segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Cristina Branco _álbum Idealist & Meu amor Meu amor(Meu limão de amargura) & Porque Me Olhas Assim






letra


Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.

Ary dos Santos



eduardo martinsHá 6 anos

"Ela é perfeita. Voz, afinação, além de possuir uma pronúncia e dicção ímpares, melhores ainda que Ana Moura. Se Deus descobre, vai levá-la para cantar no céu. Chega a nos deixar embriagados. Demais, demais!"





letra

Diz-me agora o teu nome
Se já te dissemos que sim 
Pelo olhar que demora 
Porque me olhas assim 
Porque me rondas assim 
Toda a luz da avenida 
Se desdobra em paixão 
Magias de druída 
P'lo teu toque de mão 
Soam ventos amenos 
P'los mares morenos 
Do meu coração

Espelhando as vitrinas 
Da cidade sem fim 
Tu surgiste divina 
Porque me abeiras assim 
Porque me tocas assim 
E trocámos pendentes 
Velhas palavras tontas 
Com sotaques diferentes 
Nossa prosa está pronta 
Dobrando esquinas e gretas 
P'lo caminho das letras 
Que tudo o resto não conta 

E lá fomos audazes 
Por passeios tardios 
Vadiando o asfalto 
Cruzando outras pontes 
De mares que são rios 
E num bar fora de horas 
Se eu chorar perdoa 
Ó meu bem é que eu canto 
Por dentro sonhando 
Que estou em Lisboa 

Diz-me tu então que sou teu 
Que tu és tudo p'ra mim 
Que me pões no apogeu 
Porque me abraças assim 
Porque me beijas assim 
Por esta noite adiante 
Se tu me pedes enfim 
Num céu de anúncios brilhantes 
Vamos casar em Berlim 
À luz vã dos faróis 
São de seda os lençóis 
Porque me amas assim... 

Por que Me Olhas Assim?

- Fausto Bordalo Dias -

E, para finalizar, um concerto memorável, em Macau, acompanhada por Mário Laginha:



The Script Road 2016 - CRISTINA BRANCO full concert Macau Cultural Center - March 12th One of the most acclaimed voices in Portugal, Cristina Branco (March 12, Macau Cultural Centre) belongs to a generation of musicians that in the mid-1990s have found in fado their own way of expressing themselves (thereby contributing to an astonishing reinvigoration of the traditional song form of Portugal). Like them, Cristina has begun to define her own journey, in which respect for tradition walks hand in hand with a desire for innovation. For the singer, words have always been deserving of careful attention. Therefore, Cristina Branco is a singer of poets, amongst them the greatest in Portugal (Camões, Pessoa, David Mourão-Ferreira, José Afonso …) and abroad (Paul Éluard, Léo Ferré, Alfonsina Storni, Slauerhoff).

sábado, 7 de dezembro de 2019

Eduardo Viveiros de Castro_antropólogo_entrevista


AQUI: O Brasil visto de dentro.

"[...]Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro. A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.[...]"

José Sá Fernandes,_Entrevista




Esta e’ uma interessante entrevista que traça o carácter dum homem e as suas circunstâncias.
O que mais me impressionou nela foi, além da sua integridade moral, a abnegada entrega ‘as suas convicções, defendidas na prática pelo bem comum.
Bem gostaria de AQUI  saber a sua opinião quanto ao projectado aeroporto do Montijo. Um verdadeiro atentado ao equilíbrio do ambiente. Mas não tenho duvidas que será convictamente contra.
Traça os apertos de mão, dos políticos e tecnocratas, que são honrados e os que o não são.
Poderá ser o genuíno sucessor do arq.to Gonçalo Ribeiro Telles, o homem que mais defendeu o Ambiente. A obra que já tem, apesar das rasteiras sofridas, coloca-o nesse patamar. Como poucos. - lmc


“Tenho tido vários apetites para meter ações populares”



"[...]A poluição em Vila Velha de Ródão! Apetecia-me pôr uma ação popular para acabar com aquela porcaria, para se falar do resto do rio. Mas o que posso fazer como vereador? Mostrar agora tudo o que de bom há, e por isso vamos falar muito do Tejo: a nascente, as lezírias… Acredito, se calhar ingenuamente, que se mostrar o bom, é mais fácil não acontecer o mau. Tenho tentado fazer isto na vida, mas também tenho defeitos. E se agora estivesse como advogado gostava de meter uma ação contra o Bolsonaro. É um crime o que está a acontecer na Amazónia.[...]






