quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

ana rebelo (ana de amsterdam) _ Trovoada

Nota:
Em 2017/01/26 a ana rebelo  publicou na sua pa'gina - AQUI: o magnífico texto que tomo a liberdade de  partilhar. No seu blog nao existem opções de comentar, seguir, ou partilhar. Assim, se a autora vir qualquer impedimento, inconveniente ou proibição, nesta partilha, a mesma será de imediato eliminada.     

"Trovoada

Começou a chover. Parece chuva de trovoada. Olho uma última vez a estatueta de porcelana. Com a ponta de um lenço de assoar, que humedeço com saliva, limpo as pequenas reentrâncias onde o pó se acumula. Pouso-a em cima da cómoda. Escuto passos que rangem no soalho do corredor. Já passa da meia-noite, a minha espera terminou. Mal me deito, a vivacidade do meu pensamento abandona-me, deixa-me numa fadiga que me torna as ideias confusas. Conheço esse adormecimento, desejo-o, nunca contrario a sua chegada. O meu marido entra no quarto. Parece não trazer pressa, anda devagar, e, ao contrário do que é habitual, alguma energia transparece no seu passo. A expressão do seu rosto também está diferente, descontraída, um sorriso aberto, olhos brilhantes, bochechas elevadas. O que tornará a sua passada mais enérgica? E o seu rosto animado? Talvez seja ainda a euforia do futebol que nele transparece, talvez as sobras dessa satisfação o tornem assim, revigorado, ágil. Senta-se na cama, mãos apoiadas no colchão, a olhar a janela. Deixa-se estar nessa posição durante algum tempo a escutar a chuva nas vidraças. Não diz nada, volta a sorrir, dá uma palmadinha na minha perna como que a querer partilhar comigo a sua satisfação. Depois de dar uma fungadela no spray que usa para as alergias, diz-me boa noite e apaga a luz. Não fecho os olhos. Gosto de olhar a escuridão, descobrir o que nela se esconde, vejo manchas irregulares, parecem lagartos gigantes, cobras gordas, serpenteando por ali. Quando um carro chega à praceta e o clarão dos faróis entra pelas frinchas dos estores, chega-me uma memória antiga, quase esquecida: estou deitada com a Violante num campo de ervas altas a adivinhar as formas das nuvens, divertimo-nos a encontrar coelhos, vacas, galos, algumas nuvens parecem objectos, outras parecem gente. Olha a D. Antónia, de marreca e tudo!, diz de repente a minha irmã e rimos com a descoberta. A recordação desse instante traz-me uma tristeza passageira, mas muito intensa, volto à infância, um tempo antigo em que fui feliz. Pouco a pouco, os meus olhos deixam de ver sombras alaranjadas, a escuridão cresce, só o coração luminoso da estatueta de loiça a quebra. A escuridão confunde. É na noite que o corpo do meu marido ganhará dureza. Escuto o ruído da sua respiração e, pouco depois, sinto o seu corpo voltar-se na minha direcção. 

Não perde tempo, os seus braços aumentam de volume, alongam-se, parecem ser capazes de dar várias voltas ao meu corpo. A sua respiração é cada vez mais acelerada, sinto o seu bafo na cova do meu pescoço. Lá fora, o céu desfaz-se agora em pingos grossos, a chuva estala nos vidros. O meu marido levanta-me a camisa de noite, as suas mãos tocam-me. Deixo que me tome. O meu corpo está aqui, na cama, à sua mercê, para que faça dele o que quiser. Um corpo é apenas um corpo, o meu fica aqui, daqui a nada, quando tudo acabar, venho buscá-lo para o lavar e tratar. Ausento-me: estar deitada na cama ou sentada na sala em frente do televisor ou na cozinha a lavar a loiça passa a ser igual. Tanto faz. Estou simplesmente deitada, sem fazer nada, à espera que isto acabe depressa. Mal me liberto do meu corpo sinto-me tranquila, cheia de silêncio. Pairo como um fantasma sobre o meu quarto, sobre a minha cama, sobre o meu corpo. Agora é a altura certa para me entregar aos meus pensamentos íntimos. Procuro o coração luminoso da estatueta de loiça. Aqui está, mesmo ao meu lado, uma pequena lágrima de luz capaz de quebrar a escuridão mais cerrada. El corazón de los novios alumbra la oscuridad, disse-me o homem naquela tarde e abraçou-me. Recordo o desconhecido de Ceuta, o armazém abafado, a realidade suspensa num abraço demorado. Um instante eterno, sem futuro, nem passado. Começou a trovejar. Continuo a ter medo de trovoadas, mentalmente, começo a dizer a oração a Santa Bárbara, só ela é capaz de apaziguar as tempestades que a natureza lança aos homens. O tempo parece alongar-se. Geralmente, em três, quatro minutos, tudo está terminado, mas hoje o meu marido não só intensifica a firmeza dos seus movimentos como parece querer prolongar o tempo que leva a satisfazer-se. Em movimentos repetidos, entra e sai, sai e entra, sempre na mesma persistência. O movimento parece não ter fim. Oiço os seus gemidos, sinto o cheiro do seu suor peganhento, a murchidão da barriga a roçar-me o ventre, tudo é desolador, mas descanso na perfeição dos meus pensamentos secretos. O meu marido transpira de esforço. Sinto-o dentro de mim, sinto as contracções dos músculos, o sangue a latejar. O meu marido está caído sobre o meu corpo, mas eu não estou aqui. Estou longe, muito longe, nos braços de um homem que me aperta. Consigo sentir o cheiro desse homem. Consigo sentir até a sua respiração no meu rosto. O calor desse abraço, clandestino, mas puro, perdura na minha vida. Escuta-se outro trovão, mais forte do que o primeiro. O meu marido larga por fim um grito descontrolado de dor e prazer. Sinto-me aliviada por tudo ter finalmente terminado. Assim que o meu marido resvala para o lado, acendo a luz. Levanto-me com cuidado, procuro a camisa de noite e visto o robe que está aos pés da cama. Caminho até à casa de banho para me lavar. O calor que se sente é cada vez maior, parece escorrer pelos azulejos, cobrir as loiças sanitárias, esconde-se dentro do pequeno armário com puxadores dourados. Abro a pequena janela da casa de banho, mas da rua chega apenas ar quente. Os trovões estão mais espaçados, cada vez mais longínquos, mal se ouvem. Olho-me no espelho. Noto o cabelo em desalinho, o meu rosto está tenso e, exposta à luz fosforescente da casa de banho, a minha pele mostra marcas evidentes de cansaço, as rugas parecem mais profundas, os olhos estão inchados, as olheiras, escuras, parecem borrões de tinta. Regresso ao quarto, os meus passos tornam-se leves, os pés mal tocam no chão. Vou sossegada. O cheiro da cera do soalho volta a confortar-me; a minha irmã sorri na moldura que está sobre o móvel da entrada e a Nossa Senhora, olhos moles de solidão, padece, como é próprio da sua natureza, no seu nicho de gesso dourado. Entro no quarto e sento-me na cama. Sinto-me esgotada, finalmente poderei deitar-me, fechar os olhos, adormecer, deixar o cansaço escorrer do meu corpo. Talvez já não o sinta ao acordar. O meu marido ressona baixinho, tem a boca ligeiramente aberta e a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. Apago a luz. Lá fora, escuta-se apenas o vento nos plátanos da praceta. Depois da trovoada, a noite voltou a encher-se de silêncio."

