Até sempre!
Entre o sorriso e
inquietação
vida espelhada
humana condição
deste país
que em ti doeu
germinou
e fez-se voz
fez-se canção.
Das novas ilhas
foste vulcão e
da erupção nasceram
flores:
palavras musicadas
que nos chegaram ao coração.
[a José Mário Branco]
lmc
25 de maio de 1942 - 19 de novembro de 2019
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.» (FMI)
____________________________________________________________________
Consolida, filho, consolida...
[FMI foi um texto com música que José Mário Branco gravou num espectáculo ao vivo em 1982 e que foi publicado na altura em maxi-single. Foi republicado em 1996 em cd, juntamente com o duplo álbum Ser Solid/tário. Já havia transcrições online, mas com muitos erros. Penso que a que fiz, baseada nas que já havia e ouvindo a gravação, deve ser a mais fiável até à data. A pontuação é, obviamente, discutível. Juntei uns links para ilustração das novas gerações.]
Vou... vou vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial: trata-se de um texto que foi escrito assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito actual. Vou vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam já não ser muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer Fundo Monetário Internacional.
Não sei por que é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reunem, com umas pessoas, em torno de uma mesa, para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos... É o internacionalismo monetário!
FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução
FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico pra si
FMI Não há força que retorça o FMI
Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Não ando aqui a brincar! Não há tempo a perder!
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução
FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico hara-kiri
FMI Panegírico, pró lírico daqui
Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada há que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais:
celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau
FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...
Entretém-te, filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca, vem-te-bem, bem te vim, Vim-me na cozinha, vim-me na casa-de-banho, Vim-me no Politeama, vim-me no Águia D'ouro, Vim-me em toda a parte... Vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora, olha a música no coração da Indira Gandi, olha o Moshe Dayan que te traz debaixo de olho... O respeitinho é muito lindo, e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo: saímos à rua de cravo na mão, sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida, filho, consolida: enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela, que o malmequer vai-te tratando do Serviço Nacional de Saúde. Consolida, filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro: ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro!
Estás aí a olhar para mim? Estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transacção e estás a pensar lá com os teus zodíacos: «este tipo está-me a gozar! Este gajo quem é que julga que é?» Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote, hã? Meu Fernão Mendes Pinto de merda! Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor. Pois claro: tu, sozinho, consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem! Pois é: tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te, filho, entretém-te! Deixa-te de políticas, que a tua política é o trabalho! Trabalhinho, porreirinho da Silva! E salve-se quem puder, que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
A-one, a-two, a-one-two-three
FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI...
Camóniú, sanóvabiche!Camóne beibi, a ver se me comes! Camóne Luis Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás: enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares! Zás: enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro Cunhal! Zás: enfio-te a Natália Correia no Sá Carneiro! Zás: enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros! Zás: enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer, e acabamos todos numa sardinhada à Integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok... Estamos numa porreira, meu, um trip fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade... né filho? Pois, irreversível, pois claro, irreversivelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes: agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra! Deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas, pá! «A culpa é dos partidos, pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta, pá!» «Pois, pá, é só paleio, pá, o pessoal não quer é trabalhar, pá! Razão tem o Jaime Neves, pá!» «Olha: deixaste cair as chaves do carro!» «Pois, pá!» «O que é essa orelha de preto que tens aí no porta-chaves?» «Epá, deixa-te disso, não desestabilizes, pá!» «Eh, faz favor: mais uma bica e um pastel de nata.» «Uma porra, pá, um autêntico desastre o 25 de Abril! Esta confusão, pá... a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide, pá, Tarrafais e o carago... mas no fim de contas quem é que não colaborava, hã? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, hã? Quem é que não se calava? Quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, hã? Meia dúzia de líricos, pá! Meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro!... Isto é tudo a mesma carneirada!» Oh sr. guarda venha cá – ah. Venha ver o que isto é – eh. O barulho que vai aqui – ih. O neto a bater na avó – oh. Deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar - ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, hã? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: «não é nada comigo, não é nada comigo», né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada: precisas de paz de consciência. Não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém, e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, hã?
FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI...
Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório - foi isso que te ensinaram, não é verdade? «Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande» - tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém - não é isto verdade? Quer-se dizer: há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular, hã? Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos ou anti-comunistas ou anti-fascistas: estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas é sempre o mexilhão... Eu quero lá saber deste paleio, vou mas é ao futebol, pronto! Viva o Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes! Fora o árbitro! Gatuno! Qual gatuno, qual caralho! Razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs, que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores; entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais; entretém-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho; entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar; entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes. Entretém-te, filho! E vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada! Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Deng Xiao Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter; o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II! Tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de te convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias; vão te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia, e nunca consegue desaguar, de maneira que se possa dizer: «porra! Finalmente o rio desaguou!» Vão te convencer de que a culpa é só tua, e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder - é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer: votas à esquerda moderada nas sindicais; votas no centro moderado nas deputais; e votas na direita moderada nas presidenciais. Que mais querem eles? Que lhes ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, toma: para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás, «e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso», né? Claro! «Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega!» Entretém-te, meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti: se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão... Descansa que eles tratam disso. Se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo... Descansa, não penses em mais nada... que até neste país de pelintras se acha «normal haver mãos desempregadas» e se acha «inevitável haver terras por cultivar»... Descontrai, beibi, camóne, descontrai, afinfa-lhes o Bruce Lee, afinfa-lhes a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas... Piramiza, filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho, e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. «Pois, pá, isto é um país de analfabetos, pá!» Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-chula! Pop-chula pop-chula, ié, ié! Jó-ta-pi-men-ta-forever!
Quanto menos souberes a quantas andas, melhor para ti! Não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia! Não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal! Não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte! Não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir! Cabrões de vindouros, hã! Sempre a merda do futuro? E eu que me quilhe? Pois pá: sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu, hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá: e eu? José Mário Branco. 37 anos. Isto é que é uma porra! Anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo - e depois? É só porrada e mal viver, é? «O menino é mal-criado», «o menino é pequeno-burguês», «o menino pertence a uma classe sem futuro histórico»... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz, porra! Quero ser feliz agora! Que se foda o futuro! Que se foda o progresso! Mais vale só do que mal acompanhado! Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz, porra, deixem-me em paz e sossego! Não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho! Não há paciência, não há paciência! Deixem-me em paz, caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto! Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho! Filhos da puta! Deixem-me só um bocadinho, deixem-me só para sempre! Tratem da vossa vida que eu trato da minha! Pronto, já chega! Sossego, porra! Silêncio, porra! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me morrer descansado! Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado! Eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto! Eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrillo e a Vera Lagoa! Deixem-me só, porra, rua! Larguem-me! Desopila o fígado! Arreda! T’arrenego Satanás! Filhos da puta! Eu quero morrer sozinho, ouviram? Eu quero morrer! Eu quero que se foda o FMI! Eu quero lá saber do FMI! Eu quero que o FMI se foda! Eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto! Bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso, seus cabrões! O FMI não existe! O FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma! O FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio! Rua! Desandem daqui para fora! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa...
Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe... Oh mãe...
Mãe, eu quero ficar sozinho. Mãe, eu não quero pensar mais. Mãe: eu quero morrer, mãe. Eu quero desnascer: ir-me embora, sem sequer ter que me ir embora... Mãe, por favor... Tudo menos a casa em vez de mim; outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo... De quê, mãe? Diz: são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento.
E se inventássemos o mar de volta? E se inventássemos partir, para regressar? Partir e aí, nessa viagem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar... Abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar: terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto. Lembrar, nota a nota, o canto das sereias. Lembrar o «depois do adeus» e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal. Lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição... Partir aqui, com a ciência toda do passado... Partir, aqui, para ficar.
Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes; assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: «Olá, camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer: aqui está a minha arma para vos servir.» Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera, se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de Lavacolhos. Assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
«De quem é o carvalhal?» «É nosso!» - assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, «Grândola Vila Morena».
Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu, pois.
Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.
