quinta-feira, 31 de outubro de 2019

"Vemos, ouvimos e lemos"_ de outro blog

DAQUI:, com a devida vénia:

Vemos, ouvimos e lemos



«Sou médica e regressei recentemente do Mediterrâneo Central onde me juntei aos esforços da sociedade civil nas missões de resgate e salvamento. Espero que as minhas perguntas vos sejam de resposta tão fácil como a facilidade com que votaram: Sabem quanto tempo demora um dinghy/bote de borracha a desinsuflar? Uma pessoa a afogar? Um coração a deixar de bater? Sabem quão assustador é assistir à voz a perder-se? O corpo a deixar de lutar? O mar a engolir o que resta? O silêncio a substituir os gritos, a morte a substituir a vida? (...) Sabem quão escuro pode ser o mar à noite? Quão solitário? Quão doloroso o abandono? Quão doloroso o silêncio do mundo que assiste inerte? Sabem qual é a sensação de tirar uma pessoa da água? Salvá-la como se estivesse salva para sempre? Sabem qual é a sensação de fazer isso e haver vozes que te tentam convencer que o que fizeste é um crime, errado, punível? Sabem o que é estar desesperado a tentar retirar da água o maior número de pessoas possível enquanto a milícia (também chamada por alguns de guarda-costeira) líbia aponta armas de fogo na tua direcção? Sabem quem pagou essas armas? Esses barcos? Essa “solução"?»

Ana Paula Cruz, Carta aos eurodeputados Nuno Melo, Álvaro Amaro e José Manuel Fernandes

«Quando se tranca a porta de um contentor frigorífico, as pessoas que lá estejam dentro correm o risco de morrer em poucas horas, de frio se a refrigeração estiver ligada, ou sufocadas se não estiver. Do mesmo modo, quando dezenas de pessoas embarcam num bote de borracha sobrelotado e com pouco combustível, correm sérios riscos de não chegar ao destino ou de acabar atiradas ao mar. (...) O que é incompreensível é a abordagem da Europa ao fenómeno. A UE não adere ao espírito dos protocolos da ONU e não separa claramente o tráfico de seres humanos da ajuda humanitária a pessoas traficadas. A Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, usa um conceito que nos envergonha e permite criminalizar não apenas o crime organizado e o tráfico mas até a ação humanitária. (...) Para 24 países da União Europeia (até ao Brexit) salvar uma pessoa da morte no mar e entregá-la em terra por razões humanitárias é um crime equiparável a atirá-la para ganhar dinheiro para um camião ou um barco da morte. Há coisas em que a Europa nos envergonha.»

Paulo Pedroso, Os camiões e os barcos da morte. Há coisas em que a Europa nos envergonha

«Poucas votações me ficaram tão presas na pele como esta que hoje, quinta-feira, decorreu no plenário em Estrasburgo. Tratou-se do voto sobre a criação de mecanismos europeus de protecção de vidas no Mediterrâneo. Foi uma negociação longa que colmatou numa votação também ela longa e muito dividida. Quando todas as emendas ao texto proposto já tinham ido a votos e chegámos ao voto final, aconteceu o impensável na minha cabeça. A proposta de salvar vidas foi chumbada por dois votos, 290 contra 288. Um murro no estômago, um nó na garganta. Pensei para comigo: há mesmo uma maioria de representantes que quer que continuem a morrer pessoas no Mediterrâneo? Ainda não recomposta, a bancada da extrema-direita celebrou e gritou entusiasticamente o resultado final. Do outro lado do hemiciclo, silêncio e impotência. A maioria tinha mesmo decidido que quem se faz ao Mediterrâneo não deve ter acesso a salvamento ou resgate, que nenhuma das vidas perdidas contou.»

Marisa Matias, As vidas dos outros

«É uma atitude muito cristã, esta de deixar morrer pessoas no Mediterrâneo. Nuno Melo acha que se os refugiados fossem pessoas com boas intenções sabiam andar sobre a água. Só falta arranjar um barco do CDS para batizar as pessoas enquanto se afogam. Imagino que o Nuno Melo tenha um esgotamento se vir uma mulher grávida num bote. É contra a interrupção da gravidez, mas não ao ponto de salvar a senhora de morrer afogada. Provavelmente é deixá-la afogar-se e depois levá-la a tribunal. É gente que vai às manifestações pró-vida, mas só de fetos. O embrião é vida; o refugiado é demasiado grande para eles terem pena. Uma coisa é o que se vê numa ecografia; outra o que não vemos porque está lá em alto-mar.»

Bruno Nogueira, Melos aos refugiados



POSTADO POR NUNO SERRA ÀS 31.10.19
QUINTA-FEIRA, 31 DE OUTUBRO DE 2019

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Livro_Em tudo havia beleza, Manuel Vilas



Germano Oliveira
Editor online, in:"Expresso Curto"

"O que eu ando a ler

Um dia disseram-me na escola que o Bruno Pinto tinha morrido, eu nem 10 anos tinha e ele também não, eu adorava o Bruno e o vício dele de comer fatias de fiambre enquanto jogávamos Mega Drive, eu só conhecia o paladar do fiambre dentro do pão e desconhecia quão melhor sabia dentro de nada, o Bruno ensinou-me isso e hoje parece-me uma metáfora esmagadoramente simples sobre tudo o que desperdiçamos na vida quando não fazemos coisas diferentes com as coisas que temos, hoje parece-me também um eufemismo simplesmente esmagador sobre as pequenas coisas rotineiras que nos fazem tanta falta quando perdemos essa coisa maior que são as pessoas das nossas vidas.

Explicaram-me que ele tinha morrido no hospital: nós vimos a ambulância levar o Bruno da escola, ele estava no recreio quando bateu com a cabeça, caiu mal, logo ele que vivia tão bem, mas afinal o Bruno estava vivo, a morte dele durou duas horas, o enfermeiro trocou nomes e enganou o diretor da escola, não se faz, e consequentemente a professora tinha enganado a turma, não o queria fazer, e quando o Bruno entrou na aula no dia seguinte parecia um anjo, acho que houve palmas, e quando o Bruno se sentou na carteira parecia só o meu amigo, acho que ele disse uma piada, o Bruno era engraçado.

Escrevo sobre ele porque foi a primeira pessoa importante da minha vida que morreu e a única dessas todas que ressuscitou, é a minha melhor história sobre a segunda oportunidade que desejamos tão desesperadamente quando já só conseguimos ressuscitar memórias: “Nalgumas tradições culturais, ou pelo menos na que me calhou, falar de um morto supõe um forte e áspero grau de despudor. De maneira que fiquei sozinho com o meu pai. E eu sou a única pessoa neste mundo (...) a lembrar-se dele diariamente. E a contemplar o seu desvanecimento, que acaba por se transformar em pureza. Não é que me lembre dele diariamente, é que ele está em mim de forma permanente, é que me retirei de mim mesmo para lhe dar espaço”. Manuel Vilas, que escreveu este “Em Tudo Havia Beleza” de onde vem a citação, tem histórias melhores que a minha mas sem segundas oportunidades - publicou um diário violento e não ficcionado sobre o desamparo irreparável que é a morte de uma das fontes de tudo, um pai, o meu pai, o seu pai, do pai que se ama incondicionalmente mas que condiciona a nossa maneira de amar, e de um filho, você, eu, que descobre no próprio carácter o carácter do pai:

“Um dia o meu pai deixou de se preocupar com o seu carro, um Seat Málaga antigo. Sempre se angustiara obsessivamente com o seu carro, com cuidar dele, com tê-lo sempre em perfeito estado. Abandonou-o numa garagem e deixou de conduzir. Fui eu próprio ver o carro, e estava cheio de pó. Disse-lhe: ‘Papá, o carro está cheio de pó’.

Olhou para mim, e parecia que isto sim lhe causava mossa.

‘Era um bom carro, faz o que quiseres com ele’, disse-me.

Ao desligar-se do seu carro, percebi que o meu pai ia morrer em breve; percebi que aquilo era o fim.

Foi um dos momentos mais tristes da minha vida, o meu pai estava a dizer-me adeus por interposta máquina.

Em vez de me dizer ‘temos de falar, isto está para acabar’, disse-me ‘era um bom carro’. Meu Deus, que maravilha. Viesse de onde viesse o espírito do meu pai, estava tocado pelo dom da elegância, pelo dom do inesperado, pela ingénua originalidade.

Pelo estilo.

Sentei-me numa cadeira da cozinha e fiquei a olhar para ele. Fiquei muito nervoso. Muito angustiado. Só eu em todo o universo sabia o que significavam aquelas palavras, ‘faz o que quiseres com ele’.

Estava a dizer-me algo devastador: ‘Faz o que quiseres comigo, não percebo o teu amor’.

Não percebo o teu amor.

Não te amei o suficiente, nem tu a mim.

Fomos malditamente iguais”.


Mas ser maldito é uma honra, não sê-lo também:

“O meu pai morreu com setenta e cinco anos, viverei eu mais anos do que o meu pai? Estou convencido de que viverei menos, ou talvez precisamente os mesmos anos: setenta e cinco. Mas acho que não, que partirei antes. Parece-me uma descortesia vivermos mais anos do que o nosso pai viveu. Uma deslealdade. Uma blasfémia. Um erro cósmico. Se vivermos mais anos do que os que viveu o nosso pai, deixamos de ser filhos, é a isso que me refiro. E, se deixarmos de ser filhos, somos nada”.