Foto: Luís Barra
Em 2020, Lisboa será Capital Verde Europeia, uma importante conquista para a cidade e o reconhecimento da evolução feita na área do ambiente, na última década. Trabalho que tem a assinatura de José Sá Fernandes, o advogado irrequieto e polémico que tantas obras embargou pelo País e que, há 12 anos, é vereador do Ambiente da Câmara Municipal de Lisboa. As lutas, paixões, desilusões e conquistas do homem que nunca deixou de ser um ativista

Contei oito cigarros, mas podem ter sido mais os fumados durante as mais de duas horas de conversa, na esplanada do quiosque da Praça do Município, em frente à Câmara Municipal de Lisboa. Daqui até 1 de janeiro, José Sá Fernandes estará a queimar os últimos cartuchos em matéria de vício: prometeu que se Lisboa ganhasse o importante prémio da Capital Verde Europeia deixaria de fumar. Para surpresa e gáudio geral, Lisboa arrebatou mesmo o galardão, e para um homem de fé, as promessas são mesmo para cumprir. Tal como, garante, os acordos estabelecidos e os apertos de mão dados. O anúncio, nesta sexta-feira (29), da programação da Capital Europeia Verde que meterá todo o País a discutir o ambiente deu o mote para uma entrevista, em que passámos em revista os últimos 12 anos de José Sá Fernandes como vereador deste pelouro. Uma missão que sente praticamente cumprida.

Como um menino da Avenida de Roma se transformou num homem defensor do ambiente?

Bom, eu era um menino da Avenida de Roma, mas rebelde! [Risos.] Formei-me em Direito e, quando acabei o curso, estive 10 meses em Macau. Foi o meu primeiro choque com a realidade. Pensava: “Há aqui qualquer coisa que vai correr mal.” Quando voltei, estava já a exercer advocacia, interessei-me muito por Lisboa. Passava a vida a dar grandes voltas pela cidade e vi muitas coisas degradadas ou abandonadas, como o Convento da Graça, as arcadas do Terreiro do Paço, que eram armazéns. Senti que não queria a minha cidade assim e comecei a estudar o tema do património cultural e do ambiente. Tinha saído a Lei de Ação Popular, que permitia que qualquer pessoa pudesse intervir em defesa de interesses difusos, e achei que era um bom mecanismo para fazer qualquer coisa. Nesse âmbito, conheci o Gonçalo Ribeiro Telles [arquiteto paisagista e ecologista].

De que falavam?

Reuníamo-nos, para discutir a cidade de Lisboa, de uma maneira quase secreta, no Estrela da Sé que tem uns gabinetes. Dava um ar…

… de uma certa conspiração antissistema.

Sim! O Gonçalo é um mestre extraordinário… Nós, durante muitos anos, almoçávamos sempre de 15 em 15 dias – só nos últimos dois anos em que ele já não está em forma é que deixámos de o fazer.

Não tinha uma ligação à terra?

A minha primeira mulher tinha uma quinta em Tondela, e eu comecei a tratar dela porque o meu sogro tinha morrido. Ao mesmo tempo, o meu irmão estava a investir numa propriedade de família em Trás-os–Montes e a minha irmã numa do marido em Meda. Começámos os três ao mesmo tempo a ter uma ligação forte à terra; discutíamos o azeite, as vindimas, as batatas, as couves. Eu sempre fui muito curioso em relação às árvores, à botânica – não como o Bagão Félix, de quem eu gosto imenso e que é mesmo um “barra” naquilo, mas gostava muito de aprender.

E o irmão rebelde, o mais novo, era também o mais criativo, como dizem os estudos?

Na altura, era eu claramente o que tinha mais piada! Agora não sei. [Risos.] Mas eu estava sempre a inventar coisas. Cheguei a candidatar-me com duas ideias de negócio, mas deram-me logo “sopa”. Andava sempre a correr o País. Acho que sou de trato fácil, o que ajuda muito a falar e a conhecer pessoas e a dar-me bem com elas. Acho que quando me conhecem gostam de mim, mas também sei que há quem me odeie – normalmente, essas pessoas não me conhecem.

Criar empatia e construir pontes é essencial para se fazer trabalho?

