sexta-feira, 24 de julho de 2020

Eu, Amália


AQUI:

"Um retrato de Amália por si mesma. A sua personalidade, as vivências, as ousadias, as canções, as alegrias e tristezas e um percurso que a levou a todo o mundo, são aqui contadas através de momentos em que Amália se cruzou com a história da rádio e da televisão e pública. Das memórias fixadas nos arquivos RDP e da RTP chega-nos a sua voz. Ora a falar, ora a cantar, diz-nos quem foi, o que procurou, o que viveu."



DAQUI: Entrevista

"Nunca fui nem nunca serei uma revolucionária. Canto o fado que sinto"


Assinala-se hoje o centenário do nascimento de Amália Rodrigues e o DN republica uma entrevista feita pela jornalista Maria Augusta Silva por ocasião dos 65 anos da fadista.



© ARQUIVO DN

Maria Augusta Silva23 Julho 2020 — 12:47


TÓPICOS
Fado
Amália Rodrigues
Cultura
centenário

Relacionados

AMÁLIA RODRIGUESManuel Alegre: "Amália e Camões foram feitos um para o outro"
AMÁLIA RODRIGUESAmália sem público e aplausos nas Festas de Lisboa
CARMINHOCarminho: "Amália não vendia limões mas vinho. Espero que as crianças não fiquem chocadas"


Amália: um nome, um fado em muitos fados, uma voz. A voz sem igual com que canta desde os 20 anos. Tem, hoje 65, e diz ser uma pessoa desencantado, não com o público, porque esse, em todos os cantos do mundo, ao longo de mais de quatro décadas, deu-lhe sempre o testemunho da sua estima e da sua admiração por ela. Por essa Amália que nasceu em tempo de cerejas no Pátio dos Quintalinhos, ali para os lados da Rua da Palma; por essa mulher que foi criança pobre, de pés sem sapatos, e calcorreou as ruas da cidade apregoando limões.

Amália sonhava os sonhos dos simples. E assim sonhando, um dia cantou... E cantou de tal jeito que deixou a venda dos limões maduros para tomar a grande senhora de um fado com marca. De um fado sofrido. De um fado que tem amor e ciúme, lágrimas e esperança, carências e súplicas. De um fado que é nossa na expressão mais singela das palavras comuns a todos os mortais. Na voz de Amália esmoreceu aos poucos a gargalhada inocente e o pregão cristalino, a fugir da polícia... Mas trouxe para o fado a força da alma.

E Amália continuou amarrada ao sonho, com tais amarras e tão cegamente, que se foi esquecendo de criar defesas contra todos os riscos para acautelar a sua humildade e a sua grandeza...


Magoaram depois os seus sentimentos quando ela, fadista de encontros e desencontros, quis manter o seu fado sem desvios. Amália chorou então mais amargamente do que nunca e ficou-lhe uma ferida que sangra por dentro ao mais leve toque. Encontrou refúgio na seu temperamento dramático e tímido, pedindo ao fado perdão por o haver cantado e sentido como destino único. E continuou o correr para os campos de ar solto, num apelo à vida, colhendo flores à beira da estrada, carregando braçadas de folhas e giestas e alecrim aos molhos. E continuou à procura de um mar imenso e forte para sobre ele estender o utopia dos sonhos à margem da teia material da vida.

Amália Rodrigues volta agora a ser recordada (justiçada) na gravação dos seus maiores êxitos e revela-nos, a propósito, a sua sensibilidade de corpo inteiro, prometendo para breve a sua voz em poemas de Cecília Meireles. E prometendo, também e apesar de tudo, amar o fado até ao fim. O fado que, ontem como hoje, deseja cantar para toda a gente...


O melhor de Amália Rodrigues volta a ser apregoado em reedição discográfica. O que é para si o melhor de Amália?
Creio que a intenção é lembrar os meus primeiros sucessos e os fados que as pessoas mais têm gostado de me ouvir cantar. No início da minha carreira, eu tinha uma voz cristalina, cheia de frescura e plena de inocência. Tinha, afinal, a inocência de uma pessoa que não sabe o que é cantar nem coisa nenhuma...

Como diz que não sabia cantar se a descobriram precisamente por ter uma voz excecional para o fado?
Tinha voz, naturalmente, mas faltava-me um certo "calo", uma habituação às músicas e até a forma de dar a volta às interpretações, que já requer uma educação da voz, embora nenhuma técnica nos valha se não houver a tal intuição.

Quer dizer que a voz dos seus 20 anos não tem nada que ver com a voz dos seus 40 ou com a voz, hoje, dos seus 65 anos que a leva ainda a novas gravações?
Aos 20 anos, a minha voz era fresca e tinha, porventura, a beleza dessa juventude. Mas acho que aos 40 anos foi quando atingi uma capacidade de interpretar o fado com maior profundidade ou, se preferir, com maior maturidade. Não é porque soubesse cantar melhor. É outra coisa, até porque eu nunca saberei cantar na minha vida!

