não me lembro dos detalhes mas só das consequências, nesse dia entrevistei uma pessoa que queria um estágio de jornalismo para cumprir o sonho que eu cumpro todos os dias, que é ter o privilégio e a responsabilidade de servir gente informando-a, recordo vagamente o nervosismo da pessoa e de ela me ter respondido o que eu queria à última pergunta que faço sempre nessas entrevistas, “sou um comandante dos bombeiros, há um incêndio atrás de mim, estou disponível para responder a todas as tuas perguntas: qual é a primeira que me fazes?”, meses depois a pessoa contou-me que me odiou por aquela entrevista em que acabámos a apagar incêndios e que o desdém por mim se manteve durante o estágio que a pessoa conquistou naquela entrevista em que ela me convenceu e eu a intimidei - às vezes os ofensores ofendem negligentemente e isso não é desculpa porque é pior que desculpa, é alheamento, logo uma forma de desrespeito, portanto: peço perdão, pessoa -, continuando: lembro-me ainda de ler um texto da pessoa sobre o Bowie no dia em que ele morreu e de ter ficado em silêncio, aquele silêncio-espanto, que texto tão certo, às vezes são os mortos que aproximam os vivos, não sei o que mudou dali em diante nem como mudou nem que tempo levou a mudar, até porque o jornalismo colocou-nos entretanto em rotinas quotidianas diferentes, mas um dia apercebo-me de que aquele ódio (termo violento, sei bem, mas o ódio tem escalas diferentes e por vezes é usado por questões de simplificação) dizia que aquele ódio da pessoa por mim transformou-se numa completa segunda oportunidade em que passámos a partilhar alegrias, tristezas, separações, uniões, altos, baixos, euforias, desalentos, triunfos, derrotas, canções, estrofes, livros, parágrafos, desabafos, confissões, discussões, ilusões, dúvidas, erros, acertos, conquistas, avanços, recuos, abraços, lágrimas, silêncios, jantares, almoços, debilidades, virtudes, ambiguidades, certezas, tudo mérito dela em benefício meu (e espero que em benefício dela também) porque aquela pessoa decidiu que as pessoas não são um só momento nem um só comportamento e que às vezes - se é que não todas as vezes - há que ter a coragem e até a fé de não se desistir do outro, perdoai-nos Senhor as ofensas à primeira vista e louvai-nos as insistências à segunda oportunidade, amém, e isto não é uma lição de moral mas somente uma ilação de alegria, a minha, lembrei-me da força desta amizade à segunda oportunidade porque comprei o “Sétimo Dia” do Daniel Faria, é um livro que vinha devidamente recomendado mas julguei-o à primeira vista - começo a folheá-lo e vejo pouco texto mas mesmo demasiado pouco por folha, a seguir conto várias páginas mas várias mesmo em branco, são 19 vazias, e decido que €15,50 é dinheiro a mais para tantas palavras a menos, depois vou ao prefácio e desisto dele à primeira vista porque pareceu-me um texto de um académico encantado com o autor em vez de um leitor encantado com o poeta, decido portanto fugir do prefácio e passo aos poemas, li-os num instante porque bastou-me entrar no comboio em Lisboa e ao passar Santarém já estavam todos lidos mas obviamente incompreendidos, sei bem que quaisquer poemas precisam de mais do que os 83 quilómetros da minha leitura para se entranharem mas já tinha o julgamento pré-feito tão mal feito, e quando cheguei ao Porto uma amiga-família que já me deu não duas mas 73 oportunidades diz-me que este é o livro do ano para ela e que eu tinha de dar uma nova oportunidade ao Daniel Faria, sorri, “oportunidade”, então fui reler o livro no comboio de volta e os 300 quilómetros do Porto até Lisboa não foram suficientes para chegar ao fim, li devagarinho com toda a devoção da segunda oportunidade e, sem saber exatamente como nem onde nem quando, deixei de ouvir o comboio sobre os carris e as conversas de domingo no Alfa porque senti silêncio, aquele silêncio-espanto, que livro tão certo, às vezes são os mortos que nos fazem sentir vivos, o Daniel Faria morreu aos 28 anos e sublinhei-lhe isto no “Sétimo Dia”:

“Pus o despertador a despertar de hora em hora. De hora em hora vejo a febre. Mantém-se estável. Amanhã levanto-me. De três em três horas telefono a um amigo diferente. Normalmente ninguém me atende. Às vezes deixo mensagem. Deixo a promessa de ligar de novo. Gosto muito de prometer”,

e também isto:

“Disseram-me que teriam de me cortar o braço e eu disse o que é que eu sou mais do que as videiras. Ainda não era Outono e as folhas começaram a cair.
Eu não sou das espécies persistentes. Eu baixo os braços mesmo quando não desisto.
Até os dias caem, as penas dos pássaros, as hastes dos veados. Pousei a cabeça em choro sobre o braço, como se a pousasse sobre o ombro de ninguém”,

e ainda isto:

“Bato à porta do teu quarto mesmo quando sei que não estás. Descobri agora quanto custa aos mendigos, não digo a fome, mas não haver ninguém”,

só mais isto:

“Estás com fome? Tenho aqui grãos de milho, não sei se te agrada. Posso pô-los ao lume e fazer pipocas num instante. Não sei se gostas de pipocas, mas sempre distrai um pouco. Além disso estou a ficar triste e o estoirar das pipocas pode dar-nos um ar mais festivo.
Este tacho comprei-o numa feira. Acreditava naquela altura que era um utensílio normal e necessário na casa de um homem solitário. É muito bom poder comer contigo.
É muito bom não ficar só à mesa. Na verdade a presença dos outros tem-me sustentado mais do que qualquer alimento. Quando um homem come sozinho é um aborrecimento esperar que a comida arrefeça, e quando arrefece já se perdeu a fome, para comer é mesmo preciso um certo esforço. Um homem que come sozinho devia era ter terror: se se engasga quem lhe baterá nas costas?”,

na verdade sublinhei as páginas quase todas porque a minha caneta prestou admiração a dezenas de frases do Daniel Faria, agora é o meu livro do ano também, e decidi logo o que fazer quando cheguei a Lisboa, tão simples tão óbvio tão urgente: comprar este livro de que desisti à primeira e a que já não resisti à segunda para oferecer à pessoa que resistiu à nossa primeira vista mas que não desistiu da nossa segunda oportunidade, os livros contam-nos as vidas de outros mas também nos lembram o que outros já nos deram na vida e como o deram (“Lia todos os livros como se fossem uma descrição da sua própria vida, vivia-os”, Peter Handke em “Um Adeus Mais-Que-Perfeito”), e entre a ida à livraria até ao momento em que lhe ofereci o “Sétimo Dia” entendi também para que servem as 19 páginas em branco do livro do Daniel Faria: escrevi nelas para explicar à pessoa com quem construí esta amizade-fortaleza que o comandante dos bombeiros que naquela entrevista de estágio queria que lhe perguntassem quantos feridos havia sente uma profunda gratidão por todos os que como ela não desistem dos que foram-estão-serão feridos pela solidão:

“É duro não ter ninguém que nos diga que deixamos um pouco da barba por desfazer. É duro não ter ninguém que nos tire um cisco do olho. Os olhos que estão sempre tão ameaçados. Por tudo o que se vê, pela ausência, pelo pó, pelo sono, pelos máximos do carro que nos aparece em frente, pelas próprias pestanas que nos defendem, pelo invisível, pela violência, pela nudez, pela beleza, pelo desastre, pela miopia. Sobretudo pela aparência. É preciso alguém que nos livre da ceguez”. Daniel Faria 1971-1999."


Germano Oliveira in "Expresso Curto",
de 27.Jul.2021