Pai e mãe: se os seus ainda estão vivos, e que vivam para sempre, torne-se repórter da sua família e pratique jornalismo da intimidade - pergunte-lhes o que não sabe da vida deles, faça-o hoje, daqui a pouco, agora, já, pode ser jornalismo de investigação, “mãe, o que é que lamentas nunca ter feito?”; pergunte-lhes o que não sabe das descobertas deles, pode ser jornalismo musical, “pai, when love is gone, where does it go?”. A informação aqui não é poder, é afeto. Pai e mãe: se perdeu um ou os dois, torne-se romancista, imagine grandes acontecimentos, paixões, amores, desgostos, erros, conquistas, fábulas, tragédias, contrições e contradições na existência deles. A imaginação aqui não é mais importante que o conhecimento, é saudade. Somos tantas vezes tão pouco curiosos sobre eles e que erro isso é e arrependimento será, eu sou um arrependido e o Manuel Vilas igual: “A morte dos nossos pais é abjeta, é uma declaração de guerra que a realidade nos faz. (...) Enfim, seja como for, a única coisa óbvia é que, se tiveres de perguntar algo a alguém, fá-lo logo. Não esperes por amanhã, porque o amanhã é dos mortos”. E não costumam ressuscitar como o meu Bruno."

...…...


Em tudo havia beleza




Manuel Vilas

Penguin Random House Grupo Editorial Portugal, 01/03/2019


A história profundamente íntima e comovente de um homem que procura no passado o caminho para regressar ao presente.


"Melhor Livro do Ano" El País * El Mundo * El Heraldo * La Vanguardia


Manuel Vilas compõe, com uma voz corajosa, desencantada, poética, o relato íntimo de uma vida e de um país. Simultaneamente filho e pai, autor e narrador, Vilas escava no passado, procurando recompor as peças, lutando para fazer presente quem já não está. Porque os laços com a família, com os que amamos, mesmo que distantes ou ausentes, são o que nos sustém, o que nos define. São esses mesmos laços que nos permitem ver, à distância do tempo, que a beleza está nos mais simples gestos quotidianos, no afecto contido, inconfessado, e até nas palavras não ditas.


Falando desde as entranhas, Vilas revela a comovente debilidade humana, ao mesmo tempo que ilumina a força única da nossa condição, a inexaurível capacidade de nos levantarmos de novo e seguirmos em frente, mesmo quando não parece possível. É desenhando um caminho de regresso aos que amamos que o amor pode salvar-nos.


Confessional, provocador, comovente, Em tudo havia beleza é uma admirável peça de literatura, em que se entrelaçam destino pessoal e colectivo, romance e autobiografia. Manuel Vilas criou um relato íntimo de perda e vida, de luto e dor, de afecto e pudor, único na sua capacidade de comover o leitor, de fazer da sua história a história de todos nós.


Os elogios da crítica:

«Um livro magnífico, que é uma obra de arte sobre a vida. Mas não se sobressalte o leitor ou a leitora se, de vez em quando, tiver de suspender a leitura - para respirar, ir à janela olhar a rua, fumar um cigarro, procurar os seus mortos, como ele fazia. Voltará com ele. Porque a grande literatura é assim.»

Fernanda
 de Abreu, Jornal de Letras

«Um retrato pessoal, que no fundo é um espelho muito bem conseguido da condição humana. Pelo estilo e pelo destemor, merece a mais alta das notas."


Nuno Costa Santos, Observador

«Magnífico, corajoso, vai partir-vos o coração.»



Javier Cercas

«Um livro que nasce da perda e, ao mesmo tempo, da luminosidade do amor.»


La Vanguardia

«Uma narrativa que chega ao coração da verdade e faz da vida de uma personagem um ensinamento universal.»


El País

«Uma confissão bela e autêntica, uma tentativa do autor de salvar a sua própria família através da verdade de um livro extraordinário.»


La Razón

«Este é um livro escrito com uma clareza e uma força portentosas. Nenhuma retórica, nenhuma mentira.»


El Mundo

«Um monumento de carne e nervos. O mais importante deste livro é o seu tratamento descarnado de uma história, das quedas do próprio autor, dos seus pais perdidos, dos seus filhos, da sua hesitação num mundo de costas voltadas para a literatura. O importante é que todos temos um caminho de regresso a um lugar de amor, que começa a desenhar-se enquanto a vida nos obriga a olhar para outro lado.»


Diário de Córdoba

«Ninguém deve deixar de ler este livro. É o livro do ano, num ano de grandes livros. O amor como cura. A pobreza como doença. A literatura como poção.»


Luisgé Martín

«Basta ler a primeira página para perceber que aquele grito de socorro vem do mais fundo de nós. O livro reclama-nos, porque, de certo modo, além de seus protagonistas, somos também seus autores. Descreve com palavras novas, ordenadas de forma insólita, aquilo que fomos e aquilo de que pretendíamos salvar-nos. E isto através de uma prosa que vai e vem num movimento hipnótico, que alterna a ferocidade com a piedade, o sim com o não, o agora com o ontem.»


Juan José Millás

«Um livro belíssimo e arrebatador, composto em partes iguais de culpa, raiva e amor.» Ignacio Martínez de Pisón



«É necessária muita precisão para contar estas coisas, é necessário o ácido, a faca afiada, o alfinete que fura o balão da vaidade. O que fica no final é a limpa emoção da verdade e o desconsolo de tudo o que se perdeu.»

Antonio Muñoz Molina


«Livro potente, sincero, por vezes descarnado, sobre a perda dos pais, sobre a dor das palavras não ditas e sobre a necessidade de amar e ser amado. Além de tudo isto, muito bem escrito.»

Fernando Aramburu


«Um livro belo, tão selvagem como delicado, que faz doer e oferece alívio ao mesmo tempo.»

Isaac RosaMais »

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Acerca do autor (2019)

Manuel Vilas é um premiado poeta e narrador espanhol nascido na Galiza (Barbastro, 1962). Entre os seus livros de poesía destacam-se El cielo (2000); Resurrección (2005; XV Premio Jaime Gil de Biedma); Calor (2008; VI Premio Fray Luis de León); Gran Vilas (2012; XXXIII Premio Ciudad de Melilla) e El hundimiento (2015; XVII Premio Internacional de Poesía Generación del 27). A sua poesia reunida publicou-se em 2010 com o título Amor, e a antologia Poesía completa saiu em 2016. É autor dos romances España (2008), que foi eleito pela revista literária Quimera como um dos dez romances mais importantes da primeira década do século XXI; Aire Nuestro (2009), distinguido com o Prémio Cálamo; Los inmortales (2012) e El luminoso regalo (2013). Também é autor de livros de contos e crónicas.

Além dos prémios citados, venceu o Premio Llanes de literatura de viagens, e o Premio de Las Letras Aragonesas, em 2015. A sua obra poética e narrativa figura nas principais antologias espanholas. Escreve habitualmente na imprensa espanhola.

Em tudo havia beleza (publicado em Espanha com o título Ordesa) é o seu mais recente romance e o primeiro a ser publicado em Portugal.

Informação bibliográfica



Título

Em tudo havia beleza


Autor

Manuel Vilas


Editora

Penguin Random House Grupo Editorial Portugal, 2019


ISBN

9896657572, 9789896657574



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Público


MANUEL VILAS
“A felicidade é um pacto que se faz com a vida”
Após a morte dos pais e com a vida a desmoronar-se, o espanhol Manuel Vilas escreveu um romance em busca de redenção. Em tudo havia beleza é um livro autobiográfico, uma crónica de uma Espanha que já não existe, e uma longa carta de amor.
JOSÉ RIÇO DIREITINHO19 de março de 2019





FotoMIGUEL MANSO


O poeta e escritor espanhol Manuel Vilas (n. 1962) meteu ombros à tarefa de ordenar o seu passado para ter condições de viver o futuro. A sua vida desmoronava-se quando a mãe morreu: divorciara-se, o álcool passara a ser uma das coisas mais importantes da sua rotina, e deixara o emprego. A cabeça sentia o abismo em que a vida se transformara. Com os pés junto ao precipício decidiu reconstruir os seus então 50 anos de vida, ordenando-os, escrevendo um livro em busca da redenção. Mas esse livro — Em tudo havia beleza, acabado de publicar pela Alfaguara, e considerado em Espanha um dos melhores romances de 2018 — não foi apenas essa tentativa de se recompor. Mas já lá iremos.


De passagem por Lisboa, Manuel Vilas falou com o Ípsilon, e confessou, entre sorrisos: “Poderia ter ido a um psiquiatra ou a um psicanalista, mas escolhi escrever um livro e saiu-me mais barato. Escrevê-lo foi uma catarse no sentido em que a literatura clássica grega a define: dar um nome ao que nos causa dor, e com esse processo encontrar a cura.” Em tudo havia beleza é uma reconstrução fragmentada — uma sucessão caótica de memórias que surgem quase aleatoriamente — do seu passado, e sobretudo das histórias de vida dos pais numa Espanha que já não existe.