O quê, Amália?... Espanta-me que faça uma afirmação dessas. Tem andado nestes 45 anos a cantar sem ter consciência de cantar bem?
Não é isso. Sinto é que nunca canto hoje igual a ontem. Quem me ouve cantar duas ou três vezes sabe que isto é verdade. Tenho a intuição do fado. Foi qualquer coisa que Deus me deu, mas depois o meu estado de alma, os meus nervos, as minhas emoções. Tudo se prende com a nossa interioridade. O fado ou é isso ou não é nada.

Recusa-se a aceitar outros valores no fado?
De maneira nenhuma. Eu reconheço e aceito outros valores desde que sejam valores. Há alguns, mas também há por aí quem de fado não entenda nada e pretenda misturar o trigo com o joio... Isso dói-me!


Faz sempre questão em afirmar que a sua voz é um dom divino. Tem assim tanta convicção em Deus?
Tenho. Eu não fiz nada para ter esta voz... Então, porque é que a tenho? Alguém ma deu...

Nessa sua convicção, como define Deus?
Não tem definição. Deus, para mim, é Deus. Sinto essa força dentro de mim. Acredito em Deus mesmo que não exista o céu. Não vale a pena tentar explicar. Não encontro explicação em palavras ou em teorias, tal como, por mais explicar o que é uma árvore, também não encontro uma explicação inteira.

Uma árvore tem raiz, tronco, ramos, folhas... A botânica é uma ciência... A gente pode ver a árvore, apalpá-la...
Aprendi isso, apesar de só ter três anos e três meses de escola. Mas, cá dentro de mim, uma árvore é qualquer coisa mais forte, mais grandiosa, que a botânica não consegue definir. Da mesma forma acredito em Deus plenamente, ainda que tudo se acabe cá na terra. Acredito em Deus mesmo que a minha alma não vá para o Céu, nem para o Inferno, nem para o Paraíso... Sou uma pessoa inculta, e não tenho vergonha de o dizer, mas esta é a minha forma de estar na vida. É a minha filosofia.

Gosta de se comparar às árvores... Num fado seu, diz que o pinheiro é seu irmão, até no jeito de erguer braços em vão... Tem de si própria o sentido de grandeza?
Não é uma grandeza tola, é sentimento de libertação. O pinheiro é uma árvore alta, livre no espaço, se a não mutilarem... Eu também gostava de ser mais alta...

Tem complexos com a sua altura e a sua beleza. É um estado de morbidez ou puro masoquismo para ser ainda mais dramática?
Não dramatizo as coisas por via disso. São gostos femininos que julgo normais. Mas pronto, não sou mais alta nem bonita, tenho de aceitar-me como sou.


Quando fala em beleza tem como padrão a beleza helénica?
As palavras que você me diz... Helénica é dos gregos, não é? Bom, eu aceito que não haja padrões rígidos de beleza. E, pensando melhor, até quando vejo fotografias minhas dos tempos em que era jovem, posso concluir que estive quase para ser bonita e estive quase para ser muito feia. Fiquei no meio-termo...
Camões foi o maior fadista

Nessa sua tendência para o fatalismo costuma igualmente insistir no facto de ser uma mulher inculta. Será que tem da cultura a ideia de que esta só existe nas universidades, nos doutoramentos?
Julgo que só é culto quem aprendeu muito, quem teve a possibilidade de andar muitos anos na escola...

Amália, há multa gente que empinou livros na escola e não tem o mínimo de sensibilidade para aprender a descobrir coisas multo belas. Não será isto verdade?
Você tem razão, mas eu também tenho a minha. Reconheço que há gente que leu muito e não tem o entendimento das coisas com urna certa dose de sensibilidade. Só que é gente que sabe falar com eloquência e eu não sei. Gostava de ser culta para exprimir a minha própria sensibilidade, para dizer uma palavra sem ter de dar a volta ao Rossio até a encontrar.

Avalia as pessoas pelas palavras eloquentes... É isso, Amália?
Eu até costumo dizer que, se não fosse fadista, gostaria de ser psicóloga, porque sinto necessidade de analisar as pessoas.

Não fuja à minha pergunta... Só as pessoas eloquentes é que são gente?
Não fujo à sua pergunta, não. E então digo-lhe que, entre uma pessoa bem falante mas oca de sensibilidade, e uma outra sem discurso mas sensível, prefiro a última. Talvez por isso, quando penso que sou estúpida, porque não estudei, chego, às vezes, a não importar-me ser estúpida, já que me conheço e sei que sou pessoa uma sensível; sei que leio um livro e o sinto, mesmo que não saiba sequer dizer aos amigos quem é o autor...


Ora aí tem: não é só culto quem estuda tratados filosóficos...
Pois... O ideal é ser-se sensível. Mas nem todos podemos ser eruditos, embora fosse bom que, pelo menos, todos fôssemos sensíveis.