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

João César Monteiro_Entrevista de 1988



Sobre o filme Recordações da Casa Amarela, com a devida vénia, a entrevista de João César Monteiro:

"Avé, César

Há pessoas que nos fazem bem. O António M. Costa, ou melhor, o Tó Costa, é uma dessas pessoas. Respira entusiasmo, exsuda graça. Conheci-o a amar desalmadamente os livros, quando eu amava amavelmente os filmes; agora ele ama desalmadamente os filmes, andando eu a amar amavelmente os livros.O Tó Costa era, primeiro, irmão do Hermínio Monteiro, que, como sabem, nunca foi um ser humano, por ter sido sempre um ser mítico, poético e alado; conheci-o depois, ao Tó Costa, filho adoptivo de um eternamente infantil Manoel de Oliveira. Eu confesso a minha inveja, nos piores momentos uma raiva morna, ao Tó Costa por vê-lo a viver quase sempre entre deuses, com a graça de um anjo. Às vezes, ele desce à terra e fala comigo. Passa-me a raiva e nem queiram saber como me sinto importante por ele falar comigo. Desta vez veio pedir-me uma entrevista que um dia eu fiz ao João César Monteiro, que eu já esquecera, e que ele, verdadeiramente, ressuscitou do cemitério dos meus papéis. Um dia voltarei a falar do Tó Costa, deixem agora que volte a falar o ressuscitado João César Monteiro. A entrevista publicou-se no extinto “Semanário”, a 15 de Outubro de 1988.




Avé, César

Manuel S. Fonseca


João César Monteiro nasceu a 2 de Fevereiro de 1939. Realizou até hoje 5 longas metragens (A Sagrada Família, Que Farei Eu com esta Espada?, Veredas, Silvestre e À Flor do Mar) e 5 curtas e médias metragens. Em 74, reuniu num livro intitulado Morituri Te Salutant os seus textos sobre cinema. Os livros vendem-se hoje nos passeios da Avenida da Liberdade por tuta-e-meia: curiosamente é um dos retratos mais devastadores do cinema português dos anos 60 e 70. E escrito numa prosa que torna inane tudo o que os plumitivos, que hoje passam por críticos, possam escrever.


Eu meti-me em brios e julguei que lhe podia fazer uma entrevista. Gastei a este jornal um dinheirão em jantares e cassetes. Roubei tempo à família e, vá lá, ao emprego certo. Tudo acabou em bem quando percebi que o mais simples era deixar a César o que era de César. E o que se segue é do mais «puro João César Monteiro por João César Monteiro» que pode haver. O entrevistador é quase como a RTP: pede desculpa por qualquer interrupção, mas o entrevistado, descansem, segue sempre no momento seguinte.




MSF – O motivo imediato desta entrevista é a atribuição, por parte do IPC, da assistência financeira automática, no 2º trimestre de 1988, ao teu projecto do filme Recordações da Casa Amarela.JCM – Atribuição essa com carácter definitivo, afixe-se. Conheço casos de arrependimentos insuspeitados. Quando o produtor apresentou ao IPC esse projecto de filme já se havia garantido de fontes externas idóneas cerca de 40% do custo previsível do filme. Face a isso, e dado que os valores solicitados, que cobriam integral e obrigatoriamente os restantes 60% se revelaram compatíveis com o montante global posto pelo IPC à disposição dos candidatos, é lícito concluir-se que a entidade produtora obteve, desse modo, os meios financeiros minimamente indispensáveis para poder produzir o filme em questão.


MSF – Podes explicitar melhor?


JCM – Posso. Aliás, o IPC oportunamente tornou tudo público, como é de norma. Custo previsível do filme: 34 milhões e quinhentos mil escudos. Investimento do IPC: 19 milhões e quinhentos mil escudos. Participações externas: 15 milhões de escudos. Montante do empréstimo solicitado ao IPC: zero milhões de escudos.


MSF – A que fontes de financiamento externo recorreu o produtor?


JCM – Recorreu às do costume, àquelas em que é preciso ir para a bicha muito cedo, a RTP e a Gulbenkian, para além de escorripichar umas gotinhas nos chamados recursos próprios, que remédio! Para compor o ramalhete.


MSF – Desculpar-me-ás, mas não estou a entender bem o que queres dizer…


JCM – É muito simples: tem tudo a ver com a lógica do financiamento automático que, como é óbvio, e entre outros requisitos regulamentares, passa pela apresentação do projecto e do respectivo orçamento pormenorizado e satisfatoriamente credível. É tácito e passível de rejeição administrativa que o investimento solicitado não pode exceder os valores do subsídio máximo previamente anunciados, por um lado, e, por outro, o produtor obriga-se a garantir um mínimo de 25% desses valores. Tomados estes factores sine qua non em devida consideração e apreciada (ou investigada) a idoneidade das fontes externas, o IPC procede a um escalonamento das diversas candidaturas, preferindo sempre, e automaticamente, aquela ou aquelas que impliquem da sua parte um menor investimento, até que a soma de cada parcela desse escalonamento se aproxime ou esgote o montante global anunciado para o efeito.


Resumindo: quanto mais se obtiver por fora menos tem de se pedir e quanto menos se pedir mais possibilidades se tem de ser contemplado.


MSF – Mas não se corre o risco de o candidato, para passar no “automático”, jogar com valores abaixo do custo do filme?


JCM – Boa pergunta. Estou convencido que se esses subvalores se traduzirem numa acentuação que, de modo flagrante, inviabilize o projecto, essa hipótese é inadmissível. Só um irresponsável ou um brincalhão a proporia e, ainda assim, seria impensável o acolhimento institucional face a uma situação desse tipo. Todavia, e aí sim, se esses subvalores se situarem naquela fronteira duvidosa que, não pondo propriamente em risco iminente a integridade do projecto e a sua exequibilidade, não comporta uma margem de segurança que, pelo menos, torne mais descansada a consciência de uma travessia do abismo, estaria tentado a afirmar que o “automático” convida a esse risco.


MSF – Estás concretamente a referir-te ao teu filme?


JCM – Nunca me passou pela cabeça referir-me ao filme alheio. Possa eu trabalhar em paz e sossego e tudo se passará sem sobressaltos de maior. O que me mete medo é ter de ir rapidamente arrancar um dente.


MSF – Pareceu-me entender que não enjeitarias outra largueza financeira?


JCM – É sempre possível, desde que o produtor as busque e elas estejam dispostas a abrir a torneirinha. O mais sensato ainda é repassar pelas mesmas, a RTP e a Gulbenkian que, aliás, já deram o que tinham a dar e devo dizer que com uma fartura que me deixou embasbacado e não facilita em nada a insistência. Deus os conserve…


MSF – E as co-produções?


