20 anos sem Amália. “Como poderia eu ser um mito se fui criada em Alcântara? Não posso inventar outra história”
“Não sou, nem de longe, a melhor voz que o fado já teve. Sou, isso sim, a pessoa com mais coisas negativas dentro de si. O fado gosta disso”. Numa entrevista publicada no jornal “A Capital” em 1990, por altura daquele que se tornaria o seu último álbum de originais, Amália Rodrigues confessava-se uma mulher-fado difícil de aturar, predestinada para cantar, mas avessa ao estatuto de mito. “É a minha maneira de ser que me dá cabo da vida, mas é graças à minha maneira de ser que tudo o que rodeia a Amália aconteceu”. Genial, lúcida, desassombrada e cortante, deixou-nos há 20 anos
Não
é fácil entrevistá-la. Ao entrar-se em sua casa, subindo uma escada de
degraus de pedra gastos pelo tempo, entra-se num mundo de recordações. A
sua presença é avassaladora. As suas marcas adivinham-se não só na
disposição dos móveis, mas também nos retratos – fotografados, pintados
ou esculpidos. Estamos ali por causa do seu novo álbum, “Obsessão”. Os
primeiros fados novos desde “Lágrima”, o disco de 1983. Na verdade,
“Obsessão” mais não é do que um pretexto para se voltar, mais uma vez, a
falar com Amália.
Na
sala ampla onde a esperamos, duas meninas, alunas de uma escola
secundária, esperam-na também. Ela chega e nós entregamos-lhe as flores.
Rosas vermelhas. “Obrigado” é a primeira palavra que nos diz. De
seguida pede desculpa, porque vai “atender as meninas”. Alguém nos diz
que andam na escola e já há muito tempo que queriam falar com Amália.
“Talvez para pedir conselhos”. As meninas dão-nos tempo para observar
melhor os domínios da fadista. Azulejos portugueses na parede, flores
por todo o lado, um piano ao canto da sala. Em cima do piano, uma
fotografia oferecida “por aquele rapaz, o Leonel Moura”, aquele que pôs a palavra “Portugal” na boca de Amália.
“Nunca me senti um mito nem um deus. Só se eu fosse maluca e, por enquanto, ainda estou lúcida”
Quando,
finalmente, Amália chega, corta-se a palavra a Vaclav Havel desligando a
televisão. “Desculpem, vamos começar”, diz. Amália, como sempre, veste
de negro. Não tira os óculos escuros porque o olho direito a incomoda –
“treme e chora sem eu querer”. Enquanto o ‘flash’ da máquina fotográfica
ilumina a sala semi-obscurecida, ela pede que eu conte uma anedota. Não
sou capaz, é claro. “Eu gosto muito de anedotas, dizem até que tenho
jeito para as contar. Todos os meus amigos dizem isso”. “Amigos”.
Comecemos por aí.
“Quando
cá estou, quase nunca saio de casa. As minhas amigas visitam-me muito” –
afirma, justificando talvez a razão do desgaste dos degraus, depois
prossegue: “Guardo muito os meus amigos. Tenho ainda amigos que conheci
há vinte e trinta anos. Quando faço um amigo nunca o perco. Às vezes vêm
da América, de França ou da Itália e nunca se esquecem de me visitar”.
Quando
perguntamos se ela acarinha muito os amigos, ela ri e responde que é
“ao contrário”: “Os meus amigos é que me acarinham a mim. Dão-me mimos.
Eu sou esperta. Se tenho sede, digo “vou buscar um copo de água”. Não
precisava de dizer isso, bastava-me levantar-me e ir à cozinha. Mas ao
dizer aquilo eu sei que são eles que se levantam. Estou mimada, mas não
estragada pelos mimos”.
Amália
Rodrigues tem uma capacidade quase infinita para contar histórias. Está
a falar e, de repente, faz uma pausa e desvia completamente o rumo ao
seu discurso. Tem uma memória prodigiosa. Sendo
uma figura histórica, Amália é, ao mesmo tempo, um mito vivo. Ela
recusa, no entanto, essa condição, evidenciando uma modéstia desarmante.
