Germano Oliveira
Editor online, in:"Expresso Curto"
"O que eu ando a ler
Um dia disseram-me na escola que o Bruno Pinto tinha morrido, eu nem 10 anos tinha e ele também não, eu adorava o Bruno e o vício dele de comer fatias de fiambre enquanto jogávamos Mega Drive, eu só conhecia o paladar do fiambre dentro do pão e desconhecia quão melhor sabia dentro de nada, o Bruno ensinou-me isso e hoje parece-me uma metáfora esmagadoramente simples sobre tudo o que desperdiçamos na vida quando não fazemos coisas diferentes com as coisas que temos, hoje parece-me também um eufemismo simplesmente esmagador sobre as pequenas coisas rotineiras que nos fazem tanta falta quando perdemos essa coisa maior que são as pessoas das nossas vidas.
Explicaram-me que ele tinha morrido no hospital: nós vimos a ambulância levar o Bruno da escola, ele estava no recreio quando bateu com a cabeça, caiu mal, logo ele que vivia tão bem, mas afinal o Bruno estava vivo, a morte dele durou duas horas, o enfermeiro trocou nomes e enganou o diretor da escola, não se faz, e consequentemente a professora tinha enganado a turma, não o queria fazer, e quando o Bruno entrou na aula no dia seguinte parecia um anjo, acho que houve palmas, e quando o Bruno se sentou na carteira parecia só o meu amigo, acho que ele disse uma piada, o Bruno era engraçado.
Escrevo sobre ele porque foi a primeira pessoa importante da minha vida que morreu e a única dessas todas que ressuscitou, é a minha melhor história sobre a segunda oportunidade que desejamos tão desesperadamente quando já só conseguimos ressuscitar memórias: “Nalgumas tradições culturais, ou pelo menos na que me calhou, falar de um morto supõe um forte e áspero grau de despudor. De maneira que fiquei sozinho com o meu pai. E eu sou a única pessoa neste mundo (...) a lembrar-se dele diariamente. E a contemplar o seu desvanecimento, que acaba por se transformar em pureza. Não é que me lembre dele diariamente, é que ele está em mim de forma permanente, é que me retirei de mim mesmo para lhe dar espaço”. Manuel Vilas, que escreveu este “Em Tudo Havia Beleza” de onde vem a citação, tem histórias melhores que a minha mas sem segundas oportunidades - publicou um diário violento e não ficcionado sobre o desamparo irreparável que é a morte de uma das fontes de tudo, um pai, o meu pai, o seu pai, do pai que se ama incondicionalmente mas que condiciona a nossa maneira de amar, e de um filho, você, eu, que descobre no próprio carácter o carácter do pai:
“Um dia o meu pai deixou de se preocupar com o seu carro, um Seat Málaga antigo. Sempre se angustiara obsessivamente com o seu carro, com cuidar dele, com tê-lo sempre em perfeito estado. Abandonou-o numa garagem e deixou de conduzir. Fui eu próprio ver o carro, e estava cheio de pó. Disse-lhe: ‘Papá, o carro está cheio de pó’.
Olhou para mim, e parecia que isto sim lhe causava mossa.
‘Era um bom carro, faz o que quiseres com ele’, disse-me.
Ao desligar-se do seu carro, percebi que o meu pai ia morrer em breve; percebi que aquilo era o fim.
Foi um dos momentos mais tristes da minha vida, o meu pai estava a dizer-me adeus por interposta máquina.
Em vez de me dizer ‘temos de falar, isto está para acabar’, disse-me ‘era um bom carro’. Meu Deus, que maravilha. Viesse de onde viesse o espírito do meu pai, estava tocado pelo dom da elegância, pelo dom do inesperado, pela ingénua originalidade.
Pelo estilo.
Sentei-me numa cadeira da cozinha e fiquei a olhar para ele. Fiquei muito nervoso. Muito angustiado. Só eu em todo o universo sabia o que significavam aquelas palavras, ‘faz o que quiseres com ele’.
Estava a dizer-me algo devastador: ‘Faz o que quiseres comigo, não percebo o teu amor’.
Não percebo o teu amor.
Não te amei o suficiente, nem tu a mim.
Fomos malditamente iguais”.
Mas ser maldito é uma honra, não sê-lo também:
“O meu pai morreu com setenta e cinco anos, viverei eu mais anos do que o meu pai? Estou convencido de que viverei menos, ou talvez precisamente os mesmos anos: setenta e cinco. Mas acho que não, que partirei antes. Parece-me uma descortesia vivermos mais anos do que o nosso pai viveu. Uma deslealdade. Uma blasfémia. Um erro cósmico. Se vivermos mais anos do que os que viveu o nosso pai, deixamos de ser filhos, é a isso que me refiro. E, se deixarmos de ser filhos, somos nada”.