JCM – São morosas e eu já tenho pouca vida.


MSF – Isso reflecte alguma descrença em relação às que têm sido ensaiadas com Portugal?


JCM De maneira nenhuma. Reflecte apenas uma atitude pessoal. No caso particular deste filme nunca se pensou na hipótese de o abrir a esse processo produtivo e, nesse sentido, é pura perda de tempo falar nisso. Quero, no entanto, deixar claro que não tenho ideias feitas ou preconceituosas relativamente às co-produções. Depende do filme que se quer fazer, de como se quer fazer e, fundamentalmente, do que, no essencial, se pretende salvaguardar.


Aliás, não sendo o produtor do filme, as iniciativas nesse sentido situam-se fora da esfera da minha competência. É um pouco como na pesca. A minha faina não é a da lançar a rede, é a de escolher o peixe que vem nela. A sobrecarga é para devolver ao mar.


MSF – Ainda bem que falaste de mar…


JCM – Com esta caloraça não querias que falasse no incêndio do Chiado…




MSF – Não, não. Ia precisamente fazer-te uma pergunta relacionada com o facto de teres sido tu mesmo o produtor do teu último filme, À Flor Do Mar, e de agora ser a GER, uma empresa a que está associado o Joaquim Pinto, que figura como entidade produtora do teu novo filme. Será que a mudança se deve a uma má experiência tua nesse domínio?


JCM – Eu tenho uma tremenda dificuldade, antes do mais, em avaliar uma experiência pessoal, qualquer que ela seja, em função dos eventuais benefícios ou malefícios que comporta. Implico-me, no sentido vivencial, encho o papo nesse envolvimento e relego para plano secundário as consequências. Mal comparado e um pouco à maneira do senhor de Montaigne que, como se sabe, morreu de velhice. Assim sendo, talvez, e para já, preferisse chegar à conclusão provisória de que foi uma experiência que me foi inteiramente útil e inteiramente desagradável. Espero ter aprendido com ela o necessário e suficiente para não a desejar repetir. No traumas, no Doctor Freud à mistura. É só saúde.


MSF – Mas como é que a GER aparece no teu caminho?


JCM – Por via telefónica. Fui à lista peguei no telefone, disquei o número e perguntei: É da GER? Era.


MSF – E depois?


JCM – Tivemos um encontro e conversámos numa esquina. Tudo muito decente.


MSF – E muito decentemente chegaram a acordo.


JCM – Chegámos a um acordo cavalheiresco e de princípio, numa base de confiança e solidariedade recíprocas. Ainda não chegámos ao estabelecimento da nossa carta de guia de casados.


MSF – Isso quer dizer…


JCM – Quer dizer exactamente que ainda não firmámos qualquer contrato.


MSF – Alguma razão especial?


JCM – A GER tem estado extremamente ocupada com a produção do filme do Joaquim Pinto e não tem sobrado tempo para tratar de contratos. Seria extremamente inconveniente da minha parte massacrar a cabeça das pessoas com isso numa altura destas.


MSF – A GER é uma aposta tua?


JCM – Eu só faço apostas, e muito esporádicas, no totobola. Dentro do que há por aí ou era a GER ou o Paulo Branco. O Paulo tinha acabado de se casar na catedral de Sevilha, andava em viagem de núpcias e eu disse de mim para mim: vais-me aparecer todo derreado, se calhar ainda vou ter de te pagar a boda, pelo sim, pelo não, é melhor que seja a GER, que sempre é mais novinha.


MSF – Mas deste a entender que há arestas que ainda não foram limadas…


JCM – Nem era de esperar que o tivessem sido. Estas coisas dão uma grande trabalheira e eu ainda não persigo o velho sonho rosselliano que consiste em esfolar a vida inteira a fazer filmes para que os filmes não dêem trabalho nenhum a fazer.


MSF – Não sei se teria sido assim…


JCM – Mas sei eu. A concepção de vida que liga o trabalho à liberdade é de índole puramente nazi. É ainda o Arbeit macht Frei dos campos de concentração que, de algum modo, regula as relações de trabalho nas sociedades modernas, quer nas capitalistas quer nas burocráticas. Ora, o Rossellini, sendo um homem de formação racionalista achava, pelo contrário, que a liberdade se opõe ao trabalho e isto corresponde a uma concepção de vida radicalmente diferente, goste-se ou não. O trabalho escraviza, logo, é preciso acabar com ele. Como? Organizando as coisas da maneira mais racional para cumprir esse objectivo, o que, como se pode calcular, dá uma trabalheira dos demónios. A invenção da pancinor, por exemplo. O que é a pancinor? É uma objectiva focal variável munida de um comando elétrico que o Rossellini colocava à volta da barriga. É um aperfeiçoamento técnico, sem dúvida, mas o que tem de genial é que só podia ser concebido por alguém que tivesse pensado mais ou menos isto: estou a ficar com uma pança muito pesada, ter que me arrastar com este trambolho é uma grande estopada, deixa-me cá ver se invento uma engenhoca para não ter que me mexer.




MSF – Contam-se inúmeras histórias de Rossellini…


JCM – É natural que se contem inúmeras histórias de alguém que mudou tão radicalmente o curso do cinema.


MSF – Em que sentidos?


JCM – Não é já um lugar-comum dizer-se que é o pai (ou a mãe?) do cinema moderno? Acho engraçado que ainda não seja o avô, mas deixemos isso. É o tipo que vira de pantanas todas as convenções cinematográficas, que postula, tanto económica como esteticamente, os dados de um fazer novo no cinema. O cinema pode fazer-se com meia dúzia de patacos, restos de película e uma câmara velha e o cinema é o que é. Ora isto, que parece muito simples, para além das implicações que ainda hoje tem, buliu com tudo, contaminou tudo, inclusive a “fábrica de sonhos” que era Hollywood.


MSF – A história com a Bergman é um sintoma dessa convulsão?


JCM – É uma pequena partícula neste complexo processo, mas é evidente que é uma história que ultrapassa largamente o folclore jornalístico da época. O que transforma um escândalo mundano num verdadeiro escândalo cinematográfico é o facto de Rossellini ter perpetrado o sacrilégio de, em lugar de deusa, nos revelar uma mulher. É claro que tudo isto somado não podia deixar de abalar uma concepção deificadora do cinema – e o star system não representava outra coisa – mas, com ou sem Bergman, o que Rossellini iniciara não passava grandemente pela participação de actores. Qualquer vendedor de sorvetes encontrado ocasionalmente na rua podia servir.