Sim. E tenho sempre algumas máximas que me acompanham. Sou o mais novo de três juristas, cresci com um grande sentido de justiça. E uma pessoa para fazer justiça não pode olhar apenas para uma das partes, tem sempre de olhar para os dois lados de um problema. E no ambiente isso é essencial: não podemos ser completamente contra uma coisa; temos de perceber o que está em causa, e é preciso discernir e ter equilíbrio. Depois comecei a perceber o que resulta e o que não resulta: basta ver uma floresta bem cuidada e outra mal cuidada, uma paisagem protegida e outra destruída com um mastodonte, uma cidade que perde a sua silhueta… comecei a estudar. Às tantas disse: sou advogado, ninguém anda a trabalhar nisto, vou dedicar–me ao tema. Mas se há um interesse difuso, então não devo levar dinheiro. Passei a abrir o meu escritório às sextas-feiras, dia em que recebia pessoas, vindas de norte a sul do País, para tratar de questões ambientais ou do património cultural, e passei a ajudá-las a meter as ações.
Foto: Luís Barra


Então como ganhava a vida se não cobrava dinheiro?


Ganhava à segunda, terça, quarta e quinta! O escritório era pequeno, e eu era um advogado generalista, fazia de tudo. Um dia por semana, dedicava-me a tratar do que gostava realmente. Fiz coisas de Ponte de Lima até ao Algarve. Depois, claro, começou a não chegar a sexta-feira… Percebeu-se que era possível fazer alguma coisa em defesa do património e do ambiente, porque antes havia a sensação de que era impossível, de que não se podia fazer nada contra um despacho da câmara ou uma deliberação. Comecei a ter os primeiros ganhos de causa, com reconhecimento. Sempre que passo numa zona de Ponte de Lima, onde iam fazer uma ponte em cima de uma ponte romana, fico todo contente. Outra grande vitória foi quando consegui parar a autoestrada, que chamavam “panorâmica”, em cima da arriba fóssil da Costa da Caparica – como é possível alguém pensar em construir ali uma coisa dessas!? Com o Terreiro do Paço, foi a mesma coisa. Achava escandaloso que o Estado estivesse a ocupar as arcadas com garagens e armazéns. E queriam construir ali um túnel que eu embarguei e que, antes da decisão do tribunal, inundou. Isso deu-me notoriedade.

Como preparava as ações?

Não era uma coisa “parece-me bem, parece-me mal”. Socorria-me sempre de técnicos bons, estudava a história dos sítios e dos solos. Esta frente ribeirinha, por exemplo, é só lodo, como todos sabemos. Até que há a ação mais mediática do Túnel do Marquês.

Quando hoje anda pelas ruas de Lisboa, como as pessoas interagem consigo? Ainda há muita gente zangada por causa do Túnel do Marquês?

Algumas sim. E há pessoas que tenho conhecido ao longo dos últimos 12 anos que me têm uma aversãozinha por causa do túnel. Depois eu explico e elas dizem: “Eh, pá, então se foi assim, está bem.”

E o que lhes explica?

É muito simples, porque é a verdade. Tinha tido a experiência do túnel do Terreiro do Paço. Quando começaram a anunciar o do Marquês, pedi para ver o processo. Não me deixaram consultá-lo, o que era estranho. Pus uma ação em tribunal para pedir a consulta, e foram obrigados a mostrar-mo. Levei um engenheiro e um arquiteto para verem o processo: constatámos que não havia projeto; havia uma espécie de estudo prévio com umas plantas e mais nada. Não havia projeto de execução: ia-se fazendo e logo se ia decidindo! Mas, mesmo no estudo prévio, o túnel esbarrava no metropolitano. Ponho a ação por causa disso e com o argumento jurídico de que havia uma norma na lei que dizia que era preciso haver estudos de impacto ambiental. No julgamento que durou pela noite adentro, que parecia uma cena do Orson Wells, estava um desses grandes escritórios de advogados com um batalhão de gente a defender a câmara e, do outro lado, estava eu. E quem foi a grande testemunha que eu tive? O construtor que confirmou que não existia projeto e que o túnel esbarrava no metro, mas que isso era uma coisa que eles iriam ver. Os três juízes estavam boquiabertos e não tinham outra hipótese senão parar a obra. Durante o momento em que ela esteve parada, foram estudando e resolvendo estas coisas: a inclinação, a ventilação, a iluminação, tudo o que devia ter sido feito anteriormente. Mas uma coisa eles nunca resolveram: o metro. O LNEC, entretanto, sai com um parecer a dizer que para o túnel passar por ali teria de se reforçar o metro todo e, por isso, é que o túnel é inaugurado até ao Marquês, mas aquela passagem a seguir dura mais um ano.