Pai e mãe: se os seus ainda estão vivos, e que vivam para sempre, torne-se repórter da sua família e pratique jornalismo da intimidade - pergunte-lhes o que não sabe da vida deles, faça-o hoje, daqui a pouco, agora, já, pode ser jornalismo de investigação, “mãe, o que é que lamentas nunca ter feito?”; pergunte-lhes o que não sabe das descobertas deles, pode ser jornalismo musical, “pai, when love is gone, where does it go?”. A informação aqui não é poder, é afeto. Pai e mãe: se perdeu um ou os dois, torne-se romancista, imagine grandes acontecimentos, paixões, amores, desgostos, erros, conquistas, fábulas, tragédias, contrições e contradições na existência deles. A imaginação aqui não é mais importante que o conhecimento, é saudade. Somos tantas vezes tão pouco curiosos sobre eles e que erro isso é e arrependimento será, eu sou um arrependido e o Manuel Vilas igual: “A morte dos nossos pais é abjeta, é uma declaração de guerra que a realidade nos faz. (...) Enfim, seja como for, a única coisa óbvia é que, se tiveres de perguntar algo a alguém, fá-lo logo. Não esperes por amanhã, porque o amanhã é dos mortos”. E não costumam ressuscitar como o meu Bruno."
...…...
Em tudo havia beleza
Manuel Vilas
Penguin Random House Grupo Editorial Portugal, 01/03/2019
A história profundamente íntima e comovente de um homem que procura no passado o caminho para regressar ao presente.
"Melhor Livro do Ano" El País * El Mundo * El Heraldo * La Vanguardia
Manuel Vilas compõe, com uma voz corajosa, desencantada, poética, o relato íntimo de uma vida e de um país. Simultaneamente filho e pai, autor e narrador, Vilas escava no passado, procurando recompor as peças, lutando para fazer presente quem já não está. Porque os laços com a família, com os que amamos, mesmo que distantes ou ausentes, são o que nos sustém, o que nos define. São esses mesmos laços que nos permitem ver, à distância do tempo, que a beleza está nos mais simples gestos quotidianos, no afecto contido, inconfessado, e até nas palavras não ditas.
Falando desde as entranhas, Vilas revela a comovente debilidade humana, ao mesmo tempo que ilumina a força única da nossa condição, a inexaurível capacidade de nos levantarmos de novo e seguirmos em frente, mesmo quando não parece possível. É desenhando um caminho de regresso aos que amamos que o amor pode salvar-nos.
Confessional, provocador, comovente, Em tudo havia beleza é uma admirável peça de literatura, em que se entrelaçam destino pessoal e colectivo, romance e autobiografia. Manuel Vilas criou um relato íntimo de perda e vida, de luto e dor, de afecto e pudor, único na sua capacidade de comover o leitor, de fazer da sua história a história de todos nós.
Os elogios da crítica:
«Um livro magnífico, que é uma obra de arte sobre a vida. Mas não se sobressalte o leitor ou a leitora se, de vez em quando, tiver de suspender a leitura - para respirar, ir à janela olhar a rua, fumar um cigarro, procurar os seus mortos, como ele fazia. Voltará com ele. Porque a grande literatura é assim.»
Fernanda
de Abreu, Jornal de Letras
«Um retrato pessoal, que no fundo é um espelho muito bem conseguido da condição humana. Pelo estilo e pelo destemor, merece a mais alta das notas."
Nuno Costa Santos, Observador
«Magnífico, corajoso, vai partir-vos o coração.»
«Um retrato pessoal, que no fundo é um espelho muito bem conseguido da condição humana. Pelo estilo e pelo destemor, merece a mais alta das notas."
Nuno Costa Santos, Observador
«Magnífico, corajoso, vai partir-vos o coração.»
Javier Cercas
«Um livro que nasce da perda e, ao mesmo tempo, da luminosidade do amor.»
La Vanguardia
«Uma narrativa que chega ao coração da verdade e faz da vida de uma personagem um ensinamento universal.»
El País
«Uma confissão bela e autêntica, uma tentativa do autor de salvar a sua própria família através da verdade de um livro extraordinário.»
La Razón
«Este é um livro escrito com uma clareza e uma força portentosas. Nenhuma retórica, nenhuma mentira.»