MSF – A utilização de actores não profissionais é bastante anterior ao Rossellini…


JCM – Sem dúvida. Estou, por exemplo, a lembrar-me do Toni de Renoir que foi feito em 30 e tal com actores amadores, mas o que interessa ao Renoir é obter deles a melhor participação possível, transformá-los em grandes actores. O resultado é uma sublime representação realista do quadro do grande classicismo cinematográfico. Aliás, e parece que vem a talho de foice, é a mesma coisa com a Ingrid Bergman que, até à Elena e os Homens não se notabilizara exactamente pelos seus invulgares predicados de grande actriz. Isso não interessa ao Rossellini. O actor é apenas um dos instrumentos de uma maiêutica que visa essencialmente a interrogação dos fundamentos ontológicos do cinema. Em suma, e voltando com o fio à meada: a guerra destruíra por completo todo o processo produtivo da indústria cinematográfica italiana e foi necessário repartir do zero para que, enquanto o pau foi e veio, ou seja, enquanto não se consolidaram os novos reagrupamentos industriais, o cinema pudesse encontrar uma nova face e para que nada pudesse voltar a ser como dantes. O público, cansado de ilusões encantatórias, acolhe este cinema que parece brotar da própria vida e que, cotejado já por todos os arrivismos, iria, num ápice, conhecer a sua degenerescência. Ainda estamos só no início dos anos 50 quando Hollywood, contra natura, tenta responder à investida com o neo-realismo tardio dos Marty, das Teresa e quejandos. Não foi, como se sabe, o melhor caminho e a hora das multinacionais ainda não soara, mas a noite já começar a cair sobre o velho Olimpo: é a crise dos grandes estúdios, a era das stars rebeldes, o surgimento da Escola de Nova Iorque, a procura de mão-de-obra mais em conta nos mercados de trabalho europeu, etc.


Entretanto, pulverizadas e diversificadas as regras e os nodos produtivos, quebrada a rigidez dos preconceitos económicos, era chegada a altura de o nosso homem continuar a sua viagem por sendas bem mais obscuras, as que o levariam a despir o cinema de todas as roupagens que lhe são alheias, a confrontá-lo com a sua própria liberdade para que dessa nudez e desse confronto irredutíveis emergisse como única realidade a sua própria realidade. Estamos em 1953, não é o fim da viagem, uma viagem que percorre o cinema e irá percorrer a televisão, mas por aqui me fico, com aquela estranha sensação de, como diria o Cesariny, “nunca ter embarcado / ou só ter embarcado com velhos”.


MSF – Julgo que te terás quedado pela Viagem em Itália, mas nós estamos em Portugal e, entretanto, aconteceram muitas coisas…


JCM – Não me sinto habilitado a contar a história toda. Aliás, acho esquisitíssimo que não exista uma história do cinema minimamente legível. Não há nada assim no género do que o [Giulio Carlo] Argan fez com a Arte Italiana, pois não?


MSF – É capaz de não haver, mas tenho a impressão de que isso também seria uma longa história.


JCM – Parece que há uns opúsculos com uns subsídios, mas não devem ser subsídios que me interessem grandemente…


MSF – O teu subsídio para a compreensão do Rossellini não é mau…


JCM – Achas? Ninguém me agradece. E ainda se podia baralhar tudo e dar de novo. Outro dia li uma coisa do João Bénard em que ele dizia que a única luz que Veneza não convoca é a luz do Nosferatu e as sombras que desenha a inquietar a harmonia arquitectónica das ruas de Florença. Estou-me a lembrar do episódio florentino da Paisà.


MSF – O Rossellini é inesgotável. Não é por acaso que provocou as discussões mais apaixonadas da história do cinema, pró e contra.


JCM – E ainda provoca. Ainda se diz o piorio e a razão é muito simples: nunca fez filmes que se parecessem com bons filmes, como estes que agora se fazem. Foi sempre tudo muito claro. Nunca ninguém se sentiu enganado. Ele queria fazer apenas aqueles filmes e aqueles filmes pareciam uma grande merda, logo, eram desancados. Depois havia uns malucos que diziam, que não senhor, que não era tanto assim, que aquilo até era do caneco, que os filmes eram belos à força de serem justos. Hoje é diferente. Toda a gente quer fazer bons filmes, e isso é um disparate pegado. Não é possível nem com a melhor das boas vontades, mas pode-se imitar um bom filme. Acabará sempre, por muitas voltas que se lhe dê, a parecer-se com um bom filme.


MSF – Queres citar exemplos?


JCM – Nunca na vida. Seria incapaz de cometer a injustiça de deixar alguém de fora. São sempre os manos Taviani a ter de pagar as favas? Já estou farto. Os críticos e investigadores é que devem arrumar estes assuntos. Eu não sou crítico. Ando aqui para desarrumar.


MSF – Talvez seja chegado o momento de te colocar a pergunta sacramental…


JCM – Antes sacramental do que crucial…


MSF – O que achas da presente situação do cinema português?


JCM – É uma situação de relativa segurança e de relativo conformismo.


De relativa segurança porque é uma actividade que o Estado continuará a manter financeiramente, uma vez que, de acordo com o enunciado no preâmbulo do Despacho Normativo nº14/87, essa manutenção assenta num duplo reconhecimento, o de, por um lado, ser uma actividade que devido a circunstâncias conjunturais não se basta a si própria e, por outro, de essa actividade ter por objecto a produção de bens culturais que não só são “presença marcante e indispensável da cultura portuguesa e da cultura dos Portugueses” como “contribuem significativamente para a imagem externa de Portugal”. Ora, isto não é propriamente uma receita de permanganato aviada com o rótulo cautelar de uso externo pelo boticário da esquina; é um verdadeiro Arco do triunfo cavaquista. É inimaginável um atrevimento político que deponha o que Cavaco pôs, que desconheça o que Cavaco reconhece. De relativo conformismo porque esta dupla dependência económica e política parece ser incapaz de vencer a sua própria estagnação e de gerar impulsos que rasguem um horizonte meramente umbilical. O IPC é um pronto-a-vestir de contribuintes cinematográficos de uma imagética patriótica e bempostinha.


MSF – O que acabaste de afirmar parece, por um lado, estar em oposição com a grande maioria dos teus colegas que, precisamente, se queixam da escassez de meios que lhes são proporcionados para fazerem os seus filmes e, por outro, parece ser desmentido pela ameaça recente de abolição do adicional que pairou sobre o cinema português…


JCM – Já me chegaram aos ouvidos ecos de jeremíadas para todos os gostos e feitios. Para todas as bolsas, também. Não me comovem. Faz parte das obrigações mínimas de um cineasta o conhecimento da economia do filme que quer fazer e adequá-lo aos meios de que dispõe. Essa questão é uma falsa questão. Quanto à ameaça de abolição do adicional confesso, e para ser franco, que me deu uma enorme vontade de rir.


MSF – Mas houve quem não lhe achasse assim tanta graça.


