sábado, 8 de fevereiro de 2020

Ricardo Domeneck



[SOBRE O TEXTO] 
Este é um poema inédito, ainda
sem previsão de publicação em livro.

Pintura - Patrícia Brandstter

No começo era como uma areia
movediça. Um angu de caroço.
Pouco a pouco se engrossou
o caldo de enxofre nesse inferno.
Dia a dia cresciam os bolores
nos pães amassados pelo demo,
mas críamos ser nossas flores.
Ali vivíamos. “É a nossa terra,
nossa vida”. Semelhava um poço
de onde, ao menos, um sustento
colheríamos pra nosso proveito,
o nosso fim de anciãos bobos.
Cantava-se um samba glorioso.
Marchava-se de verde e amarelo
num dia esquecido de setembro.
Vinham as marés cheias de dejeto
e a cada janeiro, a cada agosto,
depositavam em nossas covas
a sua argamassa. Os seus tijolos
coziam-se aos poucos no calor
brando de nossa grã-paciência.
Hoje cá estamos, com o cimento
que nos abotoa até o pescoço.
Olhamos a paisagem lacrimosos.
Que belo país! À linha dos olhos
enxergamos já os sinais de fogo
e além dele um colosso deserto.
Ah! nosso colosso, nosso colosso.

Ricardo Domeneck é poeta; seus livros mais recentes são ‘Odes a Maximin’ (2018) e ‘Doze Cartas’ (2019), ambos pela Garupa Edições