«para mim a poesia serve para cantar, para cantar sobre o amor, sobre o que for. A prosa serve para contar. Quando quero contar uma história escrevo em prosa.» - Samuel Pimenta
Naufrágio
Por toda a noite o corvo cantou. Toda a noite o uivo do mar e toda a noite o medo dos homens. Por toda a noite o corvo cantou. As pedras, o sal, a morte. Os navios que jamais irão nascer no horizonte. Por toda a noite o corvo cantou.
O naufrágio estende-se na praia. Não corre leite nem mel na areia. Apenas os corpos, as águas tristes, os peixes. Por toda a noite o corvo cantou. Ainda há corvos que cantam para guiar os mortos.
Alcanhões, 19 de Outubro de 2014 – 00h50m
A sibila
As raízes das árvores entoam o som único da terra
e as aves emergem firmes, musicais.
Profere o cântico sagrado e fixa o instante
há-de nascer a voz e a profecia.
Possa a água ser luz no teu rosto
e o açúcar morar em cada sílaba que assobias.
Que teus olhos apenas vejam o bem e o bom no mundo.
As raízes das árvores são os teus pés sobre os montes
e as aves os teus gestos que emergem em espiral.
Dançam.
Danças.
O céu dança diante do teu nome
e o teu nome é o longe sem traço ou definição.
As raízes das árvores entoam o som único da terra
e as aves emergem firmes, musicais.
Nasce a sibila.
A palavra impõe-se
é teu o destino.
No dia em que a sibila morrer
o silêncio tomará de novo a terra.
Lisboa, 9 de Outubro de 2014 – 00h45m
(inédito)
Pórtico
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro.
As estrelas d’alva são mestras, guias peregrinas
e o magma que nos dilata e endurece a raiz que nos liga
a deus, ao espírito sagrado dos filhos que encarnam
uma e outra vez.
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro
sementes que o orvalho nutre e o luar amolece
luz hipnótica da mãe que nos ama do alto.
Sobre as pedras em bruto a brancura do talhe e da mestria.
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro
a liberdade a vida e o esplendor
matriz de um sonho limpo, da profecia cumprida.
Somos os novos homens da madrugada que um sorriso anuncia
faróis que ao bruar das vagas jamais se apagarão.
Alcanhões, 19 de Maio de 2014 – 16h06m
in “GeoMetria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014
Fénix
Ísis rompeu
a margem dos rios
e já não espera
o corpo a caixa
ou as partes.
Sob a esfinge
chorou o sangue
e sobre o Egipto
abriu as asas.
Nenhum deus
ouse domar
o trono o laço
e o ventre.
Ísis nasceu mulher
e nunca os reis
a verão curvar-se.
Alcanhões, 7 de Abril de 2014 – 20h37m
in “Ágora”
Sílex
Mão e pedra.
Força do
gesto que
batebate e
rompe a
forma.
O gume rudimentar da
lasca que parte e
sangra, do
sílex que
quebra e
nasce, novo,
para cortar
o rude
golpe.
in “GeoMetria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014
......
Tífon
Há um desejo latente na respiração dos monstros
à espera.
Sabem ler os astros, decifrar as línguas dos homens
e ciciar o canto dos pássaros.
Aprenderam como embalar os olhos dos outros
e caminham invisíveis rumo ao sopé da montanha
que anseiam escalar.
Querem sentar-se no trono
ascender.
Ulisses
Esperar pelo regressosaber que virás com a
visão
viste o mundo abrir-se
de como aplicar o gesto
e banir o mal.
Esperar que regresses
que digas o teu nome
e decretes o fim do
exílio.
As
Plêiades
Julgava a fuga um acto de abandonode desistência e suspensão
dos passos.
Julgava-a cobarde e vil.
Não via como pode ser o pórtico que nos salva da morte
o caminho para nos tornarmos luz
e ter domínio sobre as sombras.
A forma dos pássaros
Fosse a espuma do mar
as penas das aves
e o bruar o canto do gaio
do corvo e da cotovia.
Se o céu fosse feito de ondas
tomariam a forma dos pássaros.
Lithos
Parte.
Golpeia a
vida e dá-lhe
a forma, o liso
traço da perfeita
escultura.
Molda o firme
mármore
como se de barro
fosse.
Sê pedreiro de
ti, mestre
da simétrica
obra que
és.
É tua a
pedra, a mão
que a talha.
in “Geo Metria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014
Correr até que o gato fale como um homem
I
Correr em círculos enquanto o gato nos lê o peso de cada passo e nos vigia a fadiga até cairmos, até que a terra que pisamos fique gasta e se afunde, até que vislumbremos o núcleo do início e nos deitemos de olhos fechados à espera que o tempo sobre nós corroa os pés que tanto correm para não chegar a lugar nenhum.
II
Correr até que o gato fale como um homem e segurar-lhe cada palavra como se agarram os pássaros entre as mãos. Cada palavra proferida por um gato tem mais valor que um poema dito por gente.
III
Correr em círculos como o gato e nunca mais proferir um som. O silêncio é o maior poema de quem já nada espera além da morte.
in “Cintilações da Sombra III – Antologia de Poesia”, Editora Labirinto, Fafe, 2015
Samuel Pimenta
.............
A morte da laranja
Uma laranja é uma esfera
que eu corto em dois pedaços.
Antes de cortar a laranja ao meio
ela já morria no ramo da árvore.
Alcanhões, 19 de Novembro de 2014 – 02h47m
(inédito)
Khora
Que alimento nos sacia
e nos nutre a altivez?
O fruto da árvore
o ouro
ou a virtude?
Cultivem-se os campos
com o cereal dos mestres.
No dia da colheita
ceifaremos um novo
homem.
Lisboa, 4 de Junho de 2014 – 01h09m
in “Ágora”
Gineceu
Dentro de quatro
arestas se fecham
as mulheres.
Dentro de quatro
arestas aguardam servis
emudecidas.
Os vasos, os cálices e as ânforas
não são barro másculo e
viril.
Esperam que lhes nasça
um falo para que tenham
lugar entre os homens?
Lisboa, 22 de Maio de 2014 – 15h15m
in “Ágora”
O círculo
Existe um círculo no chão desenhado a
giz e uma criança que brinca lá dentro. Essa criança sou eu. O céu exibe
o rubor de um entardecer de outubro e nenhuma ave abraça o chão com as
asas. Todas as aves dormem em árvores ocas e grutas sem som. Uma
serpente entra no círculo e a criança olha-a de frente. Há nos olhos da
criança o fogo indígena de quem dá sinal que existe. A serpente rasteja
sobre o giz desenhado no chão e já não existe o branco do círculo,
apenas as escamas de uma pele com fome. O eterno abraço da morte. Os
olhos da criança não queimam mais, apagou-se o fogo. E do abraço da
serpente emergem farpas, as mandíbulas de quem é mais forte que nós.
As serpentes são lanças que nos furam.
Alcanhões, 23 de Dezembro de 2014 – 13h30m
(inédito)
Génese
Possas olhar a larva
como se olham os espelhos.
De todos os traços do mundo
saiu uma linha do teu rosto.
Alcanhões, 19 de Novembro de 2014 – 02h15m
(inédito)
Que bom ter encontrado aqui o Samuel Pimenta, poeta com quem eu me identifico nas palavras e nas emoções. Quem bom trabalho de pesquisa fizeste meu Amigo Luís...Obrigada.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.