É uma história que ainda o persegue. Valeu a pena?

Persegue, sim, mas valeu a pena. Aquilo de facto perturbou a vida de muitas pessoas durante um ano; sei que parar uma obra chateia toda a gente. Entretanto, saiu uma sentença do Supremo Tribunal que não analisa os factos, apenas vê se é preciso um estudo de impacto ambiental ou não, porque esse era o argumento jurídico que eu utilizei. Como a lei era dúbia, mandou desembargar a obra. E meteram-se grandes cartazes na rua: este homem é responsável por ter parado isto. Este malandro! Foi uma propaganda como eu nunca vi contra uma pessoa sozinha.

E a obra custou mais 40 por cento.

Isso não é verdade. Há coisas que custaram mais, porque eles não tinham o estudo feito e tiveram de mudar muita coisa para reforçar os túneis do metro. Mas a campanha foi muito intensa e as pessoas interiorizaram esta informação falsa.

Acha que se fosse hoje, com os temas do ambiente na ordem do dia e com as redes sociais, o desfecho teria sido diferente em termos de imagem pública?

Perdi, sim. Mas não sei se teria sido diferente – as redes funcionam com radicalismos… Se calhar era a mesma coisa. E a vida também nos ensina que temos de sofrer com as consequências do que fazemos com consciência, mesmo que essas consequências sejam injustas. O Presidente da Câmara de Paredes de Coura, que é um homem incrível, que faz daquele território milagres, costuma dizer-me: “Ó Zé, a gente tem de ter toucinho.” No fundo, o que ele quer dizer é que temos de ter caráter. Eu acho que tenho toucinho.

E hoje fala com Santana Lopes?

Cumprimento-o. Só há duas pessoas com quem eu não falo.

Quem são?

Aquele homem que me tentou corromper e o advogado que o defendeu, porque disse coisas inacreditáveis [Domingos Névoa, da Bragaparques, e Artur Marques]. E há um juiz com quem eu não falo, que anda aí e que também já foi acusado de umas coisas…

Rui Rangel?

Não aperto a mão a essa gente. Não faço fretes para parecer bem.

Espantaram-no algumas críticas que recebeu na altura, quando denunciou a tentativa de corrupção, através do seu irmão Ricardo, para viabilizar o negócio do Parque Mayer?

Bom, aquilo foi claríssimo, ficou provado em tribunal. O homem foi condenado e só não foi preso porque o crime prescreveu.

O seu irmão gravou tudo, foi um episódio de filme.

Sim, demos a cara por aquilo. Além disso, este é um País onde há complacência para com a corrupção, mas o meu irmão fez um trabalho extraordinário de firmeza e de caráter – ficou bem claro o quão podre isto andava.

Quando metia as ações populares, assinava sempre como “um homem de Lisboa”. Ainda é isso que o move hoje na política?

Sim, completamente. Eu não queria entrar na política; tinha uma ação cívica completamente descomprometida. Mas, nessa altura, Lisboa tinha vários projetos terríveis: construções no Vale da Montanha, no Casal Ventoso, em linhas de água… E havia caminhos extraordinários onde se devia investir, porque valorizariam a cidade, e onde nada era feito. Estava tudo num estado caótico e com problemas financeiros graves. E o Gonçalo, que já estava a desligar-se do Partido Monárquico, disse-me: “Ó Zé, tem de meter-se nisto. Temos de fazer aqui um movimento.” Eu disse que nem pensar, que não tínhamos estrutura, nada. Mas é nessa altura, em 2005, que me aparecem o Francisco Louçã, o Luís Fazenda e o Miguel Portas, no meu gabinete, a dizerem que gostavam muito que eu fosse candidato, uma coisa independente.

Qual foi a sua reação inicial?