Em tudo havia beleza

Autoria: Manuel Vilas
(Trad. Vasco Gato)
Alfaguara
Ler excerto


Nos últimos anos, e um pouco por todo o lado, têm surgido romances escritos na primeira pessoa, assumidos como “retratos verdadeiros” do que realmente aconteceu. Chegam como se os escritores tivessem perdido o pudor de se exporem e de se manterem escondidos por detrás daquela cortina, mais ou menos transparente, a que se chama ficção — talvez o caso mais exemplificativo e conhecido, pelo número de leitores que teve, seja a obra em seis volumes do norueguês Karl Ove Knausgård, A Minha Luta. Para Manuel Vilas, as razões desta “onda”, que oscila entre a chamada autoficção e o romance biográfico, poderão ser várias, mas que a principal, pelo menos em Espanha — Vilas não foi o único autor a fazê-lo nos anos recentes — é de natureza sociológica.

“Acho que em Espanha tem a ver com a classe média. O meu pai não pôde estudar, mas eu fi-lo. O meu pai não lia livros, e eu não só os leio como os escrevo. Daí surge uma necessidade de contar a história. Como foi possível que tendo vindo de uma classe social onde não havia livros, se tenha começado a escrevê-los? Há muitos escritores que contaram as suas histórias e as da família por esta vontade de explicarem a sua origem social. Há uma espécie de necessidade sociológica de fazer isto. Não tive pudor em me expor porque o sentimento que domina o livro é o amor, se fosse ódio ou ajuste de contas seria diferente.” E acrescenta, ainda a propósito do escritor norueguês referido acima: “Penso que com ele [Knausgård] também havia, em parte, essa necessidade sociológica. Logo no primeiro volume, A Morte do Pai (Relógio d’Água, 2014), ele tenta explicar a família, a história de vida da avó, do pai, a separação dos pais. A família é a origem de todos nós, todos temos lá as grandes referências que marcaram a nossa vida.”
Manuel Vilas, com os pés junto ao precipício, decidiu reconstruir os seus então 50 anos de vida, ordenando-os, escrevendo um livro em busca da redenção. Ordenou o seu passado para ter condições de viver o futuro MIGUEL MANSO

Mas Manuel Vilas não concorda que o seu romance seja incluído nesta nova “prateleira” denominada autoficção, mas antes naquela dos romances autobiográficos. Apesar de confessar que a sua narrativa tem de maneira inevitável algumas partes ficcionadas, apenas para lhe dar forma, considera que a diferença entre as duas categorias passa pela distinção entre invenção (para a primeira) e confissão (para a segunda). “O que se conta no livro é verdadeiro, aquelas fotos que incluí são verdadeiras, são do meu pai e da minha mãe. Eu sou o que se divorcia, o que deixa o seu trabalho, é tudo autobiográfico. Mas isso não significa que não haja nele alguma ficção. Quando se quer falar na nossa vida, escolhemos um ponto de vista, e nisso há sempre muita subjectividade.”

Manuel Vilas é também um reconhecido poeta — tem mais livros de poesia publicados do que livros de ficção. Não admira, portanto, que a sua linguagem narrativa se aproxime muito da linguagem poética, no entanto sem nunca se confundirem — o epílogo do romance, esse sim, é constituído por uma sequência de uma dúzia de bons poemas. Mas, dada a natureza do material narrativo, havia sempre o risco (e isso percebe-se bem pela leitura de algumas partes do romance) de a escrita resvalar para um registo “lamechas”, a fronteira entre uma coisa e outra é ténue e permeável — tal não aconteceu. Manuel Vilas mostrou-se consciente desse risco: “Não me interessava escrever um romance lírico, mas sim utilizar o trabalho da poesia na linguagem, mas para contar uma história. Sentia que eram maiores os riscos de contar uma narrativa pessoal, da minha própria vida, do que os de cair num registo lamechas, ou mesmo piroso. Mas eu tinha uma necessidade de contar esta história, e isso acabou por se sobrepôr aos riscos.”

Uma carta de amor

FotoMIGUEL MANSO

Em tudo havia beleza é um trabalho literário de enorme fôlego, numa linguagem precisa e sem ademanes estilísticos, uma narrativa ao mesmo tempo corajosa e desencantada. De certa forma, vai-se construindo contra a ideia canónica de romance: não há nele uma linha narrativa, e no seu lugar surgem factos que preenchem uma obsessão que se vai tornando recorrente e que ao meu tempo vai surgindo como estilo. Logo nas primeiras páginas do livro, como que para dar o tom das centenas de páginas que se seguem, há um exemplo desse desassombro com que Vilas nos vai confrontar, mas sem nunca cair num pessimismo oco: “O meu pai fez o que pôde com Espanha: arranjou um trabalho, trabalhou, formou família e morreu. E há poucas alternativas a estes factos.” E é essa Espanha em que os seus pais nasceram, cresceram e viveram, que o autor retrata quase sempre em tons melancólicos. Este romance tem uma profunda dimensão sociológica ao fazer um retrato desse país cinzento que já não existe, e sobretudo da vida nas décadas de 1950, 60, 70. É também uma crónica dos anos da ditadura franquista. O tom melancólico da escrita é o tom de uma ausência.

“Tinha que falar destes tempos porque os meus pais viveram nesses tempos. Não é melancolia por essa Espanha que já não existe, mas sim pelos meus pais que a viveram. Era uma Espanha muito cinzenta, havia uma ditadura. Eu cresci em democracia, pude ir à universidade, ler livros, viajar. O meu pai não pôde fazer nada disso. Mas isso não significa que eu seja mais feliz do que ele.”

A questão da natureza da felicidade, daquilo que realmente precisamos para ser felizes, é recorrente ao longo do romance, ora de maneira explícita, ora subjacendo a pensamentos mais ou menos elaborados. E no fim, Vilas tenta defini-la: “A felicidade é um pacto que se faz com a vida.”

Disse no início deste texto, que Em tudo havia beleza não era apenas uma tentativa de redenção por parte do autor. É ainda um “manual de sobrevivência” à perda daqueles que amamos, com os seus exercícios de memória, o procurar lembranças onde elas parecem já não existir, com o acto de as tentar verbalizar (nisto assemelha-se em parte à técnica psicanalítica) tornando-as vívidas e assim as reconstruindo (embora de modo fragmentário) ao mesmo tempo que também o indivíduo se reconstrói. “É mais importante a minha vida escrita no livro do que aquilo que vivi. É um dos mistérios da literatura. Quando se escreve uma memória ela fica mais tangível, ganha uma outra existência. A memória amplia-se.” E, como referiu ainda Manuel Vilas, este romance é também uma longuíssima “carta de amor”: “Ficam sempre coisas por dizer àqueles de quem gostamos. E a tragédia está em que chegamos a uma altura em que já não há tempo nem oportunidade. E então escreve-se um livro, que é a única maneira de dizer tudo. Sim, este livro é uma carta de amor.” É o expiar da culpa pelo não-dito, o exorcizar os efeitos do facto de se ter podido fazer mais.

A narrativa de Em tudo havia beleza parece assentar na ideia de que só existimos em relação com os outros, não apenas a família, mas aqueles com quem nos relacionamos: são eles que dão uma espécie de aval para que “as coisas corram bem”. A existência como luta para nos posicionarmos no mundo. “A estima dos outros acaba por ser a única cédula da nossa existência. A estima é uma moral, molda os valores e o julgamento que existe sobre nós, e a nossa posição no mundo emana desse julgamento. É uma luta entre o corpo, o nosso corpo, onde mora a vida, e o valor do nosso corpo para os outros. Se as pessoas nos cobiçarem, se cobiçarem a nossa presença, a coisa há-de correr-nos bem.” (pág. 16)

Foi um dos romances mais elogiados em Espanha e mereceu boa recepção por parte dos leitores. Uma das razões do sucesso comercial (qualidade literária à parte) foi, para o autor, o facto de ter contado uma história de gente comum que sempre fez coisas comuns e anódinas. “Houve uma identificação dos leitores com este pai e com esta mãe, de uma forma ou de outra, em Espanha.”

A necessidade de amar e de ser amado, algo que espoletou a escrita deste livro, corre nele a par de uma luta contra o esquecimento e a morte. A condição da mortalidade é a condição humana, e Manuel Vilas tem-na agora bem presente: “Quando a minha mãe morreu, eu dei-me conta de que era também mortal, e que pela ordem natural das coisas, serei o próximo, aquele que já tem os dias contados.”

in: jornal "Público"






quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Um adeus catalão_ OPINIÃO


OPINIÃO
Um adeus catalão


Pedro Ferré
"OPINIÃO
Um adeus catalão


Espanha, convertendo-se cada vez mais na Sérvia do Ocidente, não conseguiu ainda perceber o problema. O seu nacionalismo cego faz com que esconda a cabeça, qual avestruz, e diga que o nacionalismo é propriedade privada dos outros: os que não querem ser nacionalistas espanhóis.
22 de Outubro de 2019, 6:16

Espanha, convertendo-se cada vez mais na Sérvia do Ocidente, não conseguiu ainda perceber o problema. O seu nacionalismo cego faz com que esconda a cabeça, qual avestruz, e diga que o nacionalismo é propriedade privada dos outros: os que não querem ser nacionalistas espanhóis.
22 de Outubro de 2019, 6:16

Num momento de paixão e de dor profunda – para não falar de revolta –, onde os mais vivos sentimentos vêm à flor da pele, exijo-me a mim próprio um mínimo de serenidade. Pretendo também advertir o leitor que, pese embora o meu discurso remeta para factos, não me conseguirei furtar às minhas posições ideológicas, o que inevitavelmente sempre acontece a todos os cronistas, ainda que muitos o pretendam escamotear. Acresce que neste momento se vive sob uma enorme pressão internacional do Estado do Reino de Espanha que, através das suas embaixadas, compele os meios de opinião pública a que seja veiculado o ponto de vista oficial de tudo quanto está a ocorrer, tentando abafar as razões profundas do sentimento de desprezo ou mesmo de repressão sentido pela nação catalã. Mas, porque o espaço não é muito e da paciência do leitor não se deve abusar, tentarei ser minimalista nas razões que pretendo expor nas seguintes linhas.