“Estão sempre a dizer coisas bonitas acerca de mim. Eu gosto muito de
as ouvir, mas… no outro dia, um jornal de Barcelona chamava-me mito. Eu
não sou um mito, sou apenas igual a mim mesma” – reclama Amália, antes
de se justificar: “Um mito é um deus. As questões da filosofia e da
mitologia interessam-me sempre. Nunca aprofundei na mitologia porque há
muitos pais, muitos filhos e muitos primos naquelas histórias. Aprendi,
no entanto, que os mitos são deuses. Eu nunca me senti um mito nem um
deus. Só se eu fosse maluca e, por enquanto, ainda estou lúcida.
Comparamos
Amália a outros ‘mitos’. Ela aproveita imediatamente a enumeração de
outros ‘mitos’ para começar a falar. “Maria Callas… também lhe chamaram
mito. Ela, para mim, era uma coisa extraordinária, mas nunca me passaria
pela cabeça chamar-lhe um mito. Como poderia eu ser um mito se fui
criada em Alcântara? Estou farta de dizer isto e ninguém quer acreditar.
O que é que eu hei de fazer? Não posso inventar outra história. Os
grandes artistas, como o Frank Sinatra, o Fred Astaire ou a Katharine
Hepburn foram apenas artistas e eu exijo a essas pessoas coisas que não
se podem pedir aos deuses”.
“A minha vida tem sido muito complicada, mas esses comprimidos que se tomam para se deixar de existir exigem muita coragem”
Talvez
porque a luz, ainda que fraca, lhe cansa a vista, ou talvez porque
assim as imagens de um passado que serve de fio condutor a esta
entrevista sejam mais claras, Amália fala sempre com os olhos fechados.
Como na capa de “Obsessão”. É exatamente desse álbum que agora começamos
a falar. A primeira pergunta é inevitável: porquê tanto tempo sem
editar um disco de originais?
“A
minha vida tem sido muito complicada”. Amália prepara o terreno para
falar de questões que lhe são difíceis: “estive doente há onze anos. Saí
do hospital e fiz ‘Lágrima’, depois tive outra época em que estive mal.
Eu julgava que estava muito mais doente do que o que realmente estava e
isso ainda me deixava pior. Nessa época até pensei… em tomar uns
comprimidos. Mas era muito difícil. Esses comprimidos que se tomam para
se deixar de existir exigem muita coragem”.
O
assunto é deveras delicado e Amália fala muito pausadamente. Com alguma
dificuldade, vai recordando os factos que a mantiveram afastada dos
estúdios durante tanto tempo. “Mais tarde passei por uma verdadeira
ressurreição. Mas calaram-me na rádio, disseram que eu tinha fugido e,
uma vez, num teatro em Itália, havia pessoas à porta que diziam ‘Amália
fascista’. Tudo isso me manteve muito tempo longe dos discos”, explica a
fadista. De repente, começa a tossir. Pede desculpa, diz que se
engasgou e chama a empregada para lhe pedir um copo de água que é
prontamente servido numa salva de prata. O incidente abre uma porta no
passado que Amália aproveita para contar uma história que teve lugar em
1947. “Eu ainda estava no teatro. Quando estava a finalizar o meu
número, algo que me entrou para a garganta, comecei a tossir tanto que
fui obrigada a abandonar o palco lavada em lágrimas. As pessoas estavam a
aplaudir e eu ainda consegui regressar ao palco. Fico preocupada quando
começo a tossir assim”, comenta antes de retomarmos o fio à meada.
Sabendo
já qual vai ser a resposta, pedimos a Amália que nos diga se está
satisfeita com “Obsessão”. “Estou e não estou. Gosto de três ou quatro
coisas. Há umas cantigas de roda que eu cantava na escola, ‘Chora
Mariquinhas Chora’ e ‘Ó Ai Ó Linda’, que eu alterei para dizer às
pessoas que o fado até se encontra nessas cantigas de roda. Gosto também
do ‘Que Fazes Aí Lisboa’, do ‘Obsessão’ e ‘Flor de Verde Pinho’ está
bem cantado. As outras…”. Interrompemos para saber a sua opinião sobre
‘Rondel do Alentejo’, sobre poema de Almada Negreiros. “Também é muito
bonito. Mas não só. O fado ‘Prece’ é bonito, a ‘Entrega’ também. Só que
estes dois não estão tão bem cantados porque me apanharam num dia em que
estava doente. O disco, no geral, não está mal cantado, mas nota-se que
às vezes falta garra”, afirma, num esforço notório de autocrítica.