Fiquei um bocado pasmo, porque não tinha nenhuma ligação ao Bloco de Esquerda (BE). Disse que ia pensar e, logo nesse dia, fui falar com o Gonçalo, ao Restaurante Paris. Telefonei para o meu irmão e para o António Barreto, falei com os três. “Tem de ir. Isto está o caos e é preciso meter o pé dentro da câmara”, disse-me logo o Gonçalo. “Mas, de certeza? Isto é pelo BE”, contrapunha eu. “Isso não interessa nada. O que interessa é lá entrar e termos o nosso programa”, dizia-me o Gonçalo. O meu irmão também me deu força, disse-me que eu devia deixar de ser Dom Quixote a lutar contra moinhos de vento e ir tentar mudar as coisas por dentro. O António Barreto, a mesma coisa, avisando-me: “Cuidado Zé, porque vai ficar com a cruz de o identificarem com o BE pelo menos durante 10 anos.” Fizemos um acordo escrito com o BE e lá fui. Nessa altura, já tinha posto a ação do Túnel do Marquês, mas não era ainda conhecida a decisão.

Como foram os primeiros anos?

Quando cheguei à câmara comecei a ver os processos
e a descobrir uma série de coisas inacreditáveis. O executivo não aguentou dois anos e houve eleições intercalares. A nossa associação, Lisboa é Muita Gente, foi com o BE. Mas disse sempre que, se houvesse hipótese de fazermos um acordo com o PS, o devíamos fazer. Eu sou eleito outra vez e liga-me António Costa.

Que já nessa altura mostrou ser um negociador hábil.

Sim. Fomos todos – eu, o tipo do BE, o António Costa, o Manuel Salgado e o Marcos Perestrelo – tentar um entendimento escrito: reunimos em casa do meu irmão e chegámos a um acordo, que foi sempre o mesmo e que assentava na estrutura ecológica da cidade: o que se pode e o que não se pode fazer, e como se liga a cidade toda em verde. A base era esta, e depois acrescentaram–se as questões da água, da energia, etc.

Ou seja, o plano que tem vindo a executar já estava delineado nessa altura?

Sim, com evoluções, mas a base era essa. Trago-lhe aqui os acordos assinados naquela época e pode meter um certo em tudo: está tudo feito! É muito gratificante. Quem me dera que o Gonçalo pudesse ir passear comigo agora e ver esta coisa… Mas isto fica e é um legado também dele.

Como foi a sua relação com o Bloco de Esquerda?

A pessoa vai aprendendo e apercebendo-se de como a política é traiçoeira. Percebeu-se logo que o BE não queria que se assinasse o acordo com o PS. É curioso… Antes disso, tinha apertado a mão, várias vezes, a Maria José Nogueira Pinto, do CDS, e a Rúben de Carvalho, do PCP, porque havia coisas que saltavam tanto à vista que concordávamos todos. E com eles bastou apertarmos a mão.

Infelizmente, já nenhum dos dois está cá.

Sim, eram duas figuras a quem apertávamos a mão e que cumpriam, porque era um caminho que tinha de se cortar. Eu avisava, ligava ao Carmona Rodrigues e dizia: “Olha que isso é um erro crasso.” Podem dizer de mim o que quiserem, mas não podem acusar-me de falta de transparência nem de deslealdade.
Como aconteceu a rutura com o Bloco de Esquerda?

Vou contar, porque acho que é muito sintomático da política e de como se fazem as traições e se inventam argumentos. Todas as semanas, reuníamos quatro pessoas do BE e quatro da minha confiança, que não estavam ligadas ao partido, para discutir como se aprovavam as propostas que iam à reunião de câmara. E pensou-se em entregar a medalha de mérito a Durão Barroso que, entretanto, tinha sido nomeado comissário europeu. Nesse encontro semanal, os representantes do BE disseram “sim, senhor, que nunca se pode estar contra uma medalha”. E eu apontei “votar a favor”.

Muito estranho, conhecendo o Bloco de Esquerda…

Pois! Quando cheguei à reunião de câmara, estava a achar aquilo suspeito e decidi não votar. Era uma reunião sem público, e eu saí da sala. Não votei…

Teve faro político?

Foi puro instinto. Mas ninguém sabia que eu não tinha votado! Quando chego lá a cima, já estava em todos os emails da concelhia: “Como é possível o nosso vereador ter votado a favor do Durão Barroso?”

Isso é uma bela história.

Isto é uma vergonha! Reuni a minha associação e disse-lhes: “Estes tipos querem fazer-me a folha.” Mas combinámos que resistiria, apesar da canalhice, e que nos iríamos preparar para a próxima. Fizemos um acordo, assinado por António Costa, e se ele não falhar no acordo, seguimos com o que era preciso fazer. Claro que o BE queria era acabar com o acordo e desfez aquilo.