JCM – Há um provérbio chinês que diz que chora quem pode e ri quem quer. Eu não preconizo a panaceia que insinua a abolição do adicional e o do subsequente passatempo do IPC. Incluo-me, com alguma indiferença, no anonimato de uma maioria conservadora que entre um diabo conhecido e um desconhecido, dará sempre preferência ao conhecido. É esta uma atitude resignada? É, indiscutivelmente, mas é a inevitável resultante de uma velha incapacidade, a de, em devido tempo, os agentes cinematográficos delinearem um pensamento conjunto que sistematizasse minimamente as múltiplas vertentes produtivas de uma cinematografia nacional. Goste-se ou não, há que reconhecer que o único a fazê-lo foi o Dr. Salgado Matos. Lamento dizê-lo publicamente – porque, de algum modo, é uma declaração de impotência – mas, pela parte que me toca, não tenho e não vejo alternativa credível, isto é, que não seja movida por sombrios interesses particulares, ao terrorismo burocrático instaurado pelo Dr. Matos. Voltando à hipotética abolição do adicional, assiste-me o direito de não ser especialmente assustadiço, talvez por ter farejado antecipadamente o feliz desfecho. Soube depois, aliás sem surpresa, que o Dr. Matos também tinha ganho com o susto. Radiosa, sim, foi a aparição da Vénus calipígia que, de pronto, amansou as hostes ululantes e já roufenhas de tanto ó tio! ó tio! pese o facto – Deus me perdoe! – de me ter deixado mais roxinho que o Senhor dos Passos.




MSF – Que Vénus é essa?


JCM – Refiro-me à sveltissima figura que secretaria a cultura local. Tens de convir que ostenta as mais belas nádegas do Império. Nádegas imperiais.


MSF – Espero que, apesar do desvio mitológico, isto não seja para cortar…


JCM – Nas tintas. O alibi mitológico não dá prisa. O enlevo poético já tem dado, mas esse é outro espanto. Isto é só decrepitude: “A carne dos faunos não é para nós; nem a visão dos santos…” – Ezra Pound.


MSF – Não sei se faz parte da lenda, mas recordo-me de ter ouvido contar que antes de acederes ao cinema fazias poesia.


JCM – Nunca deixei de o fazer. O problema é que a poesia portuguesa estava cheia como um ovo – havia o Carlos de Oliveira, o Herberto, o Cesariny, a Dona Sophia, a Luiza Neto Jorge – tudo gente com umas boquinhas esquisitíssimas, e apercebi-me logo que, em caso de diarreia, ali não me safava. Houve outras debandadas. No cinema não havia ninguém. Havia o Oliveira, mas ainda não tinha descido ao povoado. A única coisa que se conhecia do Porto era um tal Jaburu que dava uns pontapés na bola num clube que, à época, se arrastava penosamente pelos distritais. As mães diziam aos filhos: “Se não comes a sopa chamo já o Jaburu!”. No cinema não havia nada disto: era a terra arável do sonho. Bastava dar um pum para parecer que tudo germinava. Levei um certo tempo a descobrir que não era tanto assim, que era infinitamente mais complicado, mas já não havia nada a fazer: tinha caído na esparrela. Seja como seja, isto dá-me alguma legitimidade para tentar fazer um filme sobre um tanso que se convence que bebeu da fonte de Aganipe e linfa miraculosa do conhecimento poético, esquecendo-se que esta merda está toda inquinada.


MSF – Por acaso, isso não tem a ver com o teu próximo filme? É que eu ia precisamente perguntar-te em que pé está o teu próximo filme.


JCM – Ainda está no pé de quem gatinha. Não está, em suma, convenientemente preparado.


MSF – Mas não é uma exigência do financiamento automático, a da preparação prévia?


JCM – Lá isso é, mas nos frescos do Ambrogio Lorenzetti a clemência aparece como um dos atributos alegóricos do bom governo. Verdade se diga que é esta uma reflexão apropriada a uma esplanada de Siena; ignoro se a sua pertinência se coaduna com uma instituição sita no coração do Bairro Alto, mas em caso de dúvida pode-se sempre inquirir junto de quem de direito. Uma coisa é certo: muito mau seria se a minha exigência face a um filme fosse pautada por exigências institucionais.




S – O financiamento automático veio, por um lado, desdramatizar a arbitrariedade do julgamento prévio, que é apanágio da modalidade de assistência financeira por concurso e, por outro lado, possibilita um jogo combinatório que se traduz num aumento e na diversificação de produções anuais.


JCM – Esqueceste-te de mencionar o financiamento excepcional que, de acordo com o regulamentado, contempla a “natureza” do projecto. O automático é pérfido: obedece ao secretismo de uma espionagem e contra-espionagem dos valores financeiros solicitados por terceiros. O selectivo é humilhante: obedece a um confronto valorativo, no quadro de uma judicação híbrida, sumária e inapelável. O excepcional é glorioso: obedece a um certificado político de condecoração jubilatória. Dentro desta sucessão de obediências a que, tristemente, chamo as regras do pãozinho, prefiro, do mal a menos, as da humilhação. Ganha-se melhor, são as mais bem pagas e as mais conformes à minha predisposição crística. Já vi demasiada gente ferida para achar que este não é um espectáculo especialmente engraçado. É um espectáculo duro e sórdido, e espero que este dito também não seja para cortar.


MSF – Gostava de aclarar a relação cinema-poesia que pressinto estar no horizonte do teu próximo filme. O poeta é alguém que utiliza uma linguagem particular, um sistema verbal que cristaliza em palavras.


JCM – Já me tramaste. Tive esse pressentimento. O princípio básico da poesia é a imanência do poema. Vejamos: presumo que te irás deliciar não digo tanto, e parafrasear Diderot, com o paradoxo do comediante como o chamado paradoxo do pobre cineasta. Não vamos voltar à querela do “cinema de poesia” e do “cinema de prosa”, mas permite-me um pequeno flash-back de cerca de vinte anos. Se a memória não me trai, lembro-me de ter escrito algures, e com aquela imprudência que é apanágio de uma certa ingenuidade, que a poesia não se podia filmar; a qualidade poética, sim, eventualmente. Há um uso genérico da palavra poesia que é indistintamente aplicada, não só ao domínio de todas as artes como ao domínio de todas as formas de vida. Nesse sentido lato, talvez haja uma certa legitimidade em considerar “poético” tudo o que é passível de nos provocar emoções poéticas. O próprio “cinema de poesia” o que era? Era uma comodidade de investigação que designava todo o cinema infractor dos códigos narrativos mais ou menos instituídos, isto dito sem menos apreço. Pelo menos, há que reconhecer que o fenómeno cinematográfico era debatido a alto nível, hábito que, desgraçadamente, é uma raridade dos nossos dias, ou melhor: tornou-se críptico e restringiu-se a uma circulação clandestina e iniciática. Só interessa a judeus e a leprosos, não percorre os circuitos publicitários.


A violência não é uma característica singular da poesia; é uma característica comum a todas as formas artísticas. Também o cinema – pelo menos o da nossa devoção – se constrói em pressupostos violadores, em pressupostos de violência que, como é óbvio, são da esfera exclusiva da inovação formal e não devem ser confundidos ou conotados com noções que são da esfera espectacular da violência.


Para abreviar, talvez o cinema dispense, em suma, o cinema disto ou daquilo, ainda que essa dispensa seja apenas, e ao fim e ao resto, um mero reflexo propiciatório de uma particular necessidade: a de que tudo isto é incómodo porque tudo o que quer conhecer se situa para além da dimensão do já conhecido.