El Mundo
«Um monumento de carne e nervos. O mais importante deste livro é o seu tratamento descarnado de uma história, das quedas do próprio autor, dos seus pais perdidos, dos seus filhos, da sua hesitação num mundo de costas voltadas para a literatura. O importante é que todos temos um caminho de regresso a um lugar de amor, que começa a desenhar-se enquanto a vida nos obriga a olhar para outro lado.»
Diário de Córdoba
«Ninguém deve deixar de ler este livro. É o livro do ano, num ano de grandes livros. O amor como cura. A pobreza como doença. A literatura como poção.»
Luisgé Martín
«Basta ler a primeira página para perceber que aquele grito de socorro vem do mais fundo de nós. O livro reclama-nos, porque, de certo modo, além de seus protagonistas, somos também seus autores. Descreve com palavras novas, ordenadas de forma insólita, aquilo que fomos e aquilo de que pretendíamos salvar-nos. E isto através de uma prosa que vai e vem num movimento hipnótico, que alterna a ferocidade com a piedade, o sim com o não, o agora com o ontem.»
Juan José Millás
«Um livro belíssimo e arrebatador, composto em partes iguais de culpa, raiva e amor.» Ignacio Martínez de Pisón
«É necessária muita precisão para contar estas coisas, é necessário o ácido, a faca afiada, o alfinete que fura o balão da vaidade. O que fica no final é a limpa emoção da verdade e o desconsolo de tudo o que se perdeu.»
Antonio Muñoz Molina
«Livro potente, sincero, por vezes descarnado, sobre a perda dos pais, sobre a dor das palavras não ditas e sobre a necessidade de amar e ser amado. Além de tudo isto, muito bem escrito.»
Fernando Aramburu
«Um livro belo, tão selvagem como delicado, que faz doer e oferece alívio ao mesmo tempo.»
Isaac RosaMais »
Pré-visualizar este livro »
Acerca do autor (2019)
Manuel Vilas é um premiado poeta e narrador espanhol nascido na Galiza (Barbastro, 1962). Entre os seus livros de poesía destacam-se El cielo (2000); Resurrección (2005; XV Premio Jaime Gil de Biedma); Calor (2008; VI Premio Fray Luis de León); Gran Vilas (2012; XXXIII Premio Ciudad de Melilla) e El hundimiento (2015; XVII Premio Internacional de Poesía Generación del 27). A sua poesia reunida publicou-se em 2010 com o título Amor, e a antologia Poesía completa saiu em 2016. É autor dos romances España (2008), que foi eleito pela revista literária Quimera como um dos dez romances mais importantes da primeira década do século XXI; Aire Nuestro (2009), distinguido com o Prémio Cálamo; Los inmortales (2012) e El luminoso regalo (2013). Também é autor de livros de contos e crónicas.
Além dos prémios citados, venceu o Premio Llanes de literatura de viagens, e o Premio de Las Letras Aragonesas, em 2015. A sua obra poética e narrativa figura nas principais antologias espanholas. Escreve habitualmente na imprensa espanhola.
Em tudo havia beleza (publicado em Espanha com o título Ordesa) é o seu mais recente romance e o primeiro a ser publicado em Portugal.
Informação bibliográfica
Título
Em tudo havia beleza
Autor
Manuel Vilas
Editora
Penguin Random House Grupo Editorial Portugal, 2019
ISBN
9896657572, 9789896657574
..........
Público
MANUEL VILAS
“A felicidade é um pacto que se faz com a vida”
Após a morte dos pais e com a vida a desmoronar-se, o espanhol Manuel Vilas escreveu um romance em busca de redenção. Em tudo havia beleza é um livro autobiográfico, uma crónica de uma Espanha que já não existe, e uma longa carta de amor.
JOSÉ RIÇO DIREITINHO19 de março de 2019
FotoMIGUEL MANSO
O poeta e escritor espanhol Manuel Vilas (n. 1962) meteu ombros à tarefa de ordenar o seu passado para ter condições de viver o futuro. A sua vida desmoronava-se quando a mãe morreu: divorciara-se, o álcool passara a ser uma das coisas mais importantes da sua rotina, e deixara o emprego. A cabeça sentia o abismo em que a vida se transformara. Com os pés junto ao precipício decidiu reconstruir os seus então 50 anos de vida, ordenando-os, escrevendo um livro em busca da redenção. Mas esse livro — Em tudo havia beleza, acabado de publicar pela Alfaguara, e considerado em Espanha um dos melhores romances de 2018 — não foi apenas essa tentativa de se recompor. Mas já lá iremos.