Amália raramente fica contente com o que grava, dizem-nos os seus mais
próximos colaboradores, mas isso não a impede que grave sempre ao
primeiro ‘take’. Há aqui um pequeno paradoxo.
“Eu
não posso estar a mastigar um fado. Ou sai ou não sai, porque eu não
posso cantar duas vezes igual. Em estúdio, quando canto mais do que três
vezes uma coisa já não fico satisfeita. Além disso, tenho que me sentir
disposta a gravar”, refere, para logo a seguir contar outra história:
“Há muitos anos, fui a Londres. Como se sabe, os ingleses são muito
rigorosos em horários. Pois eu cheguei ao estúdio, no primeiro dia, e
não me apeteceu gravar. Eles ficaram doidos, nunca lhes tinha aparecido
uma pessoa como eu. Não me trataram mal, mas vontade não lhes faltou”.
Amália
confessa que há fados no disco que não ficaram como ela desejava, mas
também acrescenta que ao vivo é capaz de os interpretar de tal maneira
que levanta o público das cadeiras. “O disco – sublinha – tem uma carga
minha suficiente, não tem 21 valores. Algumas interpretações têm 17,
outras 18 e outras ainda só 12 ou 13. Destas eu não gosto”. Provando se
realista, não se coíbe de fazer uma autocrítica, mas também reconhece
que nunca cantou tão mal ao ponto que as pessoas dissessem “hoje não me
apetece ouvir a Amália”.
“Agora façam favor de dizer ao Frank Sinatra que eu cantei e tive aqui muito êxito”
Pelas
palavras que nos dispensa, quase podemos dizer que a obsessão de Amália
é a perfeição, mas antes de nos esclarecer sobre este ponto, a fadista
faz uma pausa significativa. “Acho que é a minha maneira de ser. Essa é a
minha maior obsessão. Por um lado, é a minha maneira de ser que me dá
cabo da vida e, por outro, é graças à minha maneira de ser que tudo o
que rodeia a Amália aconteceu”.
Em
“Obsessão” nota-se que há uma nova Amália. A voz suporta diferenças que
não podem ser justificadas só pela idade. Amália diz simplesmente que
está “mais triste”. E qual a razão de tanta tristeza? “Eu já era triste
quando era mais nova. A tristeza dentro de nós nunca desaparece; cresce.
A experiências da minha vida desencantaram-me. Sou muito exigente
comigo mesmo, tão exigente que tenho dificuldade em encontrar pessoas
que me aturem. Isto dá-me a certeza absoluta de que nasci predestinada
para cantar o fado, sou um instrumento do fado”, afirma com a maior das
certezas espelhada na voz, para depois continuar: “não quero com isto
dizer que sou a melhor pessoa para cantar o fado. Eu não sou, nem de
longe, a melhor voz que o fado já teve. Sou, isso sim, a pessoa com mais
coisas negativas dentro de si. O fado gosta disso, exige essa condição.
O fado quer que uma pessoa seja desgraçada, não no sentido de
desgraçadinha, quer que uma pessoa seja triste como a noite e é esse o
meu caso. Só não sou triste quando não estou sozinha. De resto, sou
muito triste”.
Amália
reclama para si o fado de viver guiada pelo instinto e de todas as
decisões que toma serem totalmente espontâneas. Diz que isso se reflete
na maneira como canta, na maneira como a sua carreira é gerida. “Eu
nunca penso nas coisas. Faço-as e pronto. Às vezes, na rádio, querem-me
dizer quais são as perguntas para eu pensar antes de entrar no ar e
responder. Eu recuso. Não consigo pensar nessas coisas. Sou
completamente espontânea a cantar e tudo. Sabe como é que eu terminei o
meu espetáculo de Nova Iorque? Voltei ao palco depois dos encores e
disse ‘agora fazem favor de dizer ao Frank Sinatra que eu cantei e tive
aqui muito êxito’. Foi uma brincadeira que eu fiz sem pensar se devia
fazê-la ou não”.