Eu tinha dito que a poesia não era filmável? Pois tinha. Era uma verdade precária, aliás verificada pelo filme a que correspondia. Hoje sabemos que a língua cinematográfica pode captar a própria substância poética, filmar o substantivo. Como? Tornando a realidade do poema no objecto da sua própria realidade. Estou a pensar em Der Tod des Empedokles de Huillet-Straub.


MSF – Quando tu falas em realidade, isso significa o quê? Que o cinema tem uma vocação circunscrita à reprodução de uma dada realidade, que pode ser a de um poema, a de uma paisagem ou do que quer que seja?


JCM – Eu vejo com alguma dificuldade uma criatura como o Leibniz, para quem a realidade não existia, a fazer filmes. A realidade em si – admitindo que existe -não existe cinematograficamente. Para existir cinematograficamente tem de haver prova cinematográfica dela. É a chamada prova do filme. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que há um sujeito que encontrou modo de estabelecer uma relação, uma determinada e subjectiva relação, com a objectual coisa filmada. Que relação é essa? Não me perguntes. Varia, é uma relação de caso a caso. Se pusermos um imbecil a filmar uma pêra poucas ou nenhumas probabilidades há de não ser imbecil essa realidade em forma de pêra. Não sei. Já papei de tudo em cinema, inclusive milagres. Já vi realidades cinematográficas habitadas por deuses e por demónios. O que agora me interessa é fazer um filme guiado pelo velho Marx, analisar dialecticamente as condições e contradições de um dado tecido social urbano, um tecido de pobreza, quando não de miséria.


Isto passa pelo conhecimento dos múltiplos estratos dessa realidade – económicos, culturais, sanitários, linguísticos, etc. – da geografia em que se confina e da sociedade mais vasta que a produz.


Isto ainda não dá filme, mas dá uma base de trabalho e, mais do que isso, um ponto de vista documental. Rigorosamente canónico e impermeável ao jogo ficcional.


MSF – Mas, tanto quanto julgo saber, o teu filme é uma ficção…


JCM – É, mas neste caso, se a ficção desaparecesse eu gostaria que ficasse a radiografia de uma matéria que não é ficcional. Na Crucificação do Cimabue que se encontra em Assis já desapareceu quase tudo; já só resta a raiva da expressão.




MSF – Para finalizar, gostaria que comentasses a frase de um crítico que, a propósito dos teus filmes, escreveu, contrariando assim outras opiniões críticas, que o pertenceres tu à escola de Manoel de Oliveira não sendo de todo injusto era de todo falso.


JCM – Eu não comento frases de críticos. Nem faz parte das minhas atribuições nem das minhas atribulações esse exercício. Se acedo a comentar a frase em questão é apenas, e só, por uma razão muito clara: é que o seu autor não é só um crítico; é também, e sobretudo, um companheiro cinematográfico, quiçá excessivamente generoso, da vida dos meus filmes. É, em suma, um taumaturgo que transforma em arte a sua própria vida. Um pouco à imagem e semelhança dos caracóis de Ponge, também ele segrega uma baba (e segrega-a literalmente) que, de pronto, se transmuda em cristais de prata.


Posto isto, é de todo falso que o primeiro filme que fiz seja o melhor filme português, mas não é de todo injusto que seja o primeiro de uma modernidade cinematográfica portuguesa. Refiro-me ao filme da Sophia, é uma descoberta relativamente recente e esta entrevista acabou, abrindo-se de par em par como o Moonfleet ao meu gosto polémico.
Post-scriptum – Deixem-me dizer que esta longa entrevista, de quatro intermináveis páginas, foi publicada no suplemento “Mais”, então dirigido por João Mendes, suplemento do jornal “Semanário”, de que era director Victor da Cunha Rego. Era, dizia-se, um jornal de direita. Eu ainda não tinha feito o luto do meu maoismo anti-capitalista e levei aqui uma lição de liberdade e abertura: todo o espaço, nenhuma censura."

in: https://paginanegra.pt/2019/01/28/ave-cesar/

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Maria Lamas e Ferreira de Castro_Correspondência


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Maria Lamas e Ferreira de Castro: uma relação longa e profunda


Maria Lamas e Ferreira de Castro: uma relação longa e profunda
A correspondência trocada entre os dois escritores e posteriormente depositada na Biblioteca Nacional não esclarece porque estão ausentes do espólio os romances inéditos ou mesmo algumas cartas de índole amorosa


Jornalista
15h0521 Jan 19

Uma amiga de Maria Lamas, Maria Antónia Palla, e duas cartas, uma da própria escritora e outra da filha, indicam que Maria Lamas e Ferreira de Castro terão planeado numa espécie de “ressurreição”, a concretizar através da publicação de um conjunto de cartas, 30 anos após o último a morrer (ver Revista do Expresso de 19 de Janeiro). Maria Lamas morreu há 35 anos e Ferreira de Castro há 45.

A jornalista, escritora e feminista também pretendia publicar livros que contariam o que não conseguiu dizer em vida, como foi anunciando em entrevistas nos anos 70 do século XX, depois de regressar do exílio em Paris. Não se sabe, porém, onde estão os livros; nem essas cartas “provavelmente amorosas”, como conclui o neto, o antropólogo e psicanalista José Gabriel Pereira Bastos.

Em 1982, Maria Lamas refere na carta à filha, Maria Cândida, o depósito na Biblioteca Nacional, e a filha responde-lhe que sabe dessa entrega na Imprensa Nacional. A família já tentou as duas instituições, mas nenhuma delas diz ter em seu poder tais documentos.

Carta de Maria Cândida, filha de Maria Lamas, à mãe de 28 de Fevereiro de 1982, onde se fala no depósito na Imprensa Nacional das cartas enviadas um ao outro, e da realização de uma escritura de que Álvaro Salema foi testemunha

Os registos que documentam a ‘amitié amoureuse’, que os dois alimentaram ao longo da vida, estão guardados no espólio que a família vendeu, depois de Maria Lamas morrer, à Biblioteca Nacional, e permitem concluir que o relacionamento entre os dois foi profundo e existiu até à morte dele, em 1974. São cartas que Ferreira de Castro lhe foi enviando, entre 1930 e 1973.

O escritor Ferreira de Castro, com quem Maria Lamas teve uma "amitié amoureuse"

Apesar de abrangerem diferentes períodos, as cartas de Ferreira de Castro reunidas no espólio de Maria Lamas têm hiatos significativos. Na Biblioteca Nacional existem 103 documentos, nos quais se incluem oito cartões de visita (onde Ferreira de Castro escreve uma carta a lápis), dois telegramas, dois postais ilustrados, uma fotografia do próprio de 1930, um texto acerca da obra de Maria Lamas "As Quatro Estações", um envelope com flores secas, um datiloscrito (cópia) com "Resumo da Obra", três cartas da mãe de Ferreira de Castro dirigidas a Maria Lamas, uma carta dirigida a "Monsieur Secretárie" a propósito da atribuição do Prémio Nobel da Literatura e um recibo. Há também uma carta rasgada, que apesar de tudo se consegue ler.