1. Em primeiro lugar, principalmente a partir da brutal repressão sobre o referendo de 1 de Outubro de 2017, ordenada pelo Estado e aceite sem reservas pelo nacionalismo espanhol (não esqueçamos como as forças da Guardia Civil eram aplaudidas à saída de certos quartéis com palavras de ordem como “A por ellos”, isto é, “Vamos a eles”), a Espanha mais profunda, incluindo muitos militantes e políticos do PSOE, sustentava as suas razões baseando-se em questões históricas, civilizacionais e políticas. Historicamente esquecia-se que a formação do Reino de Espanha fora sempre uma questão muito complexa. Pela força das armas, Castela foi-se sobrepondo aos restantes territórios peninsulares, criando-se, durante séculos, a ideia de uma mítica Espanha (que nação sem profundas questões identitárias sente a necessidade de constantemente se afirmar como nação ou mesmo afirmar, como o próprio presidente do Governo Mariano Rajoy, que “Espanha era a nação mais antiga da Europa"?). Ao mesmo tempo era forjado um dos mais chamativos argumentos, afirmando-se que a Catalunha nunca fora independente. Será que alguém de boa-fé pode esquecer que a Catalunha nasceu, ao contrário das restantes nações peninsulares, por uma actuação estrangeira, constituindo-se como a Marca Hispânica carolíngia (séc. VIII) e que dela derivaram os condados catalães subordinados ao Conde de Barcelona? Será que alguém de boa-fé pode esquecer que, quando a Catalunha se juntou ao reino de Aragão, o fez mediante o casamento de uma infanta aragonesa e do Conde de Barcelona, em 1150, e que desde essa data até 1410 a dinastia da casa de Barcelona reinou sobre Aragão, Valência, Maiorca, Perpinhão, Rossilhão, Córsega, etc.?


2. Acresce que, a propósito do chamado Procés, isto é, o recente processo de autodeterminação catalã, se tentou passar a ideia de que este sentimento era fruto de um conjunto de ideólogos contemporâneos que, aproveitando-se da recente crise da Europa, apelava de forma egoísta à separação, esquecendo por ignorância ou má-fé que, desde o último monarca da dinastia catalã, no reino de Aragão, o partido ‘catalanista’ procurou sempre retomar o poder – preocupado, primeiro, com o apogeu bélico e, mais tarde, económico – de Castela. Assim, e seguramente muito portugueses não o saberão, um príncipe português, o Condestável D. Pedro, filho do infante D. Pedro e de uma catalã (Isabel de Urgell), morreu em Granollers (Barcelona) a 29 de Julho de 1466, por ter sido chamado pelas instituições barcelonesas para defender a monarquia de linhagem catalã, no reino de Aragão, contra a dinastia castelhana dos Trastámaras. Mesmo quando os reinos de Aragão e de Castela se aproximaram politicamente, com o casamento de D. Fernando de Aragão e de D. Isabel de Castela, em 1469, as leis e a moeda, por exemplo, continuaram separadas (a conquista da América, por exemplo, era empresa exclusivamente castelhana) até que, em 1714, Felipe V arrasa Barcelona e, de facto, cria, pela força das armas, uma Espanha com as fronteiras que de certo modo corresponderão às dos nossos dias. Pelo exposto, a “nação mais antiga da Europa” vê, deste modo, drasticamente reduzido o período da sua existência. Cabe, por fim, destacar que, desde o século XV até aos nossos dias, o sentimento de autodeterminação catalã foi uma constante: a chamada “Guerra dos Segadores”, contemporânea dos sucessos ocorridos em Portugal, em 1640 (que conduziram este país à sua definitiva independência, recordo), chegou a proclamar, em 1641, a República da Catalunha; ou ainda a guerra de Sucessão (1710-1714), cujo fim, como já disse, correspondeu a uma das mais dramáticas repressões sobre a sociedade catalã; sem esquecer, também, um sentimento secessionista ao longo dos séculos XIX e XX que culmina, na segunda República Espanhola (1931-1936), com uma brevíssima independência de horas em 1934, por Lluís Companys, anulada pelas tropas fiéis ao unionismo.

3. Após breves tópicos de História, na qual, como se viu, este sentimento identitário tem profundas raízes, comecemos a centrar-nos em questões mais recentes. De facto, após uma pacificação alcançada após a morte de Franco e de certa forma reforçada pela Constituição de 1978 (redigida em condições muito especiais e com limitações contextuais óbvias), a Catalunha recupera uma importante autonomia que fazia supor anos, senão séculos de profunda acalmia e quase desaparecimento dos ideários independentistas. Mas eis que, uma vez mais, a Espanha ultranacionalista desequilibrará os pratos da balança. Um novo Estatuto da Catalunha, aprovado pelo Parlamento catalão, retocado pelo Parlamento de Espanha, mas ratificado finalmente pelo povo catalão em 2006 por uma maioria que rondava os 75%, foi submetido a fiscalização sucessiva pelo Partido Popular (PP) através do Tribunal Constitucional. Desse pedido formulado pelo PP, contra a votação das Cortes de Espanha e do povo catalão, em 2010 (após numerosas delongas provocadas por interferências políticas da direita espanhola), num momento em que as forças mais conservadoras constituíam maioria no Tribunal Constitucional, foram declarados inconstitucionais 14 artigos, várias disposições adicionais, para além de outros artigos submetidos a interpretação.

Eis a génese da crise actual. Sentindo-se a Catalunha minimizada e desautorizada pelo Estado, que procurou (como sempre) que a Justiça se encarregasse de uma questão política, boa parte do catalanismo federalista e até unionista começou a engrossar as fileiras dos partidários da independência. Note-se que nesta primeira ‘judicialização’ da política, feita em 2006, o Estatut é drasticamente reescrito e que as propostas de Rajoy pretendiam proibir para a Catalunha artigos já aprovados em estatutos de outras regiões autónomas. Porque esta afirmação é tão grave, remeto o leitor mais interessado, ou incrédulo, a comprovar o que agora aqui escrevi em https://www.publico.es/actualidad/rajoy-da-otros-territorios-niega.html.

Porque não posso entrar em minúcias, destacarei apenas dois pontos rejeitados pelo TC. Um deles, desrespeitando a meu ver a própria Constituição de 1978, nega à Catalunha o direito de ser nação dentro de um Estado. Ora, a Constituição clarifica, no seu artigo 2.º, que “garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. Pergunto: será que pode haver nacionalidades sem nações? Outro dos artigos retocados (o 6.º) retira o vocábulo preferente da primitiva redacção “A língua própria da Catalunha é o catalão. Desse modo, o catalão é a língua de uso normal e preferente das Administrações públicas e dos meios de comunicação públicos da Catalunha”. Sendo a questão linguística um dos elementos mais estruturantes e simbólicos da sociedade catalã, o fogo estava ateado. Se nem na sua terra a língua veicular deveria ser preferentemente (e sublinho o preferentemente pois nem se exigia que figurasse como língua única), qual o destino da língua catalã? Recordo, a quantos ainda considerem, por mentalidades essencialmente economicistas e baseadas em métricas, que a dimensão de falantes de catalão não merece atenção, que existem mais falantes de catalão do que de croatas, dinamarqueses, albaneses, finlandeses, eslovacos, noruegueses, letões, etc.

4. Pelo exposto, se os desejos de autodeterminação são históricos, sendo a inserção da Catalunha em Espanha uma questão de difícil solução, a violência policial, totalmente desproporcionada, exercida a 1 de Outubro de 2017 e a sentença do Supremo Tribunal a nove políticos catalães encarregaram-se de fracturar ainda mais drasticamente a relação entre a Catalunha e Espanha. O diálogo, base de qualquer sociedade democrática, nunca foi desejado (especialmente pelo lado espanhol), cerrando fileiras com a justificação da defesa da Constituição. E eis que chegamos ao cerne de um problema que fragiliza a unidade da Espanha (ao contrário do que os partidos ‘constitucionalistas’ afirmam). A Constituição de 1978, como já aflorei, foi a mais virtuosa das constituições possíveis naquele momento. Ainda o franquismo estava vivo (mas será que chegou a morrer?), as forças armadas não davam suficientes garantias de se submeterem ao poder político (e dará a Guardia Civil, neste momento, essas garantias? Depois de ouvir o discurso profundamente político do general Garrido, intolerável em qualquer democracia avançada, como não se cansa de afirmar a propaganda oficial do Reino de Espanha, fiquei com muitos receios); os comunistas e até os socialistas eram vistos com enorme desconfiança e as nações espanholas continuavam a suscitar os discursos mais acalorados. Como seria possível ir mais longe? Por essa razão, a aprovação dessa Constituição foi um feito memorável, sendo, sem dúvida, um marco na história da civilização europeia do último quartel do século XX.