Quando canta Camões, por exemplo, sabe quem foi o poeta?
Não lhe falo do Camões épico, que tem muito valor, com certeza, mas de mitologia não entendo patavina. Mas sinto que Camões foi, na sua poesia, o nosso maior fadista. Eu li os seus sonetos, os seus versos de amor, e encontrei neles o fado, o destino, o sentir de uma alma. Compreendi-os sem precisar de ir ao dicionário. Sou toda coração e não me pergunte porque sou assim e não de outra maneira, porque isso seria o mesmo que perguntar a um cardo porque é um cardo e não é uma casa...
Um chilique em Hollywood

De qualquer modo, não constata que foi uma mulher que se fez por si e conquistou o sucesso à sua custa?
Não fiz nada para ser o que sou. José Galhardo e Frederico Valério compuseram-me um fado e nele se diz e canto que... "Amália, quis Deus que fosse o meu nome...". Por isso me deu esta voz. E o público, especialmente o povo de onde venho, acarinhou essa Amália. Sou o que sou por essa razão.

Não teve de trabalhar o seu talento para estar ao nível, logo no começo da sua carreira artística, de Jacquellne François, Edith Plaf, Charles Trenet, Maurice Chevalier, Nat King Cole?...
Não fiz mais do que cantar com a minha voz e humildade. Entrava em pânico (ainda hoje isso acontece) quando me via ao lado de nomes tão famosos. Aliás, fico sempre a tremer como varas
verdes quando entro num palco.

 

© ARQUIVO DN

Se fica, disfarça bem.
Só eu sei os nervos que se apoderam de mim! Numa ocasião tive um chilique!!!

Que lhe aconteceu, esqueceu-se da letra do fado?
Não... la cantar em Hollywood, e eu, que estava habituada a aparecer só com os violas e os guitarristas, tinha de enfrentar ali uma orquestra com mais de uma centena de músicos... Quando me apercebi bem do que me esperava, caí para o lado! Reanimaram-me mas supliquei a Deus que me desse naquele instante uma febre de 40 graus...

E Deus, sabedor da sua fé, atendeu a sua súplica?
Não! Pregou-me uma partida... tive mesmo de cantar. Mas ajudou-me e não me saí mal. As palmas do público tranquilizaram-me.

Sucessos iguais conquistou-os em todos os cantos do mundo. Ninguém se esquece de Amália no Olympia, na Broadway, no Lincoln Center, enfim, é quase impossível referenciar todo esse apogeu. Apesar disso, acha que não é uma vedeta?
Vedeta não sou. O que é isso de ser vedeta? Mas não posso negar-me nem negar a minha vida. O que eu digo é que esse talento, essa intuição, são um dom e não fruto de um grande esforço, de uma grande luta...

Não estará a cultivar uma vaidade através de uma falsa modéstia?
Falsa modéstia, não!!! Acreditem ou não as pessoas, eu sei que sou assim humilde e fico de bem com a minha consciência. A minha vida foi e continuará a ser o fado até que o público não me queira mais. Não tenho outras ambições. Não sou política, não gosto de vidas mundanas, nunca alterei a minha maneira de ser. Deixem-me ser quem sou...
Magoaram-me profundamente

Diz isso com tanta mágoa! Está com as lágrimas nos olhos... É por a terem quase ignorado nesta última década? Alguns colegas procuraram afronta-la depois do 25 de Abril... É essa a sua maior dor?
Colegas, compositores, intelectuais... Magoaram-me profundamente. Tanta calúnia, tanta mentira. Ao princípio, eu estava de olhos fechados, e não consegui entender porquê...

O que se passou: não lhe perdoavam a sua voz independente? Fazia-lhes sombra? Ou a própria Amália sentiu que não estava tão à vontade e ficou chocada?
Só não me perdoa quem não me conhece bem. Mas deixe-me chorar senão rebento!... Julgo que desejaram queimar-me dizendo que eu era um produto do fascismo, que era uma espia, uma contrabandista, uma bêbeda... Tantas mentiras horrorosas! Como hei de curar essa ferida? Eu quero esquecer, mas dói-me muito este desencanto...

Teria sido porque a Amália Rodrigues não emprestou a sua imagem a nenhuma força política?
Sei lá! Até chegaram a dizer que havia um subterrâneo no meu quintal por onde eu ia ter com Salazar para ele se aconselhar comigo!... Disseram também que tentei envenenar Humberto Delgado, no Brasil... Isto é duma imaginação incrível! Nunca admiti que pudesse haver tanta maldade.

