quinta-feira, 23 de outubro de 2014

David Mourão Ferreira_Obra Poética









É como se tivesses mãos ou garras
                              I


É como se tivesses mãos ou garras
milhões de dedos braços infinitos
É como se tivesses também asas
libertas do minério dos sentidos
É como se nos píncaros pairasses
quando nas nossas veias é que vives
É como se te abrisses - ó terraço
rodeado de abutres e raízes -
sobre o perene pânico dos astros
sobre a constante insónia dos abismos
E é como se te abrisses e fechasses
sobre a antepalavra do Espírito
É como se morresses quando nasces
É como se nascesses quando expiras

                               II

Ó claridade Ó vaga Ó luz Ó vento
que no sangue desvendas labirintos
Ó varanda no mar sempre Setembro
Ó dourada manhã sempre Domingo
Ó sereia nas dunas irrompendo
com as dunas e o mar se confundindo
Ó corpo de desperta adolescente
já no centro de incógnitos caminhos
que por fora te aceitas e por dentro
pões em dúvida o sol do teu fascínio
Ó dúvida que avanças mas por entre
volutas de pavor que vais cingindo
Ó altas labaredas Ó incêndio
Ó Musa a renascer das próprias cinzas

                              III

Só tu a cada instante nos declaras
que renegas a voz de quem divide
Que a única verdade é haver almas
terrível impostura haver países
Que tanto tens das aves o desgarre
como o expectante frémito do tigre
tanto o céu indiviso que há nas águas
quanto o múltiplo fogo que há no trigo
Que és igual e diversa em toda a parte
Que és do próprio Universo o que o sublima
Que nasces que te apagas que renasces
em procura da límpida medida
Que reges o mais puro e o mais alto
do que Deus concedeu às nossas vidas



David Mourão Ferreira
Ode à Música_Obra Poética
1948-1988

Editorial Presença



Casa
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.



David Mourão Ferreira
Infinito Pessoal
(1959-1962)
Obra Poética
1948-1988

Editorial Presença

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