Ser solidário assim para além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E, improvavelmente, ser feliz
De como aqui chegar não é mister contar
O que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará por certo esta canção
Ser solidário, sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo a redime
Mas sim o amor dos homens que se exprime
De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu vos daria
No ventre das canções sabedoria
Consolida, filho, consolida...
[FMI foi um texto com música que José Mário Branco gravou num espectáculo ao vivo em 1982 e que foi publicado na altura em maxi-single. Foi republicado em 1996 em cd, juntamente com o duplo álbum Ser Solid/tário. Já havia transcrições online, mas com muitos erros. Penso que a que fiz, baseada nas que já havia e ouvindo a gravação, deve ser a mais fiável até à data. A pontuação é, obviamente, discutível. Juntei uns links para ilustração das novas gerações.]
Vou... vou vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial: trata-se de um texto que foi escrito assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito actual. Vou vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam já não ser muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer Fundo Monetário Internacional.
Não sei por que é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reunem, com umas pessoas, em torno de uma mesa, para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos... É o internacionalismo monetário!
FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução
FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico pra si
FMI Não há força que retorça o FMI
Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Não ando aqui a brincar! Não há tempo a perder!
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução
FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico hara-kiri
FMI Panegírico, pró lírico daqui
Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada há que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais:
celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau
FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...
Entretém-te, filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca, vem-te-bem, bem te vim, Vim-me na cozinha, vim-me na casa-de-banho, Vim-me no Politeama, vim-me no Águia D'ouro, Vim-me em toda a parte... Vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora, olha a música no coração da Indira Gandi, olha o Moshe Dayan que te traz debaixo de olho... O respeitinho é muito lindo, e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo: saímos à rua de cravo na mão, sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida, filho, consolida: enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela, que o malmequer vai-te tratando do Serviço Nacional de Saúde. Consolida, filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro: ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro!
Estás aí a olhar para mim? Estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transacção e estás a pensar lá com os teus zodíacos: «este tipo está-me a gozar! Este gajo quem é que julga que é?» Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote, hã? Meu Fernão Mendes Pinto de merda! Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor. Pois claro: tu, sozinho, consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem! Pois é: tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te, filho, entretém-te! Deixa-te de políticas, que a tua política é o trabalho! Trabalhinho, porreirinho da Silva! E salve-se quem puder, que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
A-one, a-two, a-one-two-three
FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI...
Camóniú, sanóvabiche!Camóne beibi, a ver se me comes! Camóne Luis Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás: enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares! Zás: enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro Cunhal! Zás: enfio-te a Natália Correia no Sá Carneiro! Zás: enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros! Zás: enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer, e acabamos todos numa sardinhada à Integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok... Estamos numa porreira, meu, um trip fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade... né filho? Pois, irreversível, pois claro, irreversivelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes: agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra! Deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas, pá! «A culpa é dos partidos, pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta, pá!» «Pois, pá, é só paleio, pá, o pessoal não quer é trabalhar, pá! Razão tem o Jaime Neves, pá!» «Olha: deixaste cair as chaves do carro!» «Pois, pá!» «O que é essa orelha de preto que tens aí no porta-chaves?» «Epá, deixa-te disso, não desestabilizes, pá!» «Eh, faz favor: mais uma bica e um pastel de nata.» «Uma porra, pá, um autêntico desastre o 25 de Abril! Esta confusão, pá... a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide, pá, Tarrafais e o carago... mas no fim de contas quem é que não colaborava, hã? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, hã? Quem é que não se calava? Quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, hã? Meia dúzia de líricos, pá! Meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro!... Isto é tudo a mesma carneirada!» Oh sr. guarda venha cá – ah. Venha ver o que isto é – eh. O barulho que vai aqui – ih. O neto a bater na avó – oh. Deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar - ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, hã? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: «não é nada comigo, não é nada comigo», né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada: precisas de paz de consciência. Não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém, e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, hã?
FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI...
Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório - foi isso que te ensinaram, não é verdade? «Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande» - tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém - não é isto verdade? Quer-se dizer: há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular, hã? Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos ou anti-comunistas ou anti-fascistas: estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas é sempre o mexilhão... Eu quero lá saber deste paleio, vou mas é ao futebol, pronto! Viva o Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes! Fora o árbitro! Gatuno! Qual gatuno, qual caralho! Razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs, que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores; entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais; entretém-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho; entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar; entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes. Entretém-te, filho! E vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada! Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Deng Xiao Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter; o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II! Tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de te convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias; vão te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia, e nunca consegue desaguar, de maneira que se possa dizer: «porra! Finalmente o rio desaguou!» Vão te convencer de que a culpa é só tua, e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder - é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer: votas à esquerda moderada nas sindicais; votas no centro moderado nas deputais; e votas na direita moderada nas presidenciais. Que mais querem eles? Que lhes ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, toma: para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás, «e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso», né? Claro! «Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega!» Entretém-te, meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti: se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão... Descansa que eles tratam disso. Se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo... Descansa, não penses em mais nada... que até neste país de pelintras se acha «normal haver mãos desempregadas» e se acha «inevitável haver terras por cultivar»... Descontrai, beibi, camóne, descontrai, afinfa-lhes o Bruce Lee, afinfa-lhes a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas... Piramiza, filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho, e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. «Pois, pá, isto é um país de analfabetos, pá!» Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-chula! Pop-chula pop-chula, ié, ié! Jó-ta-pi-men-ta-forever!
Quanto menos souberes a quantas andas, melhor para ti! Não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia! Não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal! Não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte! Não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir! Cabrões de vindouros, hã! Sempre a merda do futuro? E eu que me quilhe? Pois pá: sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu, hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá: e eu? José Mário Branco. 37 anos. Isto é que é uma porra! Anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo - e depois? É só porrada e mal viver, é? «O menino é mal-criado», «o menino é pequeno-burguês», «o menino pertence a uma classe sem futuro histórico»... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz, porra! Quero ser feliz agora! Que se foda o futuro! Que se foda o progresso! Mais vale só do que mal acompanhado! Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz, porra, deixem-me em paz e sossego! Não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho! Não há paciência, não há paciência! Deixem-me em paz, caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto! Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho! Filhos da puta! Deixem-me só um bocadinho, deixem-me só para sempre! Tratem da vossa vida que eu trato da minha! Pronto, já chega! Sossego, porra! Silêncio, porra! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me morrer descansado! Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado! Eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto! Eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrillo e a Vera Lagoa! Deixem-me só, porra, rua! Larguem-me! Desopila o fígado! Arreda! T’arrenego Satanás! Filhos da puta! Eu quero morrer sozinho, ouviram? Eu quero morrer! Eu quero que se foda o FMI! Eu quero lá saber do FMI! Eu quero que o FMI se foda! Eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto! Bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso, seus cabrões! O FMI não existe! O FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma! O FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio! Rua! Desandem daqui para fora! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa...
Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe... Oh mãe...
Mãe, eu quero ficar sozinho. Mãe, eu não quero pensar mais. Mãe: eu quero morrer, mãe. Eu quero desnascer: ir-me embora, sem sequer ter que me ir embora... Mãe, por favor... Tudo menos a casa em vez de mim; outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo... De quê, mãe? Diz: são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento.
E se inventássemos o mar de volta? E se inventássemos partir, para regressar? Partir e aí, nessa viagem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar... Abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar: terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto. Lembrar, nota a nota, o canto das sereias. Lembrar o «depois do adeus» e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal. Lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição... Partir aqui, com a ciência toda do passado... Partir, aqui, para ficar.
Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes; assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: «Olá, camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer: aqui está a minha arma para vos servir.» Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera, se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de Lavacolhos. Assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
«De quem é o carvalhal?» «É nosso!» - assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, «Grândola Vila Morena».
Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu, pois.
Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.
Ser solidário assim para além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E, improvavelmente, ser feliz
De como aqui chegar não é mister contar
O que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará por certo esta canção
Ser solidário, sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo a redime
Mas sim o amor dos homens que se exprime
De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu vos daria
No ventre das canções sabedoria
Uma homenagem muito sentida. à qual me junto. E agora, meu Amigo? Só podemos guardá-lo no coração. Assim fica sempre entre nós.
ResponderEliminarUm beijo.