Porquê, consegue agora perceber à distância?

Era uma questão nacional: o facto de eles estarem aliados ao PS em Lisboa trazia-lhes problemas e dava argumentos aos adversários na guerrinha com o PCP. Mas não se deve fazer isto a ninguém. Preparar armadilhas para não cumprir um acordo. Foi uma grande lição: percebi que há pessoas que apertam a mão sem querer e que há pessoas que apertam a mão com convicção.

Já António Costa é um homem conciliador mas de palavra?

O aperto de mão de António Costa é um bom aperto de mão: ele cumpriu com tudo o que tinha combinado comigo e com a minha associação. E é um homem muito sensível. Tenho reparado numa campanha que há agora para se passar a ideia de que ele não tem coração, e isso é mentira.

Vamos falar da Lisboa Capital Verde Europeia. Como se lembraram de concorrer a estes prémios, se nenhuma cidade do Sul da Europa alguma vez os tinha ganho?

Começámos a perceber que este trabalho feito era uma coisa única: unir o verde na cidade gastando pouco dinheiro. Conseguimos levar gente para os jardins: a ideia dos quiosques, que é minha, tinha como objetivo levar as pessoas para os jardins e fazer com que a cidade fosse apropriada pelas pessoas. Além disso, fizemos redução do consumo da água, utilização de energias renováveis com os painéis fotovoltaicos, introduzimos as bicicletas, tínhamos coisas para mostrar. Candidatámo-nos uma vez em 2015 e perdemos para Oslo, na final. Mas aprendemos como fazer. Apresentámos uma candidatura baseada na evolução, que foi enorme, e foi assim que ganhámos.

Quais foram os argumentos que mais pesaram?

A estrutura ecológica foi essencial: sendo uma cidade pequena e consolidada, para o ano conseguimos fazer mais 350 hectares novos face ao que existia há 12 anos. Isto impressiona e tem consequências noutras coisas: mais área verde, mais árvores, melhor combate às ondas de calor, mais zonas silenciosas, menos zonas poluídas, mais zonas de infiltração, melhor captura de águas. E temos mais áreas verdes e gastamos muito menos água do que gastávamos há 10 anos. E, um ponto fundamental, temos mais coesão social, porque a cidade está ligada, e os parques e jardins são zonas de toda a gente: não há sítio com mais liberdade.

Onde estava quando soube que ganhámos o prémio? E a quem ligou logo: ao seu mestre Gonçalo?

Eu estava lá! Infelizmente, o Gonçalo já não estava bem, mas teria ficado muito feliz por saber desta conquista da cidade para a qual dei um contributo de que me orgulho. Do que acordei detalhadamente em 2013, para o ano está tudo feito, à exceção de uma coisa ou outra de pormenor. E isso enche-me de orgulho, claro.

Como é a sua relação com Manuel Salgado, vereador do Urbanismo?

Eu e o Manuel Salgado tínhamos e temos muitas divergências na maneira de olhar para a cidade. Mas aí está a habilidade de António Costa. O que ele fazia? Ia passear connosco pela cidade, à meia-noite, à uma da manhã, durante horas. Íamos andando e vendo as coisas, e ele dizia: “Ó Manel, ele é capaz de ter razão nisto! Ó Zé, não sejas assim, olha que aqui isto fica bem!” Ele tem jeito para isto, não há dúvida alguma. E a aprovação do Plano Diretor Municipal foi essencial para abrir caminho para tudo o que foi feito depois. No meu pelouro ou não, há coisas visíveis e que ficaram feitas ou que ficam para o ano: Cais do Sodré, Campo das Cebolas, Praça de Espanha e ligação ao Corredor de Monsanto, Praça Humberto Delgado com a de Sete Rios; para o ano conseguimos ir de Belém até à Ameixoeira sempre em verde.

E há um número impressionante: 76% da população vive a 300 metros de uma zona verde.

Penso que até já estamos mais à frente. Tenho mais dois orgulhos: as bicicletas na cidade e os mercados renovados, onde tive sorte de ter bons parceiros: o da Ribeira e o de Campo de Ourique.

Mas as trotinetes estacionadas por todo o lado não perturbam a paisagem?

A mim não me perturbam nada. Acho que este boom foi uma coisa inesperada; agora só temos de arrumá-las. Se me perguntar se tudo correu bem… Nestes 12 anos, claro que nem tudo correu bem. Há coisas com que eu não concordo, evidentemente. Mas nestes apertos de mão que se dão – e eu dei dois a António Costa e outro a Medina –, há uma lealdade que se deve ter.