Se tivesse apanhado alguma carruagem dos comboios político-partidários, julga que se teria livrado desses embaraços?
Não foram embaraços, foram calúnias! Foram mentiras tremendas que me destruíram a alegria e a saúde. Terei de pedir desculpa por já cantar o fado há 45 anos?... Não devia cantar o nosso fado só porque o regime era salazarista ou marcelista?...
Não sou uma revolucionária

Por vezes, os governantes servem-se de coisas que funcionam como um ópio para o povo... Não concorda?
Mas eu não sou servilista, tal "como não sou uma revolucionária. Por mim, sempre cantei o fado sem pensar em políticas. Nunca apanhei nenhum comboio ou avião, a não ser aqueles em que me deslocava e desloco para ir cantar a qualquer terra. Cantar do jeito que eu sei e sinto. Cantar o nosso fado e o nosso folclore de que tanto gosto. Nunca tive apoios de nenhum governo nem do anterior nem dos de depois do 25 de Abril.

Estas coisas são muito complicadas, Amália... O fado dramático, de amores e pecados, não era, nem é, propriamente, a chamada canção de intervenção revolucionária...
Mas eu repito, nunca fui nem nunca serei uma revolucionária. Nunca quis fazer acreditar o contrário. Nunca me mascarei (a não ser pelo Carnaval). Canto o fado que sinto, que gosto de cantar. Canto as letras que se identificam com a minha sensibilidade. Onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá, é para cantar os meus fados e não para ir debater questões políticas com os governos... Quero ser o que sempre fui: a Amália que canta para toda a gente.

Não se conforma que possa haver quem não goste de si?

Que disparate. Ninguém pode ter a veleidade de pensar que agrada a todos. Mas não foi o público que me esqueceu! Eu sinto que não foi o público. Até é curioso como os jovens se aproximam de mim e se interessam pelo fado, são sensíveis ao fado, ao nosso fado. O publico nunca me tratou mal, nem no meu país nem noutro qualquer. .

Ainda antes do 25 de Abril cantou Povo que Lavas no Rio, de Pedro Homem de Mello. Esse seu fado parecia uma pedra no charco...
Cantei esse e muitos outros poemas que, aos olhos das tais políticas, talvez pudessem ter interpretações várias. Mas porque se há de meter a política em tudo? Cantei José Régio também. Mas cantei e canto por sensibilidade, por sentimento, e não para politizar... Naturalmente que num ou noutro fado pode estar mais a vida de um povo. O público ou uma pessoa podem sentir-se na pele desse fado conforme os seus sentimentos. O fado é uma coisa muito nossa exatamente porque traduz o nosso sentimentalismo. E é esse o fado que eu canto.

Também cantou o Extraterrestre... Foi a brincar?
Tenho coisas melhores e outras que o não são. O que eu não tenho é a mania de que a Amália não pode cantar isto ou aquilo porque é a Amália... Pelo facto de ter cantado o Extraterrestre... ou coisas parecidas, não deixei de ser exigente na qualidade da interpretação nem me caíram os parentes na lama... Nem foi por isso que deixei de sentir o fado como sempre o tenho sentido, o fado que está interiorizado na minha alma.
O meu sonho é o amor e a paz

E será a Amália uma pessoa tão passiva que se não aperceba, tantos anos a correr o mundo, das diferentes sociedades e dos diferentes regimes político-sociais que as comandam? Nunca estabeleceu comparações? Nunca sentiu injustiças? Nunca se sentiu impressionada com algumas situações?
Choca-me a fome em tantos países, por exemplo. Não sou insensível aos problemas do mundo que me rodeia. Mas eu sou por temperamento uma pacifista. Gostava que nunca tivesse de haver guerra para se resolverem os problemas. O meu sonho é o amor e a paz. Nem posso ver sangue... Fico petrificada! Gostava que as pessoas se entendessem sem terem de se matar ou de se injuriar. É por isso que eu não entendo a política nem tenho preparação para a analisar.



© ARQUIVO DN

Há precisamente 40 anos, estava a Amália a conquistar tantos povos com os seus fados. foi lançada a primeira bomba atómica, que ficou conhecida por bomba de Hiroxima. Já era adulta, o que sentiu?
Tenho memória dessa tragédia porque ouvia os comentários. ouvia a minha mãe contar coisas, ouvia falar na rua. Não ouvia na rádio. Nesse tempo, só tinha rádio quem era rei! E o que eu ouvia as pessoas dizer fazia-me apertar o coração. Mas penso que para as bombas acabarem, ou para que nem sequer existam, tem primeiro de deixar de haver gente videirinha, oportunista, que passa por cima de tudo. O mal de raiz, na minha opinião, é esse... E depois sofrem os inocentes, os que não sabem defender-se, que são a maioria.

