Ricardo J, Rodrigues/Especial jornalContacto
05 Abril 2020 — 00:10
Catarina vive desde 2011 em Esch-sur-Alzette, a segunda maior cidade do grão-ducado. É funcionária de limpezas num lar de terceira idade e, desde que a pandemia de coronavírus tomou o país, ela tornou-se a voz incontornável na defesa das mulheres que estão na primeira linha de contágio, mas a quem não são dadas as devidas condições de segurança.
"Comecei a protestar com os patrões, não só pela minha dignidade, como pela dignidade de todas as minhas companheiras", diz. São as máscaras que lhes prometeram e nunca chegaram, as luvas que se rompem por tudo e por nada, é terem de limpar os quartos de doentes infetados sem recomendações de segurança. "Estamos num tempo de emergência e temos uma missão para cumprir", explicou aos empregadores. "Nós estamos dispostas a fazê-lo. Mas não podemos ser carne para canhão."
Assumiu-se delegada sindical na sua empresa. Trabalha para a Dussman, uma prestadora de serviços com mais de duas mil funcionárias como ela. "Mulheres mal pagas, algumas com filhos em casa, outras com doenças crónicas, que estão a trabalhar no duro mas também têm direito a preservar a sua saúde e a dos seus familiares." Esta luta, diz Catarina, é pela decência. E essa é uma lição que aprendeu do pai.
A notícia de que uma portuguesa de cabelos vermelhos andava a organizar uma revolução pela dignidade das femmes de ménage começou a correr pelas despensas do Luxemburgo, rápida como o vento. "Desde que foi declarado o estado de emergência recebo dezenas de e-mails, mensagens de Facebook e telefonemas por dia", diz Catarina. "Não só da minha empresa, como de outras. Há muitas dúvidas e abusos continuados dos direitos. E eu respondo a toda a gente."
Os casos que não sabe atender encaminha-os para a OGBL, a maior central sindical do país. Mas revolta-a a forma como milhares de mulheres estão a ser deixadas à sua sorte. "No outro dia aconteceu no meu lar. Estávamos a lavar a loiça do almoço de mãos, pratos, talheres, restos de comida e tudo. Depois reparei num tabuleiro que era de um utente do lar que estava infetado com covid e que acabou por morrer na passada quarta-feira. Então não selaram nem nos indicaram nada?"
Armou um pé-de-vento, claro. Por sorte o tabuleiro com a comida não tinha chegado a entrar no quarto, garantir-lhe-ia horas depois a enfermeira da casa de repouso. Reiteraram-lhe pedidos de desculpa - o pessoal médico e os seus chefes - mas ainda não aprendeu a viver com o medo.
"As pessoas habituaram-se durante anos a não nos ver, a não olhar sequer para nós. Somos uma classe invisível que agora as pessoas perceberam que se tornou essencial", diz agora à porta de casa. "Limpamos os hospitais, os lares, expomo-nos ao perigo para ganhar meia dúzia de tostões. Então, caramba, já basta de sermos tratadas como ralé."
Ali, no lar de Esch, há mais de 200 velhotes, uma morte e duas infeções confirmadas, mais a expectativa de um foco de contágio nos próximos dias. "Costumamos ser 26 mulheres, agora estamos dez porque muitas tiveram de ir para casa tomar conta dos filhos. Ou então não podem vir porque têm pais a cargo."
Não se queixa delas, compreende os seus problemas. Diz que muitas delas tinham oficialmente apenas meios horários, apesar de cumprirem tempo integral. "O resto era pago em horas extraordinárias pela empresa. Por isso estas minhas colegas estão em casa a receber o subsídio especial do governo, sim, mas apenas referente a metade daquilo que trabalham."
O esforço das que permanecem é redobrado. Antes do coronavírus, cada mulher limpava sete quartos, agora limpa 24. A lavagem da loiça, dos 200 utentes do lar mais 600 velhotes que recebem apoio domiciliário, é agora cumprido a seis mãos, em vez de 12. "E no meio disto tudo o que me dói mais é não poder dar um beijinho aos velhotes, que são aqueles que nos apreciam realmente. Não pode ser, eu sei. Mas custa."