O que não correu bem?

Não posso dizer. Para o ano vou falar muito mais do que falei até agora, porque até aqui tive de manter alguma reserva, naturalmente. Vou dar-lhe um exemplo.

O projeto para o Rato?

Sou contra e votei contra! O edifício da Almirante Reis, sou contra. Há casos que eu não calo, e há outros que condescendo com contrapartidas. Condescendi por exemplo na Matinha, acho que a edificação aprovada é excessiva mas já vinha de antes. Então temos de ter um grande jardim na frente ribeirinha que está quase pronto e é espetacular.

No que diverge mais com Manuel Salgado?

É neste tipo de coisas. Eu acho que há sítios onde não se pode construir e ele tenta sempre arranjar um argumento de que é possível, porque depois não sei quê…

E ele tem consciência ambiental?

É muito melhor vereador do que os outros que estiveram cá. Estive em reuniões com vereadores, não vou dizer quem, que nem sabiam olhar para uma planta! O Manuel Salgado, como arquiteto, trouxe essa mais-valia para a câmara, além de outra: um belíssimo conhecimento da cidade e dos processos. Mas não é um ambientalista. Acho que podíamos ter feito muito mais construção sustentável do que a realizada até agora, mas ainda estamos a tempo de fazer isso. Acredito que a lealdade é importante e, apesar das divergências que são públicas e afirmadas mutuamente, acho que a última discussão sobre Manuel Salgado ser presidente da Sociedade de Reabilitação Urbana não faz sentido nenhum: é uma questão de coerência política, ele já era e continua a ser, deixa só de ser vereador da cidade.

Não devíamos ter feito mais para a evitar a gentrificação? Para que serve uma cidade cheia de espaços verdes se não tem habitantes lisboetas a viver no centro da cidade?

Lisboa está com mais habitantes do que quando eu cheguei. Mas a questão da habitação é um problema gravíssimo que tem de ser atacado e já o devia ter sido há mais tempo. Sempre defendi a renda condicionada e a renda acessível, isso está também nos nossos acordos. Percebia-se que depois da crise vinha aí um boom, e demorámos tempo a reagir. O plano que a câmara tem em mãos é bom, mas vai demorar uns anos. Precisamos de dez mil casas…

O que tem previsto de programação a partir de janeiro para marcar a Lisboa Capital Verde Europeia?

A programação vai assentar em cinco pilares. O primeiro é a informação: dizer às pessoas como estamos numa série de parâmetros essenciais – água, ruído, zonas verdes, poluição do ar – e ensinar-lhes como podem poupar água, energia, etc. Espero poder ter a maior coleção de livros de botânica alguma vez feita por portugueses. Vamos ter grandes exposições, algumas imersivas, em Lisboa sobre vários temas: reservas e parques naturais de todo o País, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, mas também sobre água, no Pavilhão do Conhecimento, jardins históricos, energia, oceanos, resíduos… E envolvemos todas as instituições nisto: Oceanário, CCB, Gulbenkian, Culturgest. O segundo é a participação: das empresas, escolas e universidades. Vamos lançar uma série de concursos para envolver as pessoas. Por isso, aumentámos o orçamento participativo de 2,5 milhões para 5 milhões de euros. O terceiro e o quarto eixos são a valorização e o debate: vamos mostrar as coisas boas feitas em todo o País, em várias áreas, através de dezenas de conferências e conversas. A gestão das mais-valias é um bom debate para o Interior: mostrar as histórias boas que temos e como podemos fazer ainda melhor. E depois, para terminar, o compromisso: vamos assumir metas para 2030, para a câmara, para as empresas e para as pessoas.

Quando foi anunciado o prémio fez uma promessa. Pode contar?

Entrei na catedral da cidade e prometi que, se ganhasse, ia deixar de fumar a partir de dia 1 de janeiro.

É um homem de fé?

Sou, tenho essa coisa. Sou católico e, normalmente, não gosto de prometer nada, mas aquela saiu-me e agora é cumprir. Aqui na câmara ninguém acredita, todos se metem comigo. Mas eu sei o que prometi. É só no início do ano, quando começar a Capital Verde. [Risos.] Já viu o que eu fumo?

Vão apanhá-lo de mau humor, está visto!