A
deixa é boa e nós não hesitamos. Conheceu Frank Sinatra? Responde que
sim e conta a história. “Estive na América há 40 anos, quando o Frank
Sinatra tinha aquelas meninas que desmaiavam. A mim disseram-me que
aquilo era tudo a fingir, que elas eram pagas para desmaiar nos
espetáculos. E eu achei tão ridículo que embirrei com ele e não lhe dei
confiança nenhuma. Eu andava no grupo do Eddie Fischer, Perry Como,
Sammy Davis Jr., Nat King Cole e do Sinatra também. E como eu não tinha
gostado nada do que me tinha contado, nunca lhe liguei. Acho que ninguém
é capaz de fazer as pessoas desmaiar e depois continuar a fazê-las
desmaiar ao longo de tantos anos. Mas tenho pena de ter embirrado com
ele porque gostava de me ter mantido em contacto com ele, até para lhe
mandar discos e saber a sua opinião acerca da minha voz”.
“Tenho olhos de fado”
Em
“Obsessão” Amália canta grandes poetas – Luís de Camões, Almada, Afonso
Lopes Vieira, Pedro Homem de Mello, Francisco Bogalho… O que leva
Amália a cantar estes poetas? “O Luís de Camões, por exemplo… isto é
como as nêsperas: nós começamos sempre pelas maduras e acabamos por
comer também as verdes. Bem, Camões não tem nêsperas verdes, são todas
maduras. Eu cantei sempre Camões, acho que ele é um ‘poeta-fadista’”,
sublinha Amália, citando depois o soneto ‘Com Que Voz Cantarei Este Meu
Triste Fado”. “Isto é fado”, exulta a fadista, que revela ainda um plano
secreto e pessoal de gravar um disco só com Camões, “para deixar, como
homenagem”.
“Porque
cantar é diferente de ler”, Amália, por vezes, altera poemas que lhe
são entregues. “Geralmente, os poetas não se importam, porque eu discuto
as alterações com eles. Costuma ser só uma palavra ou ou outra, mas é
uma questão delicada para quem escreve. Nunca tive problemas, já alterei
coisas do David Mourão Ferreira, por exemplo, e ele compreendeu. Mas,
em ‘Obsessão’ houve um poema em que eu alterei uma palavra e o autor não
gostou. Ele escreveu a dizer que estava contente por eu o ter
escolhido, mas mostrou-se aborrecido pela mudança. Evidentemente, não
vou dizer quem foi”, explica a fadista.
Com
o Almada, de quem canta ‘Rondel do Alentejo’, o caso é diferente. Sem
problemas, Amália confessa que “nem sequer sabia que ele era poeta”. “Eu
conhecia-o só como pintor. Como não fui educada culturalmente, não
sabia que ele também fazia poesia. Só mais tarde é que o Alain [Oulman]
me apresentou à poesia em geral e ao Almada”. Amália é assim: não se
importa de confessar uma certa ignorância, uma falta de cultura apenas
aparente. Mas a cultura não se aprende só nos bancos da escola.
Depois
de dar a sua visão pessoalíssima do fado – em sua opinião relacionada
com o isolamento de Portugal, que “de um lado tinha as espadas dos
espanhóis e do outro o mar” – e de nos falar do seu imenso amor pelas
flores, Amália confessa o seu medo de algum dia deixar mal Portugal ao
não ser capaz de cantar num palco estrangeiro.
Os
seus projetos futuros são a homenagem a Camões e a gravação de um disco
com poemas de Cecília Meireles musicados por Alain Oulman. Não se
alonga no assunto porque lhe é difícil falar sobre esse amigo que morreu
recentemente. Será a sua derradeira homenagem a um homem que lhe
desbravou novos caminhos no fado.
Já
depois de o botão ‘stop’ do gravador ter sido premido, Amália
mostra-nos os quadros e fotografias que tem na sala para que possamos
entender o que ela quer dizer quando fala em melancolia e tristeza. Um
dos quadros da sala retrata-a aos 24 anos. “Como vê, aqueles olhos são
os da cara, mas o olhar, esse, é o da alma. Tenho olhos de fado”.
Despedimo-nos.
Obrigado. E, descendo as escadas de pedra que levam à rua, pensamos na
sua última frase: “Tenho olhos de fado”. Para falar a verdade, achamos
que Amália é a personificação do fado. Mas isso é outra história.
Publicado originalmente na edição de 19 de novembro de 1990 do jornal "A Capital"
Já vi e ouvi esta entrevista da Amália algumas vezes. E sempre me espanta aquela inteligência e simplicidade com que ela respondia a tudo. Ela está no patamar mais elevado do Fado…
ResponderEliminarUma boa semana, meu Amigo Um beijo.