quarta-feira, 26 de maio de 2021



morrem aos pares

Poetas das manhãs

no crepúsculo

dos dias

para sempre

guardados.




rios que correm

sem margens

na savana angolana.

.

LMC






DAQUI:

MARIA ALEXANDRE DÁSKALOS

(1957-2021)


Nasceu em mim uma fonte

nada sabia dessa água

até encontrar as margens

desta escrita

que quis fosse lisa

como pedra mármore





***





Amendoeiras selvagens

em flor

a rasgar o verde

da mata de inverno.



Plenitude de maturidade

como relógio de areia

a marcar os quarenta anos.





***



Um homem ao crepúsculo

sabe que os poetas e as mulheres

percorrem as ruas da cidade



na peregrinação dificílima do amor.

Esperam-nos em caves secretas

ungüentos e odores tropicais

então, um homem tranqüilo torna fácil a nudez.





***





As velhas tias organizam velórios

e com o pêndulo do ocaso



invertem as rotas dos barcos

saídos do cais ao fim da tarde.



Ecos que já não lutam com ventos perigosos

de aromas marinhos

anseiam chegar à ilha para ver os pássaros

e

preguiçar na promessa de uma ilusão cumprida

Ao fim da tarde...





***



A alma é como a lavra.
Quando as nossas mãos voltam a desfiar.
O milho amarelo de ouro?
Que outras mãos que as nossas semeiam
O medo e o silêncio da morte?
Por que este frio? Por que tão longa a noite?
Como se faz o mundo? Quando começa o mundo?


***



O garoto corria corria
Não podia saber
Da diferença entre as flores.
O garoto corria corria
Fugia.
Ninguém lhe pegou ao colo
Ninguém lhe parou a morte.




***



E agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz - esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu. Os deuses não assistiram a isto.

*



Maria Alexandre Dáskalos, poeta angolana, nasceu em Huambo, em 1957, filha do poeta e intelectual nacionalista Alexandre Dáskalos. Estudou nos colégios Ateniense e de São José de Cluny, formando-se em Letras. Em 1992, durante a guerra civil, mudou-se para Portugal, com a mãe e o filho. Atualmente, é jornalista na RDP África e mestranda em História Contemporânea. Publicou Do Tempo Suspenso (1998), Lágrimas e Laranjas (2001) e Jardim das Delícias (2003).








Arlindo do Carmo Pires Barbeitos

(1940-2021)



Arlindo do Carmo Pires Barbeitos, nasceu em Catete, Província de Icolo e Bengo, Angola, em 24 de Dezembro de 1940. Em 1961, foi obrigado a fugir de seu país por motivos políticos. Viveu na a França, Bélgica, Suíça, e Alemanha, onde cursou Antropologia e Sociologia na Universidade de Frankfurt. Tem doutorado em Etnologia e foi professor na Universidade Livre de Berlim Ocidental e na Universidade de Angola, para onde regressou em 1975.





No tempo/em que as pacaças entravam



no tempo

em que as pacaças entravam

pelos povoados

o vôo alvoraçado das perdizes

carregava sonhos

que

a mãozinha inerme de criança

feliz

agarrava ao lusco-fusco dos muxitos

no tempo

em que as pacaças entravam

pelos povoados



(Na leveza do luar crescente)





Oh flor da noite/onde todo o orvalho se perde



Oh flor da noite

onde todo o orvalho se perde



teus olhos

não são estrelas

não são colibris



teus olhos

são abismos imensos

onde na escuridão

todo um passado se esconde



teus olhos

são abismos imensos

onde na escuridão

todo um futuro se forma



oh flor da noite

onde todo o orvalho se perde



teus olhos

não são estrelas

não são colibris



(Angola Angolê Angolema)





"borboletas de luz"



borboletas de luz



esvoaçando

de cadáver em cadáver

colhem

o fedor dos mortos em

vão



e

pelos buracos da renda

dos dias

passam alacres

do mundo do esquecimento

ao país da indiferença

levando consigo

o pólen fatal

das flores da guerra



borboletas de luz



(Na leveza do luar crescente)





"oh alambique..."



oh alambique

de saudade



destilando

álcool de poesia

pára pára



oh alambique

de saudade



(Na leveza do luar crescente)





"imersa em sereno de lusco-fusco"



imersa

em sereno de lusco-fusco

e

suspensa em vazio



São-Tomé



carrocel de montanhas

carregador de nuvens

transportados de sonhos

irrompendo

de abismo de espuma

e

sumindo

em precipício de bruma



São-Tomé



suspensa em vazio

e

imersa em sereno de lusco-fusco



(Na leveza do luar crescente)