Neste grupo de documentos encontram-se pequenas cartas que Ferreira de Castro envia a Maria Lamas, a dizer-lhe que precisa de tratar de assuntos com ela no gabinete dele, no “O Século”, jornal no qual os dois coincidem durante um período, provando que se escrevem mesmo quando estão próximos um do outro.

A escrita é muitas vezes diária, ainda que durante períodos longos, e sem registo de ruptura entre os dois, não apareçam cartas. O neto de Maria Lamas, José Gabriel Pereira Bastos, acredita que “falta toda a correspondência amorosa trocada entre 1930 e 1938”, e que seria esse grupo que foi depositado na Biblioteca Nacional ou na Imprensa Nacional.


No espólio, há algumas cartas do início dos anos 30, nomeadamente as relativas a uma viagem a Londres e a Dublin, e a uma ida a Espanha como repórter de guerra. Na década de quarenta há cerca de uma carta por ano; e entre 1956 e 1959, e entre 1962 e 1966, não há nada a registar. As cartas terminam em 1973. Ferreira de Castro morre em 1974.

Maria Lamas desfilou no 1º de Maio de 1974 com o jornalista Mário Neves

Os livros que Lamas não conseguiu publicar

No espólio, organizado pela filha Maria Cândida, também não estão os livros que Maria Lamas anuncia numa entrevista publicada na revista “Vida Mundial”, em 1973, da autoria de Regina Louro: “Tenho agora em mãos uma obra começada em Paris. Chama-se ‘Tempo de Exílio’ e espero ter o livro pronto no fim do ano. Além disso, tenho já concluído um romance, ou melhor uma trilogia. ‘As Confissões de Sílvia’, de que apenas encontrei publicada a primeira parte: ‘O Despertar’. As outras duas ‘O Caminho’ e ‘A Luta’ não podem, por motivos, que a minha vontade não basta para remover, ser publicadas”.




Maria Lamas foi a coordenadora de uma publicação periódica, "As 4 Estações", da qual só sairam três dos quatro números previstos. Entre os colaboradores contavam-se Ilse Losa, Matilde Rosa Araújo e Júlio Pomar. Aí foi publicada a primeira das três partes do romance "As Confissões de Sílvia". Outras duas permanecem inéditas

Em 1976, Maria Lamas regressa ao tema, em entrevista a Dionísio Domingos, na revista ‘Flama’: “Sabe, eu levei a minha vida a pensar e, durante cinquenta anos, não pude falar. Os meus livros não podiam ser publicados sem dar folha por folha à censura. Era como nos jornais. Quando eu fiz ‘As Mulheres do Meu País”, ‘As Mulheres do Mundo’”.

O jornalista fala-lhe no livro “As Confissões de Sílvia” e Maria Lamas diz: “É a história da mulher daquela época: São três volumes, ‘O Despertar’, ‘O Caminho’ e ‘A Luta’. Dá a trajetória da vida da mulher nesse tempo. Eu sou uma das mulheres que despertou. Era como as outras: sou de classe média. Abri os olhos e nunca mais os quis fechar. Ainda hoje, há muitas dificuldades a vencer.”

Em Sintra, no Museu Ferreira de Castro, também há cartas de Maria Lamas a Ferreira de Castro que corroboram este relacionamento, nomeadamente um postal enviado de Colares. E no espólio da escritora há duas cartas da mãe de Ferreira de Castro dirigidas a Lamas, a agradecer-lhe por lhe ter dado notícias do filho quando este recupera de uma septicemia no hospital.

Ferreira de Castro, um ser instável

Nas cartas enviadas a Maria Lamas, Ferreira de Castro revela-se um homem acossado pela tristeza e pela depressão. Numa delas o escritor anuncia à sua “boa amiga”: “Se receber esta missiva é sinal de que eu não verei mais os seres humanos como meus irmãos”. Logo de seguida acrescenta: “Devo dizer-lhe que até ao último momento pensei na grandeza da sua alma, na nobreza dos seus sentimentos, na fidelidade do seu afecto e nessa luz inesgotável (...) Partirei com essa recordação, com essa oferenda extraordinária que o destino me deu”. Não há mais assunto. Não é de uma viagem que Ferreira de Castro fala, mas de algo que não pretende claramente nomear. A letra é firme, e parece ter sido desenhada por um gesto veloz, de quem escreve um recado.

Estando guardada no espólio de Maria Lamas, pressupõe-se que esta carta, datada de 1953, tenha chegado ao destino, ou seja a Maria Lamas. Ferreira de Castro morre muitos anos mais tarde. Mais precisamente em 1974, pouco depois de ter testemunhado o 25 de Abril e de ter desfilado na Alameda durante o 1 de Maio, onde foi entrevistado pelo realizador brasileiro Glauber Rocha.

A possibilidade de suicídio que essa carta, de 1953, sugere não será uma surpresa para Maria Lamas. Vinte anos antes dessa epístola, Ferreira de Castro já quisera tentar o suicídio, na sequência da morte, por razões até hoje desconhecidas, da sua primeira mulher, Diana de Liz. Uma enorme tristeza toma conta do seu espírito.

Há outras razões além da morte que pesam sobre ele, e que passam pela estranheza que sente perante si mesmo. Desse espírito que o toma e que poucas alegrias lhe concede, Ferreira de Castro vai falando ao longo da viagem à Grã-Bretanha, que faz em 1930, na companhia do amigo e romancista Assis Esperança. Ferreira de Castro não esconde a tristeza com que lida, embora tente aquietar a “boa amiga”, garantindo-lhe que já não é o mesmo homem de Lisboa.

Chega a escrever a Maria Lamas, de manhã, à tarde e à noite, como acontece no dia em que parte de Londres com destino a Dublin. A viagem dura apenas um dia, mas alimenta várias cartas. Ferreira de Castro escreve-lhe na véspera da partida, na manhã em que parte, durante a viagem de comboio, durante a viagem de barco, e ainda à chegada, deslumbrado com a paisagem: “Saí às oito e meia de Londres e cheguei à costa às duas da tarde. A paisagem, esplêndida! Soberba! Nem nisso, minha amiga, nós podemos bater [lhes]. Que surpreendentes panoramas. Embebidos numa doçura enorme, numa leve melancolia. Ladeámos algumas praias famosas aqui, aí ignoradas. São verdadeiros recantos de sonhos. Que pena que tive que as pessoas que eu mais estimo não viessem comigo. Foi a única nuvem negra esta manhã.”