Como é que a Amália foi à União Soviética numa ocasião em que Portugal não tinha relações diplomáticas com a Rússia?
Nunca mendiguei vistos para o meu passaporte. Nunca mendiguei contratos. Tive sempre curiosidade em conhecer a Rússia. Queria ver se também lá entendiam os meus fados, sem política. Um dia, a minha empresária em Paris (que está ainda viva, felizmente, e poderá dizer se isto é verdade ou não) contratou-me para ir à União Soviética. Foi ela quem me tratou do passaporte. Fui e cantei lá como em qualquer outro sítio. Estive no Circo Popov, estive com os coros do Exército Vermelho e não fiz mal a ninguém, tal como ninguém me fez mal a mim. O público soviético ouviu-me cantar e aplaudiu-me, como me aconteceu em tantos outros países.
Só espio o meu fado

Era multo difícil romper, então, a Cortina de Ferro... Não teria a Amália servido de isca ou de fachada?
Servir de isca? Olhe, ninguém me mordeu! De fachada? Olhe, levei a minha cara de sempre e o meu fado de sempre. A minha consciência estava tranquila e continua tranquila. Pretenderam insinuar que eu era espia. Que tristeza! Eu só espio o meu fado. E já não é pouco!·
A força do sentimento

Mas a maior parte desse público para quem tem cantado, em todos os continentes, não entende o nosso idioma e a Amália canta quase sempre em português... Que "milagre" é esse?
Há uma coisa que é universal e toda a gente entende: é a força sentimento que uma voz expressa; é a carga dramática do fado; é a melodia; é o timbre da voz. É uma linguagem sem fronteiras, e o nosso fado, o nosso autêntico fado, tem essa linguagem, tem essa força de amor e de comunicação. O cantar noutro idioma também canto, mas não é importante. Os meus fados, os meus sentimentos, são bem portugueses.

Tão portugueses que nunca quis ficar a viver noutro país... No fundo, continua com amarras ao Pátio dos Quintalinhos, onde nasceu?
Tenho muita ternura pelo Pátio dos Quintalinhos, onde nasci e onde vivi com mais sete irmãos (mais dois morreram antes de eu nascer). Mas não é só a ternura pela minha raiz humilde. É que eu gosto da minha terra, da minha casa, da minha família, dos meus amigos. Sou uma pessoa emotiva, mas não sou uma mulher frívola. Não troco nada por um convívio caseiro, familiar. Como é que eu, num país estrangeiro, ia viver sem a minha broa e a minha sardinha assada, sem as minhas sopas de feijão?! Como é que eu ia passar sem ver o Alentejo, sem ver Trás-os-Montes?! Tinha lá paciência para andar todos os dias em jantares e almoços de sociedade!!!

No entanto, os seus contratos no estrangeiro ajudaram-na bastante materialmente. Ainda agora os aceita. Está rica ou não?
Não tenho a fortuna que muita gente julga. Mas não me queixo. E se ainda aceito contratos é porque o público ainda me quer ouvir cantar.
Tenho outra fome

Parece uma mulher desencantada com tudo, apesar de ter conseguido vencer a pobreza da sua infância. Não lhe parece que está demasiado fechada em si mesma?
Estou desencantada, isso estou, porque, afinal, vejo que o meu mundo, o mundo que eu sonhava, não é possível. A realidade é completamente diferente daquilo que eu queria. Fiquei presa aos meus sonhos de criança...

Mas a sua infância foi de pobreza como a de tanta gente... e de tanta gente que não teve a sua estrela... Devia ter razões para se sentir feliz. Porque se embrulha nessa angústia, nessa tortura? Porque chega a ter saudades, como diz num fado recente da sua autoria, dos tempos em que "passava fome passava, lavava no rio, lavava..."?
Não é dessa fome que tenho saudades, como é óbvio. E também devo dizer, em abono da verdade, que éramos pobres (sapatos, onde estavam eles?) mas nunca passámos a fome que atinge, ainda hoje, milhares de crianças em todo o mundo. Não desejaria, naturalmente, voltar àqueles tempos em que eu e a minha irmã Celeste andávamos pelas ruas a vender limões para ganhar uns tostões. Mas do que eu tenho saudades é da minha alegria quando era pobre, da minha capacidade de sonhar. Sinto agora outra fome que nenhum pão, nenhumas azeitonas. podem saciar... Sinto saudades de quando os polícias iam atrás de nós e a gente corria às gargalhadas, a fugir com os limões no cesto...



© ARQUIVO DN

Nem o facto de os polícias a não quererem deixar vender os seus limões para ganhar una tostões para comer a fazia uma pessoa revoltada contra as discrepâncias sociais?
Quer eu quer meus irmãos fomos educados dentro de princípios de resignação, desse tal fatalismo que é o próprio fado. Éramos alegres. A revolta não fazia parte da alegria de sermos crianças. Aceitávamos as coisas como tendo de ser assim. É dessa alegria que sinto saudades. Era uma alegria inocente...

Mas ninguém gosta de ter um polícia a dar-lhe cabo da cabeça... É por isso que a Amália não simpatiza muito com homens fardados, segundo o que se escreveu em algumas entrevistas suas?
Essa é boa! Nunca disse que tinha aversão a homens fardados. Se forem bonitos até gosto deles! O que eu sou é supersticiosa. E desde miúda, se estava com alguma superstição, fechava a mão e só a abria quando via um homem com farda, porque diziam que dava sorte. Os homens de farda até são precisos se souberem cumprir as suas obrigações cívicas. E dão jeito para as minhas superstições!
Gosto do tipo aciganado

É católica, mas é supersticiosa... Gosta de homens bonitos, mas sente-se uma mulher desencantada e sem esperança. Tem fome de ser alegre. Teve uma educação conservadora. Preferiu a aceitação à revolta. Adiante: se o doutor Mário Soares lhe batesse à porta, neste momento, como o atenderia?
Atendia-o bem, educadamente.