De passagem por Lisboa, Manuel Vilas falou com o Ípsilon, e confessou, entre sorrisos: “Poderia ter ido a um psiquiatra ou a um psicanalista, mas escolhi escrever um livro e saiu-me mais barato. Escrevê-lo foi uma catarse no sentido em que a literatura clássica grega a define: dar um nome ao que nos causa dor, e com esse processo encontrar a cura.” Em tudo havia beleza é uma reconstrução fragmentada — uma sucessão caótica de memórias que surgem quase aleatoriamente — do seu passado, e sobretudo das histórias de vida dos pais numa Espanha que já não existe.
Em tudo havia beleza
Autoria: Manuel Vilas
(Trad. Vasco Gato)
Alfaguara
Ler excerto
Nos últimos anos, e um pouco por todo o lado, têm surgido romances escritos na primeira pessoa, assumidos como “retratos verdadeiros” do que realmente aconteceu. Chegam como se os escritores tivessem perdido o pudor de se exporem e de se manterem escondidos por detrás daquela cortina, mais ou menos transparente, a que se chama ficção — talvez o caso mais exemplificativo e conhecido, pelo número de leitores que teve, seja a obra em seis volumes do norueguês Karl Ove Knausgård, A Minha Luta. Para Manuel Vilas, as razões desta “onda”, que oscila entre a chamada autoficção e o romance biográfico, poderão ser várias, mas que a principal, pelo menos em Espanha — Vilas não foi o único autor a fazê-lo nos anos recentes — é de natureza sociológica.
“Acho que em Espanha tem a ver com a classe média. O meu pai não pôde estudar, mas eu fi-lo. O meu pai não lia livros, e eu não só os leio como os escrevo. Daí surge uma necessidade de contar a história. Como foi possível que tendo vindo de uma classe social onde não havia livros, se tenha começado a escrevê-los? Há muitos escritores que contaram as suas histórias e as da família por esta vontade de explicarem a sua origem social. Há uma espécie de necessidade sociológica de fazer isto. Não tive pudor em me expor porque o sentimento que domina o livro é o amor, se fosse ódio ou ajuste de contas seria diferente.” E acrescenta, ainda a propósito do escritor norueguês referido acima: “Penso que com ele [Knausgård] também havia, em parte, essa necessidade sociológica. Logo no primeiro volume, A Morte do Pai (Relógio d’Água, 2014), ele tenta explicar a família, a história de vida da avó, do pai, a separação dos pais. A família é a origem de todos nós, todos temos lá as grandes referências que marcaram a nossa vida.”
Manuel Vilas, com os pés junto ao precipício, decidiu reconstruir os seus então 50 anos de vida, ordenando-os, escrevendo um livro em busca da redenção. Ordenou o seu passado para ter condições de viver o futuro MIGUEL MANSO
Mas Manuel Vilas não concorda que o seu romance seja incluído nesta nova “prateleira” denominada autoficção, mas antes naquela dos romances autobiográficos. Apesar de confessar que a sua narrativa tem de maneira inevitável algumas partes ficcionadas, apenas para lhe dar forma, considera que a diferença entre as duas categorias passa pela distinção entre invenção (para a primeira) e confissão (para a segunda). “O que se conta no livro é verdadeiro, aquelas fotos que incluí são verdadeiras, são do meu pai e da minha mãe. Eu sou o que se divorcia, o que deixa o seu trabalho, é tudo autobiográfico. Mas isso não significa que não haja nele alguma ficção. Quando se quer falar na nossa vida, escolhemos um ponto de vista, e nisso há sempre muita subjectividade.”
Manuel Vilas é também um reconhecido poeta — tem mais livros de poesia publicados do que livros de ficção. Não admira, portanto, que a sua linguagem narrativa se aproxime muito da linguagem poética, no entanto sem nunca se confundirem — o epílogo do romance, esse sim, é constituído por uma sequência de uma dúzia de bons poemas. Mas, dada a natureza do material narrativo, havia sempre o risco (e isso percebe-se bem pela leitura de algumas partes do romance) de a escrita resvalar para um registo “lamechas”, a fronteira entre uma coisa e outra é ténue e permeável — tal não aconteceu. Manuel Vilas mostrou-se consciente desse risco: “Não me interessava escrever um romance lírico, mas sim utilizar o trabalho da poesia na linguagem, mas para contar uma história. Sentia que eram maiores os riscos de contar uma narrativa pessoal, da minha própria vida, do que os de cair num registo lamechas, ou mesmo piroso. Mas eu tinha uma necessidade de contar esta história, e isso acabou por se sobrepôr aos riscos.”