Ferreira de Castro chega a enviar uma carta a Maria Lamas em que insinua a possibilidade de se suicidar

Nesse dia, Ferreira de Castro confessa-se muito mais confiante naquilo que é, no modo como os outros o veem. Um breve episódio dá-lhe um novo alento, e é o início de uma viagem de regresso a si próprio: “Eu sentia que o meu sorriso, que doida a minha expressão, sem ser afectado, sem ser estudado era cativante. Eu não me via ao espelho, mas sentia que era assim... Via-me de soslaio, nos olhos de duas inglesas, que almoçavam numa mesa vizinha e que me fitavam (...) com uma insistência que eu próprio, homem, não me sentia capaz de ter com uma mulher. Não duvido nada que essa loira sonhe esta noite comigo. Eu é que tenho a certeza que não vou sonhar com ela, porque não gosto das loiras, contudo gostava que você me tivesse visto esta manhã, sentado no comboio. Que querido está o F. de Castro (...) – diria a minha amiga. Também sou da mesma opinião. Isto deve ser do balanço do navio, que faz andar a cabeça à roda... E ao escrever estas últimas linhas verifico que me estou afastando de mim como o barco em que sigo se está a afastar da Grã-Bretanha. Regresso a mim próprio. Acendo um cigarro – escrevo-lhe do mar, e já sou outro. Estive alguns minutos a pensar. Compreende? Devo chegar a Dublin às seis horas da tarde.”

O episódio é um raio de luz, tendo em conta que a nuvem negra não é um raro acontecimento na vida dele. Ferreira de Castro é um homem que se sente muitas vezes deprimido. Numa dessas primeiras cartas confessa-se resignado perante o facto de ser “um ser instável”, ainda que isso venha a propósito da solidão, ou das várias solidões que diz ter sentido em Lisboa, e que no meio do mar, perante a imensidão, parecem mais fáceis de aceitar: “Há aqui um silêncio de casa abandonada” (...) Se não fosse o mar dir-se-ia que estávamos na simples residência dum excêntrico que mandou fazer uma casa com o feitio dum navio. Quereria escrever-lhe muito mais ainda, mas estou com pena do meu amigo, a quem abandonei há mais de uma hora e que só por acanhamento não me veio interromper ainda, (...) pois como já lhe disse tem medo de estar sozinho. Vou tentar habituá-lo a conhecer a solidão no mar.”

Uma solidão atenuada pelos jogos de Bridge que numa ocasião em que joga com o único sul-americano dos “29 companheiros de travessia” se vê obrigado a defender a “honra” nacional, conforme descreve ao detalhe numa das cartas.

Ferreira de Castro quer romper com o passado: “Antigamente eu gostava, por vezes, de viver para poder acumular recordações para o futuro. Hoje, talvez, gostasse de “destruir todo o meu passado, todas as minhas recordações –Todas!!”

Há uma recordação que lhe é particularmente dolorosa. A do lugar onde nasceu, Ossela, e de onde partiu ainda criança, depois da morte do pai, para ir trabalhar para um seringal no Brasil. (Ao mesmo tempo, também Maria Lamas, se perdia noutro fim do mundo, em África.)"

in: jornal "Expresso"




terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Espaço_A música de Bryan May





VIDA E FUTURO

Já há fotos do lugar mais distante do sistema solar. E Bryan May compôs a música


A sonda da NASA, New Horizons, resistiu no mundo gelado Ultima Thule e entrou em contacto com a Terra a 6,5 mil milhões de quilómetros. A mensagem foi captada pelas antenas de Madrid







Debaixo de aplausos, os responsáveis pela missão, chefiados pelo cientista Alan Stern, deram a notícia
© NASA / JOEL KOWSKY

Valentina Marcelino

01 Janeiro 2019 — 17:19


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Se o céu não tem limites, a sonda norte-americana da NASA acaba de o demonstrar. Num voo histórico, a New Horizons acaba de alcançar o ponto mais distante jamais alcançado por uma nave terrestre: Ultima Thule, para lá do limite do Sistema Solar até agora conhecido, a 6,5 mil milhões de quilómetros de distância do Sol.


Neste dia 1 de janeiro de 2018, a sonda entrou em contacto com a Terra para confirmar o êxito do sobrevoo do mundo gelado conhecido como Ultima Thule. E durante a passagem, a New Horizons tirou vários gigabytes de fotos e registou outros dados, que serão enviados para a Terra nos próximos meses.


A mensagem de rádio da nave robótica foi captada por uma das grandes antenas da Nasa, em Madrid, Espanha. Nesta transmissão, que demorou seis horas e oito minutos a chegar, havia informações de engenharia sobre a situação da sonda, mas também era conformado que a New Horizons tinha executado observações autónomas de passagem aérea corretamente e que a sua memória interna estava cheia de dados.


Esta terça-feira poderão ser mostradas ao público algumas dessas imagens.





Ultima Thule está situada no designado cinturão de Kuiper - a faixa de material congelado que orbita o Sol a mais de 2 mil milhões de quilómetros do que o oitavo dos planetas clássicos, Neptuno; e 1,5 mil milhões de quilómetros além do planeta anão Plutão, que a New Horizons visitou em 2015.


Estima-se que existam centenas de milhares de membros da Kuiper, como Ultima, e os cientistas acreditam que, devido ao seu estado glaciar, conterá certamente pistas sobre as condições de formação do Sistema Solar, há 4,6 mil milhões de anos.


Isto porque o Sol é tão fraco nesta região que as temperaturas estão abaixo de 30-40 graus do zero absoluto. Como resultado, as reações químicas praticamente paralisaram. Ultima está, por isso, num congelamento tão profundo que provavelmente está preservado no estado em que se formou, facto esse que vai ajudar a entender as origens do nosso sistema solar.
No espírito Queen


Esta conquista do espaço foi acompanhada de perto por Bryan May, guitarrista da lendária banda de rock Queen. May é astrofíosico e cientista participante da missão New Horizons. O seu interesse prende-se particularmente nas imagens estéreo captadas pela sonda.


Mas esta missão serviu também para o inspirar a lançar uma nova música para celebrar a New Horizons no dia de Ano Novo. "Esta missão representa para mim o espírito de aventura, descoberta e investigação que é inerente ao espírito humano", disse May durante a contagem regressiva para o sobrevôo. Ele escreveu uma música para homenagear a missão chamada "New Horizons (Ultima Thule Mix)".

A margem de sucesso desta operação era muito limitada, porque havia apenas uma única hipótese de a sonda sobrevoar o Ultima e captar as imagens, deslocando-se à velocidade vertiginosa de 14 quilómetros por segundo (cerca de 50 mil por hora)


"Tudo o que vamos aprender sobre Ultima - da sua composição à sua geologia, como ela foi originalmente criada, se tem satélites e uma atmosfera, e esse tipo de coisas - vai ensinar-nos sobre as condições originais de formação do Sistema Solar, como evoluíram e como cresceram todos os outros objetos que orbitamos, voamos e pousamos.Ultima é único ".


in: "DN"

Calouste Gulbenkian_Biografia

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Como Salazar ofereceu a imortalidade a Gulbenkian

A primeira biografia sobre o multimilionário Calouste Gulbenkian chega no dia 3 às livrarias econta minuciosamente a história de como Salazar capturou a maior fortuna que veio para Portugal.

Jonathan Conlin é o autor.