Onde reside então a minha reserva quando, hoje, não faço parte dos grupos que a sacralizam? A própria Bíblia ensina que há um tempo para tudo e que a jurisprudência foi feita para servir o bem público e regular uma sociedade enquanto objecto funcional: a partir de certo momento poderá ser uma peça perniciosa e causa motora dos maiores problemas políticos. Repare-se como, por razões de política interna e eleitoralista, o PSOE não pretende provocar alterações na Constituição, tendo-se até esquecido dos seus fundamentos ("valores") republicanos e federalistas. A Monarquia tornou-se inquestionável e o federalismo foi metido na gaveta. Se é certo que para alterar a Constituição são necessárias maiorias qualificadas, certo é também que não se tem visto este partido batalhar pelos seus próprios princípios sendo, deste modo, uma das forças com papel mais conservador na preservação do espírito e da letra do texto constitucional. Pois bem, a hora exige mudanças. E o que poderia não ter passado de um aprofundamento da autonomia mediante a criação de estados federados, hoje terá de ir mais longe: permitir constitucionalmente o recurso ao referendo.

5. As contradições do PSOE e do Partido dos Socialistas da Catalunha têm tido um papel extremamente negativo na problemática relação entre Espanha e Catalunha. Se do PP e do Cidadãos (para já não falar do Vox), pela sua posição ideológica contra a nação catalã, a sua língua e a sua cultura, ainda que profundamente nociva e irresponsável para a unidade de Espanha, nada haverá a dizer, pois é um comportamento coerente com as suas convicções, o volte face do PSOE, que a 1 de Outubro de 2017 condenou a brutalidade das forças da ordem vindas de Espanha para a Catalunha (ver, por exemplo, o título de caixa alta do periódico eldiario.es: “Pedro Sánchez critica las cargas policiales en Catalunya y emplaza a Rajoy al diálogo como solución"), contrasta com a total falta de diálogo com as forças independentistas (neste preciso momento em que escrevo, nega-se até a falar, telefonicamente, com Quim Torra, segundo a imprensa insuspeita).

Contudo, estas contradições já vêm de longe e, exceptuando o efeito antecipador de Zapatero e Maragall nas questões catalãs, se os políticos espanhóis têm uma característica é a de andar sempre atrás dos acontecimentos para, em momentos mais extremos, perder a arte da política e, ou magnificar a repressão, ou judicializar os problemas. Lamentavelmente, chegam sempre atrasados. E se o PP agravou esta já tão inquinada situação, infelizmente, o PSOE, ou melhor, Pedro Sánchez, não quis ou não pôde (intervenções dos barões do partido?) resolvê-la. Porque se a sentença emanada do Supremo resulta da irresponsabilidade dos políticos, que passaram a este Tribunal o ónus da decisão, por outro, a pressão sobre o Poder Judicial para castigar os presos (os cidadãos, intoxicados por uma imprensa profundamente unionista, exigiam um castigo exemplar), ao não conseguir encontrar razões para a mais alta das penas (rebelião), procuraram os juízes fundamentar, de forma muito forçada e perigosa (para a democracia de toda a Espanha e não só da Catalunha), uma sedição (transformando em manifestações com tumultos aquilo que eram simples manifestações). Deste modo, não se aplicaram as penas mínimas, correspondentes às de desobediência (que, de facto, existiu). Numa palavra, os políticos eximiram-se das suas responsabilidades; os juízes, por pressões e por convicções ideológicas, penalizaram escandalosamente presos políticos (expressão censurada em Espanha nos órgãos de comunicação social oficiais, sim, disse bem, censurada, mesmo antes da sentença). Espanha ficou jurídica e politicamente mais pobre e ainda mais dividida.

6. Dizia que, no momento em que escrevo, Sánchez não atende o telefone a Torra; o PP e Cidadãos juntam-se a Vox e vai-se exigindo ao Governo de Espanha a Lei de Segurança Nacional ou a aplicação, mais uma vez, do 155 (os mais radicais), com a consequente abolição da autonomia catalã. Por outro lado, a campanha eleitoral espanhola, com os mais vis interesses partidários, é seriamente responsável por não se tentar resolver, ou pelo menos mitigar, a crise que se vive na Catalunha. Os meios de comunicação extremam com alarmismo as manifestações dos jovens anti-sistema (alguns também independentistas), escamoteando as centenas de milhares de pessoas que se movimentam em manifestações pacíficas. O governo catalão entra em contradições, perturbado pelos excessos de certas cargas policiais dos próprios Mossos d'Esquadra (a polícia catalã): alguns do consellers consideram a actuação da Polícia Autonómica excessiva, outros calam por razões políticas esta evidência, outros ainda são incapazes de distinguir o trigo do joio e condenar abertamente os desordeiros e, mais preocupante, muitos jovens já se perguntam o que fazer, pois se com manifestações pacíficas a Catalunha não é ouvida (e até é condenada) por Espanha, será que terão de ir mais longe?

7. Espanha, convertendo-se cada vez mais na Sérvia do Ocidente, não conseguiu ainda perceber o problema. O seu nacionalismo cego faz com que esconda a cabeça, qual avestruz, e diga que o nacionalismo é propriedade privada dos outros: os que não querem ser nacionalistas espanhóis. Mas, na realidade, o problema espanhol, o seu nacionalismo radical, é bem simples: só a sua insegurança faz com que odeie a diversidade, imponha aos diversos territórios a cultura e a língua castelhanas como traço identitário e abomine a diversidade hispânica, reduzindo-a ao nível do folclore. E por essa razão, Espanha gostaria de acabar com o que chamam a escola catalã e encerrar o canal de televisão autonómico TV3, fonte da pretensa e falsa xenofobia da Catalunha, que é uma das regiões mais internacionalistas e cosmopolitas da Península. Seriam, assim, esta “escola” e este canal os responsáveis pela criação de seres “abduzidos” (esta é a expressão usada pelo pensamento dominante espanhol) por uma ideologia catalanista, bem como pela “fractura” da sociedade catalã (curiosa preocupação que só incide sobre os que se sentem espanhóis, não sendo capaz de se colocar nunca na pele dos que se sentem “fracturados” pelo facto de não quererem ser espanhóis). Curiosamente, eu, que sou o produto de uma escola espanhola, na qual a cultura catalã, a língua catalã e a literatura catalã eram uma página em branco, e que fui criado sob o espírito das glórias do espanhol D. Pelágio, do Cid Campeador, do Império de Carlos V, dos Terços de Flandres e da Armada Invencível, “abduzido” pela grandeza de uma Espanha una e não plural, no entanto aqui escrevo constatando, tarde demais, a grandiosidade de uma Península Ibérica, diversa, tão peculiar, que poderia ter sido imensa. Portugal saiu a tempo, pois hoje corria o risco de se ver protelado no uso da sua língua, entre muitas outras coisas. Quanto tempo se manterá a Catalunha subjugada?

Como palavras finais, defino-me como independentista à força, principalmente depois do 1 de Outubro e desta sentença. Explico: foi a Espanha que me expulsou, não fui eu que me quis ir embora."


Professor da Universidade do Algarve

in: Jornal "Publico"

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Colibri_4 poemas

...


Não sei...

Não sei...
Duvido do que quero
Quero o que não sabia
Não sei se quero o que queria
Ou se deixei de querer o que já quis
Talvez não saiba querer o que tenho
E tema não conquistar o que quero

Não sei....
Talvez apenas queira
Um querer que tudo se tem
Num estar de querer livremente
Sem querer estragar de contente
De quem tudo tem, na verdade
A partilha, e se queira sem ser metade!



Onde me perdi exactamente
No meio desta tempestade de ira
Onde ficou a pureza no olhar quente
Numa voz ausente que já não respira

Por onde ficaram os passos marcados
De uma busca esquecida de amargo
Por onde andaram os meus abraços
Que atormentaram a alma com desamparo

Por quem me transformei nesta corrida
Que não vejo ou entendo aqueles que magoam
Por quem me tomam, gente sem Vida?
So me desejam as lágrimas que desmoronam

Entre destroços de um campo rendido ao desamor
Espalhado nas cinzas convertidas em chamas
Do desencanto de um dia negro cheio de dor
Calaram de pranto as aguçadas labaredas

Como alcançar a esperança vencida?
De quem já não espera para ver o verde nascer...
Neste lugar inóspito largado à tristeza do rancor
Nascido de quereres demasiados sérios para merecer
Um novo amanhã repleto de energia e amor!

Como trazer até dentro deste tornado
A pacificidade de pólen vaguear na orla do vento
Salpicando o horizonte em tons saturados como que o pintando
Para alegrar este céu difícil de contentar no momento!