Uma herança extraordinária
Os dias fizeram-se cheios como nenhuns outros desde que chegou ao Luxemburgo. É que, além de andar a duplicar os turnos no lar, Catarina tem quatro filhos - uma rapariga de 16 e um rapaz de 10, mais uma menina de 6 e uma bebé de 1 ano. "O meu filho tem asma, sei que corre riscos por isso. Tento precaver-me para que não lhe aconteça nada mas todos os dias chego a casa de coração nas mãos."
Podia ter parado, como tantas colegas, mas não o quis fazer. "O meu marido trabalha nas obras, que agora pararam, e então ele pode tomar conta da miudagem. E não é só isso. Num período destes temos de fazer a nossa parte para que o mundo seja mais justo ou mais livre. Se as limpezas acabassem, os hospitais não podiam funcionar, os velhotes ficavam ao abandono. Nunca saberia viver com isso."
Então desdobra-se. Mãe e mulher, amiga e sindicalista, cozinheira, arrumadora de quartos, lavadoura de loiça. À vizinha do rés-do-chão, que já passou os 80, faz as compras todos os dias. Prepara exercícios e jogos para os miúdos à noite, que depois imprime e deixa na caixa de correio para que outras colegas com filhos pequenos possam passar e apanhar. Mas o que mais lhe rouba o tempo, admite de caras, é a luta que se predispôs a fazer durante a pandemia.
"Penso muito no meu pai, por estes dias. De como seria estranho para ele, que combateu pela liberdade, ver como uma doença obrigou o mundo a cessar a democracia." Emociona-se ao falar de Salgueiro Maia. "Eu só espero que ele, esteja onde estiver, tenha orgulho da filha. Não estudei nem tenho nenhum cargo importante, mas decidi lutar por alguma coisa que considerava justa e acho que seria isso que realmente importaria para ele.
Catarina tinha 6 anos quando o pai morreu, foi a 4 de abril de 1992. As memórias que guarda são as de um homem doce, que lhe cantava antes de adormecer A Samaritana, um fado de Coimbra. "Lembro-me de irmos com ele ao quartel e eu pensar que ele não se ria tanto quando estava na tropa, era mais sério. Mas comigo e com o meu irmão, que é quatro anos mais novo, ele derretia."
Nunca se irritou por crescer sob a asa de um herói, ser filha de Salgueiro Maia foi orgulho em todas as fases da vida. "Sinto que os políticos não o trataram bem, mas o povo amou-o sempre. E foi também isso que aprendi com ele, mesmo depois de ele já não estar comigo." Se um grupo de capitães conseguiu depor em 1974 uma ditadura, se conseguiram cumprir uma revolução praticamente sem sangue e envergando cravos nas espingardas, "então o que conta é o que somos e o que fazemos, não a posição que detemos".
Ela tem orgulho na sua aventura. De como se meteu à estrada para o Luxemburgo há nove anos com o marido, com uma miúda de 7 e um bebé de 1 ano nos braços. Não fugiam de nada, só queriam uma vida melhor. Trabalhou durante seis anos em cafés e um dia não aguentou mais. "Estava em processo de divórcio e passar o dia a conviver com pessoas parecia-me uma ideia insuportável."
Há três anos entrou para a firma de limpezas. Apaixonou-se novamente, agora tem mais um bebé, não canta A Samaritana à filha mas conta-lhe como o avô, aquele do retrato grande da sala, fez um país inteiro livre. "Foi a fazer limpezas que eu recompus a minha vida e que reencontrei a felicidade. Tenho muito orgulho na minha profissão. E isto eu sei: hei de lutar sempre contra quem não a respeitar." Então podem os dias ser duros, sim, que ela tratará de continuar a fazê-los livres. Falou Salgueiro Maia.
Especial em colaboração com o jornal Contacto, no Luxemburgo
Uma reportagem exclusivapublicada originalmente no DN no dia 5 de abril
Sem comentários:
Enviar um comentário