E não lhe perguntava nada?
Como está, tem passado bem? Espero que sim...

Que idade dá a Freitas do Amaral?
Não sou lá muito forte a acertar em idades... Ele é um bocado pesado, mas deve ter para aí uns quarenta e tal anos...

Tinha vontade de cortar as sobrancelhas a Álvaro Cunhal?
Não... tinha medo. É melhor que ele fique com as sobrancelhas todas. São dele... o seu a seu dono!

Gostaria que Lucas Pires tivesse os olhos da outra cor?
Qual é a cor dos olhos do Lucas Pires, nunca reparei...

Tem uns olhos esverdeados...
Então é melhor ficar com os olhos que tem.

Quer dizer que a Amália gosta de homens com olhos claros?
Não. Por acaso eu até gosto de morenos. tipo aciganados... porque eu também sou meio aciganada!

Alguns dos nossos políticos têm esse tipo aciganado que tanto lhe agrada?
Eu acho que todos eles são um pouco aciganados... mas num outro sentido...

E, quanto a Cavaco Silva, acha que ele tem pouco peso para a sua altura?
Eu só o vi uma ou duas vezes e nem reparei se era gordo ou magro.

Daria um conselho a Maria de Lourdes Pintasilgo para mudar um pouco o penteado?
Aconselhava-a mais depressa a ser rouxinol...

Vive aqui em São Bento, tão pertinho do Parlamento, nunca sentiu ganas de dar um salto até lá e pôr-se a cantar o fado... por exemplo, a cantar o seu fado Povo Que Lavas no Rio ou aquele mais antigo, Conta Errada?
Não, não seria capaz duma coisa dessas. Sou muito passiva. Direi mesmo que até sou cobarde!

Cobarde porquê? Porque gosta ou prefere ser cobarde?
Para quem tem o meu feitio, é mais natural ser cobarde do que ser valente. Não sou uma agitadora. E tenho muito medo de ferir as pessoas, até mesmo aquelas que mereciam que eu lhes dissesse alguma coisa amarga e dura. Prefiro ficar em casa, chorar sozinha ou desabafar com os amigos. Prefiro chorar a cantar...
Admiro o infante D. Henrique

Muitas condecorações tem recebido, não só em Portugal. Mas no seu país recebeu, pelo menos, duas... duas altas condecorações, uma pelas mãos de Marcelo Caetano, outra pelas mãos da Ramalho Eanes. Da que mãos gostou mais de receber essas distinções, que representam o reconhecimento público do seu mérito?
É suposto ter-se uma reação de orgulho ou de honra ou de contentamento. Mas, não sei porquê, fiquei parada, sem alegria por dentro. Não consigo voltar a ter o meu sorriso de criança, a minha cabeça louca... De qualquer modo, a segunda condecoração que recebi, da Ordem do Infante D. Henrique, e me foi atribuída pelo general Ramalho Eanes, gostei mais dela por ser a do infante D. Henrique, figura histórica que sempre admirei.

Essa sua predileção pelo infante D. Henrique revelará uma simpatia da sua parte pela monarquia?
Não tenho nada que ver com a monarquia. Mas na pouca escola que tive aprendi (e ninguém tem culpa de aprender o que aprendeu) que Portugal era deste tamanho, que Angola era 14 vezes maior. E tudo estava ligado a feitos de homens como o infante D. Henrique...

Está contra a independência das ex-colónias portuguesas?
Eu não. Mas também não posso estar contra a história dos povos.
Feminina mas não feminista

Sentiu-se sempre uma mulher independente?
Independente nunca fui. Sou independente dentro de mim, nos meus sentimentos, mas estive sempre dependente de uma educação, de um tempo em que não se podia fumar à frente dos pais nem sair à rua de braço dado com o namorado... Quando um dia saí de braço dado com o meu namorado, apanhei uma valente sova!

Nunca desejou integrar um movimento feminista?
De maneira nenhuma. Sou muito feminina mas não sou pessoa de ir para a rua agitar bandeirinhas por um movimento feminista.

A emancipação da mulher, o direito à igualdade, não lhe dizem nada?
E isso consegue-se com bandeirinhas na rua? Penso que o importante é cada pessoa estruturar a sua personalidade e fazê-la respeitar.

O que pensa da homossexualidade? Acha que é uma aberração?
Natural não é... O natural é a procriação...

Bem, não lhe coloco a questão da sexualidade só em termos de procriação... Mas diga-me o que pensa da homossexualidade.
Tenho muitos amigos que são homossexuais. Não deixo de lhes ter amizade por isso. O que me importa é a boa educação, o respeito que devemos uns aos outros.