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Bonga_angola 72/74






Canção: Mona ki ngi xica
Artista: Bonga
Álbum: Bonga Live

Tradução do Kimbundo para Português:

Aviso-vos que estou a morrer 
Estou a pedir-vos 
Ele vai ficar aqui e eu vou partir 
Filho é filho mesmo, a morte é uma desgraça 
Deus me deu um filho 
E eu lhe gerei
Ele vai ficar aqui e eu vou embora. 
Filho é filho mesmo, se vier, é filho mesmo. 
A morte é uma desgraça.







domingo, 13 de outubro de 2019

Samuel Pimenta, Poesia

[ Nota: Um jovem Escritor/Poeta, indicado hoje pela minha Amiga Poeta Graça Pires]

«para mim a poesia serve para cantar, para cantar sobre o amor, sobre o que for. A prosa serve para contar. Quando quero contar uma história escrevo em prosa.» - Samuel Pimenta

Naufrágio
Por toda a noite o corvo cantou. Toda a noite o uivo do mar e toda a noite o medo dos homens. Por toda a noite o corvo cantou. As pedras, o sal, a morte. Os navios que jamais irão nascer no horizonte. Por toda a noite o corvo cantou.
O naufrágio estende-se na praia. Não corre leite nem mel na areia. Apenas os corpos, as águas tristes, os peixes. Por toda a noite o corvo cantou. Ainda há corvos que cantam para guiar os mortos.
Alcanhões, 19 de Outubro de 2014 – 00h50m
(inédito)

A sibila
As raízes das árvores entoam o som único da terra
e as aves emergem firmes, musicais.
Profere o cântico sagrado e fixa o instante
há-de nascer a voz e a profecia.
Possa a água ser luz no teu rosto
e o açúcar morar em cada sílaba que assobias.
Que teus olhos apenas vejam o bem e o bom no mundo.
As raízes das árvores são os teus pés sobre os montes
e as aves os teus gestos que emergem em espiral.
Dançam.
Danças.
O céu dança diante do teu nome
e o teu nome é o longe sem traço ou definição.
As raízes das árvores entoam o som único da terra
e as aves emergem firmes, musicais.
Nasce a sibila.
A palavra impõe-se
é teu o destino.
No dia em que a sibila morrer
o silêncio tomará de novo a terra.
Lisboa, 9 de Outubro de 2014 – 00h45m

(inédito)

Pórtico
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro.
As estrelas d’alva são mestras, guias peregrinas
e o magma que nos dilata e endurece a raiz que nos liga
a deus, ao espírito sagrado dos filhos que encarnam
uma e outra vez.
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro
sementes que o orvalho nutre e o luar amolece
luz hipnótica da mãe que nos ama do alto.
Sobre as pedras em bruto a brancura do talhe e da mestria.
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro
a liberdade a vida e o esplendor
matriz de um sonho limpo, da profecia cumprida.
Somos os novos homens da madrugada que um sorriso anuncia
faróis que ao bruar das vagas jamais se apagarão.
Alcanhões, 19 de Maio de 2014 – 16h06m

in “GeoMetria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014

Fénix
Ísis rompeu
a margem dos rios
e já não espera
o corpo a caixa
ou as partes.
Sob a esfinge
chorou o sangue
e sobre o Egipto
abriu as asas.
Nenhum deus
ouse domar
o trono o laço
e o ventre.
Ísis nasceu mulher
e nunca os reis
a verão curvar-se.
Alcanhões, 7 de Abril de 2014 – 20h37m


in “Ágora”

Sílex
Mão e pedra.
Força do
gesto que
batebate e
rompe a
forma.
O gume rudimentar da
lasca que parte e
sangra, do
sílex que
quebra e
nasce, novo,
para cortar
o rude
golpe.

in “GeoMetria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014

......

Tífon
Há um desejo latente na respiração dos monstros
à espera.
Sabem ler os astros, decifrar as línguas dos homens
e ciciar o canto dos pássaros.
Aprenderam como embalar os olhos dos outros
e caminham invisíveis rumo ao sopé da montanha
que anseiam escalar.
Querem sentar-se no trono
ascender.



Ulisses
Esperar pelo regresso
saber que virás com a
visão
viste o mundo abrir-se
de como aplicar o gesto
e banir o mal.
Esperar que regresses
que digas o teu nome
e decretes o fim do
exílio.





As Plêiades
Julgava a fuga um acto de abandono
de desistência e suspensão
dos passos.
Julgava-a cobarde e vil.
Não via como pode ser o pórtico que nos salva da morte
o caminho para nos tornarmos luz
e ter domínio sobre as sombras.


A forma dos pássaros

Fosse a espuma do mar
as penas das aves
e o bruar o canto do gaio
do corvo e da cotovia.

Se o céu fosse feito de ondas
tomariam a forma dos pássaros.

Lithos
Parte.
Golpeia a
vida e dá-lhe
a forma, o liso
traço da perfeita
escultura.
Molda o firme
mármore
como se de barro
fosse.
Sê pedreiro de
ti, mestre
da simétrica
obra que
és.
É tua a
pedra, a mão
que a talha.

in “Geo Metria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014


Correr até que o gato fale como um homem

I

Correr em círculos enquanto o gato nos lê o peso de cada passo e nos vigia a fadiga até cairmos, até que a terra que pisamos fique gasta e se afunde, até que vislumbremos o núcleo do início e nos deitemos de olhos fechados à espera que o tempo sobre nós corroa os pés que tanto correm para não chegar a lugar nenhum.

II

Correr até que o gato fale como um homem e segurar-lhe cada palavra como se agarram os pássaros entre as mãos. Cada palavra proferida por um gato tem mais valor que um poema dito por gente.

III

Correr em círculos como o gato e nunca mais proferir um som. O silêncio é o maior poema de quem já nada espera além da morte.

in “Cintilações da Sombra III – Antologia de Poesia”, Editora Labirinto, Fafe, 2015
Samuel Pimenta





.............





A morte da laranja
Uma laranja é uma esfera
que eu corto em dois pedaços.

Antes de cortar a laranja ao meio
ela já morria no ramo da árvore.

Alcanhões, 19 de Novembro de 2014 – 02h47m
(inédito)

Khora
Que alimento nos sacia
e nos nutre a altivez?

O fruto da árvore
o ouro
ou a virtude?

Cultivem-se os campos
com o cereal dos mestres.
No dia da colheita
ceifaremos um novo
homem.

Lisboa, 4 de Junho de 2014 – 01h09m
in “Ágora”

Gineceu
Dentro de quatro
arestas se fecham
as mulheres.

Dentro de quatro
arestas aguardam servis
emudecidas.

Os vasos, os cálices e as ânforas
não são barro másculo e
viril.

Esperam que lhes nasça
um falo para que tenham
lugar entre os homens?

Lisboa, 22 de Maio de 2014 – 15h15m
in “Ágora”

O círculo
Existe um círculo no chão desenhado a giz e uma criança que brinca lá dentro. Essa criança sou eu. O céu exibe o rubor de um entardecer de outubro e nenhuma ave abraça o chão com as asas. Todas as aves dormem em árvores ocas e grutas sem som. Uma serpente entra no círculo e a criança olha-a de frente. Há nos olhos da criança o fogo indígena de quem dá sinal que existe. A serpente rasteja sobre o giz desenhado no chão e já não existe o branco do círculo, apenas as escamas de uma pele com fome. O eterno abraço da morte. Os olhos da criança não queimam mais, apagou-se o fogo. E do abraço da serpente emergem farpas, as mandíbulas de quem é mais forte que nós.
As serpentes são lanças que nos furam.
Alcanhões, 23 de Dezembro de 2014 – 13h30m
(inédito)


Génese
Possas olhar a larva
como se olham os espelhos.

De todos os traços do mundo
saiu uma linha do teu rosto.

Alcanhões, 19 de Novembro de 2014 – 02h15m
(inédito)

......

Samuel Pimenta nasceu a 26 de Fevereiro de 1990, em Alcanhões, Santarém. Começou a escrever com 10 anos e licenciou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Em 2010, foi um dos contemplados com o VI Prémio Literário Valdeck Almeida de Jesus na vertente de Poesia, no Brasil. Em 2011, foi cronista na revista online “Clique”. Foi vencedor do Prémio Jovens Criadores 2012, na vertente de Literatura, promovido pelo Governo de Portugal e pelo Clube Português de Artes e Ideias, com o poema “O relógio”, hoje publicado pela editora Livros de Ontem. Em 2013, foi homenageado no VI Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora, na Fundação José Saramago, pelo trabalho que tem vindo a desenvolver em prol da Literatura e da Cultura Lusófona, tendo sido nomeado Sócio Honorário do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora. Recebeu, em 2014, a Comenda Luís Vaz de Camões, atribuída pela “Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas”, no Brasil, assim como o Prémio Liberdade de Expressão 2014, atribuído pela Associação de Escritores de Angra dos Reis, Brasil. Tem participado em diversas conferências e encontros literários nacionais e internacionais e tem colaborado com publicações em Portugal, Brasil, Angola e Moçambique. Actualmente, é Presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Lisboa, Conselheiro em Portugal da “Literarte – Associação Internacional de Escritores e Artistas”, cronista do site de informação “Rede Regional” e da Revista “ID-Identidade”, além de dinamizar tertúlias literárias.