"na leveza do luar crescente"



na

leveza do luar crescente

sobe

a ilusão da felicidade

que

teu gesto distraído

me dá



como se

plumas vogando suaves

na brisa

fossem

vida de pássaro apodrecendo

na

leveza do luar crescente



(Na leveza do luar crescente)





"na transparência da tardinha"



na transparência da tardinha

que

impávidos imbondeiros sombreiam



cantar de galinha do mato

é

eco de um tempo

em

que ilusão e verdade

cirandavam alheias ao mundo



a esperança medrava verde

verde

como rebento de capim de outubro



na transparência da tardinha

que

impávidos imbondeiros sombreiam



(Na leveza do luar crescente)





"pela névoa de pesadelo"



pela névoa de pesadelo

a dor passa

clandestina

a fronteira dos instantes

e implacável

monta guarda

ao porão dos dias

ao contorno dos gestos

ao ruído das coisas

e

ao sentido das palavras

embaciadas

pela névoa do pesadelo



(Na leveza do luar crescente)








CARNAVAL CARNAVAL CARNAVAL

carnaval carnaval carnaval

guizos apitos dicanzas* gomas2** puitas*** e quissanges
vozes

vozes cantando berrando gritando chorando gargalhando

[e calando

papel riscado seda serapilheira peles e pele missangas pulseiras chapéus espelhinhos cacos de

[garrafas e outras coisas

vermelho amarelo verde azul

azul verde amarelo vermelho o céu e o sol

carnaval carnaval carnaval



olhos para o ar mãos sem nexo peitos em turbilhão ventres abobadados cus em assimetria e corpos jazendo gentes

gentes gingando bamboleando saracoteando

[massembando^ cambalhotando e dormindo



carnaval carnaval carnaval

poeira

poeira branca como fuba bombó***** cobrindo

crianças cães folhas mangas água e tudo

cheiro

cheiro de bode cheirando de lábios revirados e mijo

[das cabras

cheiro de bagre seco repousando na calma das quinda******
cheiro de catinga em nossos sovacos ardentes
cheiro de sentina que o vento traz das piteiras ao lado

[de cacimba

cheiro de chuva de ontem nas lavras sem ninguém

e cheiro de pólvora dum outro dia de fevereiro ainda

[por chegar



carnaval carnaval carnaval



feiticeiro velho que fala com jacaré
passeando lentamente de chucho no ombro e branco

brando vendendo vendendo carnaval carnaval carnaval



1 dicanza — chocalho.

goma — espécie de tambor.
pufta — cuíca
massembando — dançar a massemba (dança tradicional de Angola).
fuba bombó — farinha de mandioca.
Quinda - cesto







O JOÃO CAMBUTA QUE FORA MILITAR





O joão cambuta que fora militar tinha um apito da tropa

O Nando china que era mulato fez uma gaita de caniço

6 quinda - cesto

O Chico pernambucano que não era brasileiro mas que mancava da perna direita trouxe uma puíta* do avô caçador



O Tumba pastor porque era do sul
marcava ritmo com dois pauzinhos


O Pazito funileiro que vinha de Capolo
só tocava de assobio
mas não estragou a música.



*puita - inztrumento musical





A SOMBRA DA ARVORE VELHA DE MUITOS SOBAS





A sombra da árvore velha de muitos sobas.*
só cresceram muxitos**

O sussurrar encarcoleante dos surucucus d'areia

marcava dédalos efémeros

que os quissondes*** iam devorando

A sombra da árvore velha de muitos sobas só cresceram muxitos



*sobas – chefes tradicionais
**muxitos – arbustos
***quissondes – formigas grandes






BEIJO ATÉ A GARGANTA TUA BOCA PANTANAL





Beijo até à garganta tua boca pantanal

paradeiro obsidiano de sapos miasmas excrementos e

[orquídeas roxas
respiro teu halo mortífero de febres palustres
chupo tua língua dura
tronco de mulemba* carcomida
que sopro de mologe** zangado
fez tombar à água
em noite de trovoada seca
respiro teu halo mortífaero de febres palustres
beijo até à garganta tua boca pantanal
paradeiro obsidiano de sapos miasmas excrementos e
[orquídeas roxas





*mulemba – árvore de fruto comestível
**mologe - feiticeiro

1 comentário:

  1. Poetas lusófonos para ler com a atenção que merecem. Virei aqui outra vez.
    Cuida-te bem, meu Amigo.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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