Não tem filhos, Amália. Recusou-se a tê-los ou algum problema a impediu de ser mãe?
Não me recusei, ou melhor, não fui capaz de fazer uma cirurgia de que necessitava para poder engravidar.

Foi egoísmo ou teve medo?
Tive medo. Fujo do bisturi como o diabo da cruz... Morro só de pensar numa operação!

Gosta multo da si mesma? Tem medo de morrer? Tem-lhe custado envelhecer?
Não é o gostar de mim mesma. Gosto de viver com os meus amigos, com a minha família. Felizmente, ainda tenho a minha mãe, já com 93 anos.

E a velhice atormenta-a?
Ora, se fosse só eu a envelhecer, ficava danada! Mas toda a gente envelhece, é a ordem natural da vida. Tenho de aceitar que é assim. E aproveito para lhe dizer que nunca fiz nenhuma operação plástica, no entanto, encarregaram-se de me inventar meia dúzia delas... Até nem me importaria de me rejuvenescer, mas operações já basta as que tiverem de ser, como uma pequenina que fiz agora para extrair um quisto junto ao ouvido. ·



© ARQUIVO DN

Que opinião tem sobre o aborto?
Não é fácil dar uma opinião de ânimo leve. Felizmente, nunca me senti numa situação dessas. É uma questão complicada. Só quem vive esse problema em toda a sua dimensão o poderá, de facto, avaliar.
Sou ciumenta mas não faço cenas

O seu primeiro grande sucesso foi com o fado do Ciúme. É uma mulher ciumenta?
Foi realmente o meu primeiro sucesso, graças ao Frederico Valério (marcou-me tanto a sua morte!). Sou uma mulher ciumenta, até porque sou muito insegura, mas sou incapaz de fazer uma cena de ciúmes. Vingo-me a chorar...

Ainda se lembra de quem foi o seu primeiro namorado?
Se me lembro! Casei com ele. Foi o meu primeiro casamento, era novinha. Chamava-se Francisco Cruz, era meu guitarrista.

Foi importante para si esse primeiro casamento?
Era muito nova e naquela altura o casamento era a consequência lógica do namoro. Ele até era bonitinho, tocava bem guitarra e, tal como eu, tinha a mania do fado. Depois, os nossos fados separaram-se...

Teve muitos homens apaixonados por si... Gostava de sentir-se amada? Maltratou alguns desses amores?
Tive muitos homens apaixonados, não sei se todos por mim se mais pela minha voz. Nunca confiei muito em que gostassem de mim se não cantasse. E reconheço que maltratei algumas paixões, mas duma maneira inconsciente.

Hoje, disposta a continuar a cantar o seu fado, sente que a sua vida de mulher foi sentimentalmente frustrada?
Digamos que, por força da minha vida, da minha carreira, dei menos de mim ao amor do que podia ter dado. Transportei o amor mais para o fado...

Esqueceu-se de si como mulher? Fez prevalecer a artista?
Talvez me tenha esquecido um pouco de mim própria. Mas voltei a casar-me e este casamento já dura há 25 anos.

Raramente as pessoas a veem acompanhada do seu marido. Quem é?
Não sei se ele quer que lhe diga o seu nome, por isso não digo. Nunca misturamos a nossa vida familiar com a minha vida profissional.

E este casamento deu-lhe alguma estabilidade sentimental e psicológica?
É uma pessoa com quem posso contar. Uma pessoa que gosta de mim, é um homem bem-educado, nunca discutimos. É um casamento que julgo feliz.

Ele não tem ciúmes dos seus fados, da sua entrega apaixonada ao fado?
Penso que não. Ele tem outras motivações. Tem também uma educação portuguesa, sabe como eu sou. Quando se casou comigo sabia que eu já tinha sido casada, que era uma mulher inculta e era fadista e amava o fado. Ele é engenheiro mecânico, tem a sua própria sensibilidade, não canta, até porque desafina... Mas penso que gosta de mim, independentemente de eu cantar o fado.

Nunca lhe disse que gostava da sua voz?
Não sei se ele já se cansou de me ouvir cantar ou se ainda é um espectador que me acompanha. Antigamente dizia-me que tinha ouvido fulano ou sicrano a cantarem coisas minhas mas que não sentia o arrepio que costumava sentir quando era eu mesma a cantar.

Então e a Amália não sabe se ele ainda se arrepia quando a ouve cantar?
Não me tem dito nada... No fundo, ele deve sentir que o fado, as minhas cantorias, lhe têm roubado a minha companhia, e tem alguma razão nesse aspeto. Embora eu seja uma mulher caseira que nem sequer gosta de ir a restaurantes, estou em casa mas estou sempre rodeada pelo fado. ·
Flores, sempre flores

Que melhor prenda lhe podem oferecer?
Flores. Muitas flores. Basta olhar para a minha casa. Quase todos os dias vou ao campo colher flores.