Obras Publicadas:

– “Geo Metria”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014
– “Geo Metria”, Editora Literarte, Rio de Janeiro, 2013
– “O relógio”, Livros de Ontem, Lisboa, 2013
– “O Escolhido”, Planeta Editora, Lisboa, 2009

Participações em Antologias:

– Clepsydra – Antologia Poética, Coisas de Ler, Lisboa, 2014
– “Abril depois de Abril”, Livros de Ontem, Lisboa, 2014
– “Milandos da Diáspora – Revista Cultural”, Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora, Lisboa, 2013
– Antologia Universal Lusófona “Rio dos Bons Sinais”, Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora, Lisboa, 2013
– Participação na colectânea “Paralelos”, E-book, Portugal, 2013
– Participação na colectânea “Jovens Escritores 2012”, Clube Português de Artes e Ideias, Portugal, 2012
– Antologia de Poesia Contemporânea “Entre o Sono e o Sonho – Vol. III”, Chiado Editora, Lisboa, 2012
– Antologia do “VI Prémio Literário Valdeck Almeida de Jesus na vertente de Poesia”, Brasil, 2010.

Participações Diversas:

– Jornadas da Literatura Portuguesa do Instituto Camões em Bruxelas, Bélgica, 2014
– Raias Poéticas III – Afluentes Ibero-Afro-Americanas de Arte e Pensamento, Vila Nova de Famalicão, Portugal, 2014
– Bienal Internacional do Livro de S. Paulo, Brasil, 2014
– Salão Internacional do Livro e da Imprensa de Genebra, Suíça, 2014
– IV Festival Grito de Mulher, Lisboa, Portugal, 2014
– Aturujo à Terra – I Feira das Artes e das Letras para a Terra”, Ramil, Galiza, 2014
– Feira do Livro de Frankfurt, Alemanha, 2013
– Raias Poéticas II – Afluentes Ibero-Afro-Americanas de Arte e Pensamento, Vila Nova de Famalicão, Portugal, 2013
– VI Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora, Lisboa, Portugal, 2013
– Mandatário para a Promoção da Cultura da Candidatura de Idália Salvador Serrão à Câmara Municipal de Santarém, Portugal, 2013
– Júri do Concurso Nacional de Leitura – Eliminatória Distrital de Portalegre, Portugal, 2013
– II Jornadas de Filosofia da Universidade do Minho – Filosofia e Arte/Poesia, Braga, Portugal, 2011.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Graça Pires_ Uma vara de medir o sol _ crítica literária


A minha amiga e poeta, Graça Pires, tem nesta crítica literária, elaborada por Maria DoVigo, publicada hoje na Revista [AQUI:   (Link) ], uma análise intensa e objectiva do seu livro «Uma vara de medir o sol», digna de figurar como prefácio nesta obra excepcional, como excepcional e maravilhosa e’ toda a sua Poesia.

Espero que venha a ser muito mais conhecida/reconhecida do que, infelizmente, tem sido.

‘A Autora desta crítica literária, a minha [também] admiração.

Tomo a liberdade de a transcrever para o m/blog https://planetaorbital.blogspot.com/ . Se não concordar, agradecia que mo comunicasse, afim de a eliminar.


Bem-haja.








"O livro começa com um “Regressei”, com um movimento de viagem e uma cartografia em que existem os longes inacabados como desenhados com um fino lápis. A linha do regresso e o alento afetivo e narrativo que abre é cortada bruscamente com o movimento assimétrico da foice a ceifar o trigo e o tempo em ciclos e círculos que deu metáfora ao pensamento para inventar a agricultura. E ainda se abre no poema uma outra possibilidade temporal e narrativa, a do mar e a potência do humano a metaforizar o movimento primordial e constante das marés. Todos os fios narrativos são atravessados por imagens que são metonímia da presença humana, evocando dum lado o agudo, o cortante, nas unhas e nos dentes e a degradação na palidez, e doutro esse alarme para qualquer cousa como a possibilidade dum desenlace catastrófico, dum futuro de terra devastada, que já vai como carga nessa “dupla sombra dos barcos”, imagem do humano e as suas dualidades, sejam elas a marca de como apreendemos o mundo ou a representação das escolhas e as bifurcações dos sentidos.


Todo o livro está atravessado por estas linhas de fuga inacabadas e dinâmicas, portadoras de energias e sentidos: o paraíso que se lembra ou se profetiza, descrito como frágil ou dificilmente percetível, a força do ritual que por vezes consegue impregnar a palavra e dar-lhe o seu fim transformador, o testemunho da destruição e a precariedade, dos estilhaços do mundo, a esperança no caminho da salvação aberto pelo afeto e a capacidade de ver longe, de manter rotas certas ou de portar luz dos personagens femininos, dos viajantes, dos rios e das aves. Narra a história da civilização como um relato das relações entre o humano e o material com a mediação do logos, palavra e pensamento, com estilo fundamentado nas elipses e na captação do essencial por metonímias que nos dão acesso ao todo: a presença primigénia, soberana e mágica da terra, a irrupção do humano, a invenção da agricultura na repetida metonímia do cereal, a perda da transparência dos signos e do sentido do destino, a continuidade da enunciação do natural e a esperança na reconstrução da harmonia entre o humano e o cósmico. Episódios todos relatados sem sequência, mas numa linha de constante presença do todo e a tensão à volta das suas relações, como se tudo convergisse para o momento do corte da harmonia ou a esperança no seu retorno, não se sabe nunca se previsto ou não, que vertebra sem organizar, sem sentidos únicos, a presença humana no seu habitat.


“Antes do homem havia a terra:

geografia mágica, sagrada…

Depois da terra veio o homem.

E o homem tornou-se um morador incauto

e perdeu o paraíso onde agora os deuses,

quando passam, desviam o olhar” (página 46).


Habitat, porque este é um livro sobre o habitar, sobre a casa. Alguns poemas põem o foco sobre o habitar fazendo, plantando e cultivando. O poema titulado “Desconhecemos as cicatrizes das mãos” toma as mãos como metonímia do humano, mãos que se transformam e que ficam marcadas com cicatrizes e gretas pelos instrumentos de lavoura, mós, enxadas ou arados, com os que o humano transforma a natureza para o seu sustento. Mãos, que como os olhos, entram na matéria e a transformam e que, por sua vez, são veículo da transformação do humano no próprio ato de fazer, diluindo relações hierárquicas entre sujeitos e objetos numa realidade de influência, dissolução de margens e interpenetração constante.


Noutros poemas se representa o humano como uma certa tensão na postura que lhe vem da sua verticalidade e uma existência paradoxal que se sente por um destino que se deseja, “invocando”, mas do que não se tem a certeza, pois parece que o centro, a emanação da energia, o sol que traça a linha e projeta o humano em sombras, sempre está fora, como no poema que contem o verso que dá título ao livro:


“De pé, demoradamente invocando

o grito do destino, somos a sombra

de uma vara, presa à inclinação do sol,

que define a vertigem que nos derruba

e que nos ergue” (página 37).


Percorre os poemas uma esperança de que o humano exceda o textual, que tenha a natureza do orgânico e o cósmico. Assim a palavra por momentos consegue representar a fluidez do mundo material em imagens de continuidade e liquidez, num quadro em que começa com um gesto de vontade de fazer e prender, de ter raiz, no poema “Plantei na janela uma hera inclinada para dentro”, poema sem medo ao corte da mutilação que noutros poemas é ameaça constante. Ou no poema “Escavo no peito um declive de seara”, em que a continuidade material entre o terreal e o corpo humano é tal que permite em ambos o labor agrícola.


Os verbos de enunciação, lembrar, esquecer, contar…, são ditos com a esperança de estabelecer uma aliança entre a presença humana e o habitat natural que se situa num momento que por vezes é remoto e por vezes é profetizado. Em vários poemas recolhe-se a ideia de linguagem ritual, sagrada ou mágica que vai atravessando esse relato da humanidade a habitar a terra, como no poema “Temos um quebranto no friso do olhar”. A aprendizagem do ritual na infância permite ter esperança no poema “Os rituais da infância não nos deixam esquecer”, significado reforçado pela repetição constante do adjetivo “verde”, na possibilidade do paraíso, a harmonia, o sentido no passar do tempo. Em outros poemas a enunciação não atinge toda a potência da sua energia e só nos dão testemunho dum movimento de fuga neste mundo dessacralizado da ordem artificial, como no poema que começa com os versos “Nem sempre as janelas oferecem às casas/ todas as possibilidades da luz”.


Outra possibilidade de sentido para o tempo humano se abre com os poemas que variam sobre o movimento, seja o movimento das aves, dos rios ou dos humanos. As aves, os viajantes e os rios fluem para uma mesma mensagem, o de uma rota, um destino, uma memória semelhantes, signos de um alfabeto cifrado que o humano conhece na viagem, como nos poemas “Conta-se que há laranjais que rebentam”, “O viajante ajoelhou-se sobre a terra”, “Seguimos pela noite indiferentes”, em que lemos o verso “destino das aves que trazem a luz das auroras riscada em suas penas”. Ou no poema final, “Naquele mês espalhara-se a insólita notícia”, com a mínima história das mulheres que abandonam as casas e sobem às colinas por terem pressentido a vinda das andorinhas. Ou aqueles poemas que descrevem situam o humano nas margens: a “curva do tempo na concha ansiosa do olhar”, “os homens [que] caminharão na berma das estradas carregando os filhos”, os que “vivem na linha costeira dos continentes” e “enfeitam os pulsos com amuletos de búzios”.