Uma carta de amor
FotoMIGUEL MANSO
Em tudo havia beleza é um trabalho literário de enorme fôlego, numa linguagem precisa e sem ademanes estilísticos, uma narrativa ao mesmo tempo corajosa e desencantada. De certa forma, vai-se construindo contra a ideia canónica de romance: não há nele uma linha narrativa, e no seu lugar surgem factos que preenchem uma obsessão que se vai tornando recorrente e que ao meu tempo vai surgindo como estilo. Logo nas primeiras páginas do livro, como que para dar o tom das centenas de páginas que se seguem, há um exemplo desse desassombro com que Vilas nos vai confrontar, mas sem nunca cair num pessimismo oco: “O meu pai fez o que pôde com Espanha: arranjou um trabalho, trabalhou, formou família e morreu. E há poucas alternativas a estes factos.” E é essa Espanha em que os seus pais nasceram, cresceram e viveram, que o autor retrata quase sempre em tons melancólicos. Este romance tem uma profunda dimensão sociológica ao fazer um retrato desse país cinzento que já não existe, e sobretudo da vida nas décadas de 1950, 60, 70. É também uma crónica dos anos da ditadura franquista. O tom melancólico da escrita é o tom de uma ausência.
“Tinha que falar destes tempos porque os meus pais viveram nesses tempos. Não é melancolia por essa Espanha que já não existe, mas sim pelos meus pais que a viveram. Era uma Espanha muito cinzenta, havia uma ditadura. Eu cresci em democracia, pude ir à universidade, ler livros, viajar. O meu pai não pôde fazer nada disso. Mas isso não significa que eu seja mais feliz do que ele.”
A questão da natureza da felicidade, daquilo que realmente precisamos para ser felizes, é recorrente ao longo do romance, ora de maneira explícita, ora subjacendo a pensamentos mais ou menos elaborados. E no fim, Vilas tenta defini-la: “A felicidade é um pacto que se faz com a vida.”
Disse no início deste texto, que Em tudo havia beleza não era apenas uma tentativa de redenção por parte do autor. É ainda um “manual de sobrevivência” à perda daqueles que amamos, com os seus exercícios de memória, o procurar lembranças onde elas parecem já não existir, com o acto de as tentar verbalizar (nisto assemelha-se em parte à técnica psicanalítica) tornando-as vívidas e assim as reconstruindo (embora de modo fragmentário) ao mesmo tempo que também o indivíduo se reconstrói. “É mais importante a minha vida escrita no livro do que aquilo que vivi. É um dos mistérios da literatura. Quando se escreve uma memória ela fica mais tangível, ganha uma outra existência. A memória amplia-se.” E, como referiu ainda Manuel Vilas, este romance é também uma longuíssima “carta de amor”: “Ficam sempre coisas por dizer àqueles de quem gostamos. E a tragédia está em que chegamos a uma altura em que já não há tempo nem oportunidade. E então escreve-se um livro, que é a única maneira de dizer tudo. Sim, este livro é uma carta de amor.” É o expiar da culpa pelo não-dito, o exorcizar os efeitos do facto de se ter podido fazer mais.
A narrativa de Em tudo havia beleza parece assentar na ideia de que só existimos em relação com os outros, não apenas a família, mas aqueles com quem nos relacionamos: são eles que dão uma espécie de aval para que “as coisas corram bem”. A existência como luta para nos posicionarmos no mundo. “A estima dos outros acaba por ser a única cédula da nossa existência. A estima é uma moral, molda os valores e o julgamento que existe sobre nós, e a nossa posição no mundo emana desse julgamento. É uma luta entre o corpo, o nosso corpo, onde mora a vida, e o valor do nosso corpo para os outros. Se as pessoas nos cobiçarem, se cobiçarem a nossa presença, a coisa há-de correr-nos bem.” (pág. 16)
Foi um dos romances mais elogiados em Espanha e mereceu boa recepção por parte dos leitores. Uma das razões do sucesso comercial (qualidade literária à parte) foi, para o autor, o facto de ter contado uma história de gente comum que sempre fez coisas comuns e anódinas. “Houve uma identificação dos leitores com este pai e com esta mãe, de uma forma ou de outra, em Espanha.”
A necessidade de amar e de ser amado, algo que espoletou a escrita deste livro, corre nele a par de uma luta contra o esquecimento e a morte. A condição da mortalidade é a condição humana, e Manuel Vilas tem-na agora bem presente: “Quando a minha mãe morreu, eu dei-me conta de que era também mortal, e que pela ordem natural das coisas, serei o próximo, aquele que já tem os dias contados.”
in: jornal "Público"
Sem comentários:
Enviar um comentário