É uma espécie de apelo à vida?
Disse bem, é um apelo à vida. Gosto do campo e do mar. Então do mar nunca me canso. Sinto uma força, uma ânsia de libertação!

Libertação... Mas a própria Amália diz que acaba por ser cobarde e fica fechada sobre si mesma...
Sou muito paradoxal. Reconheço que o sou.



© ARQUIVO DN

Os poemas que tem feito ultimamente são a única forma de o seu grito fazer eco?
Não tenho pretensões a poeta. Deus me livre! Mas ao escrever algumas letras para os meus fados, agora que estou desiludida de todos os meus sonhos, talvez seja, sim, uma forma de gritar, de dizer o que me vai na alma. Tenho pena de mim... Sonhei um mundo tão diferente... Sou uma pessoa de mãos abertas. Entrego-me à amizade sem tomar precauções. Pensei sempre que não era preciso uma pessoa precaver-se quando a amizade existe e as pessoas falam abertamente. Mas há gente que engana tanto!...

Não teria fechado demasiado os olhos em sua própria defesa, para sua comodidade? Não temia, feitas as contas, que, se os abrisse, iria certamente encontrar uma realidade que não tem nada que ver com a Branca de Neve e os Sete Anões?
Pois é... eu sonhei muito com a Branca de Neve e os Sete Anões... Este maldito romantismo, esta falta de confiança em mim mesma... Tinha de ser fadista, fatalmente...

E quis ser sempre, também, uma menina mimada?
Julguei que poderia ser assim comigo e com toda a gente. Talvez seja do meu signo, sou Leão.

Em que mês nasceu?
A minha avó dizia-me que eu nasci com as cerejas. Registaram-me oficialmente a 23 de julho. Mas, ao certo, ao certo, não sei o dia em que nasci. Cá por mim, optei pelo dia 1 de julho, que é logo o princípio do mês...

Mas as cerejas começam a amadurecer em fins de maio... Afinal, qual é o seu signo?
Escolhi o de Leão, mas, se calhar, até sou Touro, Gémeos ou Caranguejo...

Tem pelo menos a certeza do ano em que nasceu?
Isso tenho. Foi em 1920. Agora o mês... Foi com as cerejas e não me desagrada a época do ano, embora eu aprecie mais pêssegos, figos e melão. Mas é tudo fruta da época!

Quer ficar na lenda, como a Severa?
Não quero lenda nenhuma. Só quero estar com as pessoas enquanto estou viva. Só preciso de amar e de amizade enquanto respiro e me sinto. Depois... bem, não me importa que vão pôr umas florinhas na minha campa, sempre ficará mais arranjadinha...

Não quer fazer um esforço para se libertar dessa angústia?
Mas como? Eu disse-lhe que perdi a capacidade de sonhar, mas é possível que o meu grande mal seja precisamente o não conseguir deixar de sonhar... É o meu destino.
O fado de Coimbra é muito sentido

Acha que o fado de Coimbra é tão fatalista como o fado que a Amália canta?
Não será fatalista, mas é um fado muito sentido, de que gosto imenso. A minha voz segue um pouco a melodia arrastada do fado de Coimbra. Não se canta fado sem sofrimento e o fado de Coimbra tem intérpretes muito bons, na voz e na música.

Quem são os seus intérpretes preferidos do fado coimbrão?
Não costumo indicar nomes, mas o Menano tinha o fado de Coimbra nas veias. E Artur Paredes fazia gemer a guitarra.

Sabe que o doutor Almeida Santos é político mas também canta o fado de Coimbra?
Sei, já o ouvi cantar. E olhe que ele para o fado até tem jeito. Canta bem!

E quando volta a Amália Rodrigues a gravar um disco com fados novos?
Tenho diversos trabalhos nesse sentido. Qualquer dia vão sair, se não ficar para aqui enrodilhada em lágrimas de cansaço.

Não sente que, ao reeditarem agora os seus maiores êxitos, estão a fazer-lhe uma justiça ou a tentar reparar uma injustiça?
É possível que sim. Mas o sofrimento que me causaram... sabe, é como quem corta as pernas a alguém, mesmo que seja sem querer, e depois, quem lhe volta a restituir as pernas, sadias? É esse frio que me gela.

sábado, 18 de julho de 2020

"Gaivota"_Alexandre O’Neill





Gaivota (1965)

Se uma gaivota viesse / trazer-me o céu de Lisboa / no desenho que fizesse, / nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa, / esmorece e cai no mar. // Que perfeito coração / no meu peito bateria. / meu amor na tua mão, / nessa mão onde cabia / perfeito o meu coração.
Se ao dizer adeus à vida / as aves todas do céu, / me dessem na despedida / o teu olhar derradeiro, / esse olhar que era só teu, / amor que foste o primeiro. // Que perfeito coração / no meu peito morreria, / meu amor na tua mão, / nessa mão onde perfeito / bateu o meu coração.

Alexandre O’Neill (1924-1986).