Mas o que fica mesmo inscrito na memória são os versos que falam de um momento de corte, que trouxe o “desvario dos caminhos” e “o exílio de pássaros e aves”, momento catastrófico da cisão entre a ordem natural e a humana que se pressagia nos poemas “Vem do rio um vento interminável, como um cerco” e “Quando as espigas surgiram de repente” ou que se lembra no poema “Conhecemos a obscuridade dos quintais”, impedindo com este cruzamento de perspetivas temporais contar a história humana em linha reta ou em sequência irreversível. É um episódio que parece poder acontecer em qualquer momento, o dum antes e um depois de uma vivência primordial, paradisíaca, essencialmente frágil, que algum saber desfaz, como no poema “No verão todas as manhãs são belas” e a partir do qual o humano já não consegue decifrar o mundo, a pesar de a natureza continuar a ser tão transparente como quando a habitava como paraíso, como no poema que começa com os versos “Envelhecemos com uma vara/ de medir o sol na linha do olhar”: não entendemos os sinais inscritos, ainda que o piar dos pássaros seja tão nítido. Mas a perda do sentido pode ser reversível, como no poema de tom profético “Um dia nos pátios das casas” ou no poema “Aguardamos uma luz de seiva”, um poema de esperança na repetição dum “fiat lux”, duma luz que afaste o humano do caos, da morte e da culpa e dê um sentido único e farto ao cósmico, o orgânico e o humano.


Há o texto, há a autora e a leitora que escreve estas linhas, há a presença da palavra que venha dos longes que vier sempre se faz presente. Há o contexto do tempo com que a poeta fala em palavra transformada pela ação do dizer poético em símbolo que irradia e que é necessário à existência situada no tempo e no espaço. E há o meu olhar que recebe, que compreende desde a sua memória sensitiva, emocional e lírica. Nasci virada a norte, com um dialeto lírico levemente diverso ao da poeta Graça Pires no que ao signo do sol diz respeito. Conheço, estão gravados na minha memória espiritual galega, nos ritos com que cresci, as metáforas que se vivem nos rituais da roda anual do sol, mas também uma tradição lírica, musical e literária, mais recente, que oscila entre o discurso irónico sobre o símbolo solar e a invocação da sua vinda nas alvoradas, tradição, ou vaga contemporânea, que se sente confortável em cenários de luz noturna e diálogos com o luar. Dou como exemplo os cenários em que nos “roubarom o sol” ou em que se prepara “um naufrágio com a ausência cúmplice do sol” dos poemas de Manuel António ou o “Vem-te aurora” da “Alvorada” de Rosália de Castro.


Por outro lado leio com a minha memória mais pessoal, a da criança que se apaixonou por um romance intitulado Os filhos do sol, que contava a história do faraó herege fundador de uma nova religião, a que fixou na sua arca imaginária pessoal o cenário do sol traçador de caminhos sobre o mar que lia à sombra da torre de Brigântia. Apaixonei-me por esta linha da tradição lírica lusitana que dá sinal da descoberta e a contínua demanda duma medida do universo. Compreendo os achados poéticos como achados sem mais e tenho este livro nas mãos com a emoção de um manuscrito encontrado que não quero datar, que me dá testemunho de quem se situa para além do tempo, na tradição, como dizia Daniel Castelão, para encontrar chaves e interpretar o tempo sequencial, essa dimensão em que o humano se desenvolve sempre em linha reta sem nunca poder voltar.


E no entanto este livro tem data, está enraizado neste tempo de dissolução dos territórios e as suas culturas, na duplicidade da metáfora no agrícola e no linguístico de diversas linguagens, da desfeita da mater como matéria que informa todo o pensamento. A palavra “casa” dos versos de Albano Martins que servem de abertura, uma casa que herdamos e que é a própria vida, dão a moldura para pensarmos como poetas a casa, a comunidade e o destino que se decide nesta linha do tempo que passa cortando e que não podemos deixar de transmitir. Há uma postura que se torna emocional e energética, essa vara que é o humano. Na literalidade do livro não leio outra intenção para além da enunciação das palavras, e para mim, como leitora e poeta, é suficiente, pois todo o livro é atravessado por um tom de dizer ritual, como quem quer trazer a emoção e a ação de um tempo em que dizer a palavra é fazer presente a cousa. Uma vara de medir o sol é um exercício de imaginação material, de leitura do mundo e de narração, poesia com movimento de escavação, inscrição, poesia côncava que explora o que se passa no “ângulo interior dos séculos”, da fibra mais íntima do devir humano, poesia que nos faz compreender porquê a escrita nasceu como inscrição, simbolizando os sons aéreos em signos sobre a pedra. Poesia que se sustenta na compreensão de que a natureza é literal e que os poetas leem quando escrevem e os humanos traduzem quando falam."

Cf. .

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Maria DoVigo

(Galiza-Portugal) Nasci na Crunha em 1972 e vivo desde 2000 em Portugal. A minha formação é a Filologia, exerço a docência e sou poeta por vocação. No labor criativo ligo a minha vontade de intervenção cívica com a convicção de que a criação é a verdadeira natureza do ser humano. Colaboro com diferentes associações do espaço lusófono, tecendo redes de afetos e projetos à volta da vivência da língua portuguesa. Sou académica de número da Academia Galega da Língua Portuguesa.

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Outra apreciação:




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Sobre a Autora e a colectânea "Poemas Escolhidos":




Graça Pires Poemas Escolhidos (1990-2011) De uma dúzia de livros publicados entre 1990 e 2011, Graça Pires editou Poemas Escolhidos, uma antologia organizada pela autora que nos diz em nota de abertura: «Não foi fácil a escolha. Não pretendi questionar-me ou questionar alguém sobre a emoção e a sensibilidade que a poesia reclama. Escolhi aqueles poemas onde o meu olhar se deteve mais tempo ou se sobressaltou com as palavras escritas. Aqueles poemas onde o rosto da poesia se confunde com o rosto do poeta que procura um compromisso entre a linguagem estética e o sentimento, entre o sonho e a realidade. É uma poesia de cariz intimista onde falo de amor, de solidão, do mar, das coisas da vida: aquelas que me vão acontecendo a mim e aos outros. Procuro misturar o pessoal com o social na mesma vertigem do quotidiano, em que as palavras se tornam um espaço de afectos ou de mágoas, de esperança ou de angústias». Graça Pires tem uma poética de invulgar sensibilidade, recusando sempre a facilidade. Em cada verso alcança a unidade perfeita entre o Ser total e o jogo magnífico das metáforas, da significação. Nesta relação com a imagética, a autora não recorre a figuras de estilo pomposas e vazias. Pelo contrário, há na sua lírica uma infinita preocupação com as palavras, depurando o poema até este ser uma luz natural, profunda, espelhando uma autenticidade que constrói a grande partilha de afetos e reflexões. Estamos perante uma antologia que nos permite avaliar a evolução da poesia de Graça Pires, criadora de obras como Poemas (livro de estreia, vencedor do Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, 1988), passando por mais trabalhos de referência, nomeadamente Uma Certa Forma de Errância (Prémio


Maria Amália Vaz de Carvalho, 2003), O Silêncio: Lugar Habitado(Prémio Nacional Poeta Ruy Belo, 2008) e A Incidência da Luz, 2011. Devemos igualmente destacar um outro livro seu, intitulado Uma Vara de Medir o Sol (editado no Brasil), do qual reproduzimos um poema a testemunhar a clareza de um discurso poético que navega uma linguagem sublime: «Escavo no peito um declive de seara / para ceifar o pão e roçar o ventre / no aroma dos fenos, até que o fermento / levede o trigo por entre os dedos do estio. / As farpas de um arado podem sulcar-me a pele / porque é de terra o molde do meu corpo». O "sentido das palavras" é visceral nos passos literários de Graça Pires e indissociável dos grandes temas do amor, do tempo, da memória, do meio ambiente, da natureza em todas as suas grandezas e fragilidades, das artes, da vida e morte, do Eu e o Outro num diálogo intenso que demanda a claridade mesmo quando (ou sobretudo) «Um duplo estremecimento lateja nos espelhos». Falamos de uma poesia de busca constante na qual se conciliam «íntimas paragens» e «a dupla teia dos lábios», onde o quotidiano e a idealização são um só lugar, o da coerência poética. Repare-se neste poema da antologia pessoal de Graça Pires: «O ofício das mãos não se intimida / com a apressada cadência do tempo. / Não tem fim o silencioso enleio / que se esconde por entre a argila / nos dedos do oleiro; ou se enrola no linho/ dos lençóis tecido pelas mães; ou se prolonga / no pão quando chega o mês do trigo. / Porque esse é o destino das mãos, / tão alheio à urgência de cada dia». Graça Pires costuma dizer que chegou tarde a todas as coisas, inclusive à escrita. Discordamos. A sua antologia é prova bastante de que a consciência do poema é intemporal. Depois, naturalmente, há um itinerário: «(...) E sobre o chão da página me debruço e me procuro».


Avessa a parangonas e à ribalta, Graça Pires tem uma carreira literária sólida, marcada pela exigência de uma autora que conhece bem as «máscaras dos búzios», «a lâmina do silêncio», «a ácida solidão das letras», «a lança das memórias», «os desígnios da morte», e, também, «a respiração do mar», «o clamor das antigas oliveiras» e o «chamamento do corpo». Uma obra que atingiu a maturidade plena. © MARIA AUGUSTA SILVA