Não, sou muito bem-disposto. Posso mesmo dizer que sou a pessoa mais bem-disposta do executivo da câmara – eles vão ficar furiosos, mas não faz mal. [Risos.]

E depois de Lisboa Verde? Está disponível para continuar na câmara nas próximas autárquicas ou quer fazer outras coisas?

Acho que depois de a estrutura ecológica estar feita, de o processo de água reciclada estar a andar, para o ano vamos ter a primeira central fotovoltaica para abastecer autocarros elétricos, terei a sensação de missão cumprida, mas também tenho uma grande necessidade de intervenção. Acho que os rios portugueses são lindos e há muito a fazer. A começar pelo Tejo.

E não gostava de fazer a mesma coisa numa outra grande câmara, como, por exemplo, no Porto?

Não, o meu pai era do Porto e eu tenho família lá, mas sou um homem de Lisboa e só consigo mesmo ser autarca aqui. Nem me vejo com cargos governativos. Sou uma pessoa de ação, e formar uma equipa para tratar de uma coisa ou outra entusiasma-me. Para já, quero que o ano corra bem e que haja uma discussão séria sobre o ambiente. Há muita desinformação, muito radicalismo, muito pouco equilíbrio na análise das questões.

E Fernando Medina seria um bom substituto para Mário Centeno, como recentemente se falou?

Acho que foi alguém que inventou isso, nunca falei sobre esse assunto com o Medina. Creio que o Centeno tem características que o Medina não tem. Mas um presidente de câmara tem um cargo muito exigente e uma agenda infernal, maior do que um ministro. É chamado para tudo.

Alguma vez se imaginaria presidente de câmara?

Nem pensar! O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, no estado em que está a política, tem de estar ligado a um partido grande. E eu não me vejo num partido grande: essas coisas internas dos partidos, eu não saberia geri-las. Não percebo como dentro dos próprios partidos dizem tão mal uns dos outros. Em todos eles tenho assistido a ódios e a deslealdades. Não saberia fazer isso, não sei lidar com as tricas e os grupinhos. Para mim, são todos do mesmo partido e todos têm de trabalhar para o bem comum, mas nem sempre é assim. Também sei de irmãos que se odeiam, e eu e os meus irmãos damo-nos muito bem, não concebo outra forma.

Estes anos na política não domesticaram o homem da luta? Via-se a meter mais ações populares?

Ao longo destes 12 anos, tive muita vontade de meter uma ação popular sobre isto ou sobre aquilo! Mas não podia. O Tejo é um rio fantástico, cheio de sítios lindos, e qual é a única coisa que se ouve na última década acerca do rio?

A poluição?

A poluição em Vila Velha de Ródão! Apetecia-me pôr uma ação popular para acabar com aquela porcaria, para se falar do resto do rio. Mas o que posso fazer como vereador? Mostrar agora tudo o que de bom há, e por isso vamos falar muito do Tejo: a nascente, as lezírias… Acredito, se calhar ingenuamente, que se mostrar o bom, é mais fácil não acontecer o mau. Tenho tentado fazer isto na vida, mas também tenho defeitos. E se agora estivesse como advogado gostava de meter uma ação contra o Bolsonaro. É um crime o que está a acontecer na Amazónia.

Um ecocídio.

Sim, exatamente. Tenho tido vários “apetites” para meter ações populares. E há coisas que não me saem da cabeça. Como acabámos com as linhas do Tua, por exemplo, é uma delas. Um crime!

Ainda sente essa inquietude de fazer coisas?

Completamente. Houve muita coisa que se conseguiu fazer, outras nem por isso. Mas até posso dizer que houve uma ou outra que se passou aqui na Câmara Municipal de Lisboa que eu gostava de ter posto uma ação popular, mas não posso!

E não pode dizer que coisas foram essas?

Pois não… [Risos.]

Então, e os defeitos?

Sou muito ansioso. Muito. Estou a aprender a domar a minha ansiedade, mas é muito difícil…

As suas caminhadas na Natureza não o ajudam? Vai a Fátima a pé muitas vezes.

Sim, quase todos os anos. Andar a pé na Natureza faz muito bem. Sempre andei muito. Gosto de desfrutar das paisagens, tentar identificar as flores, perceber porque aquela rocha é assim… Andar a pé em peregrinação é diferente, há um foco no destino, e não penso em mais nada: há um vazio do pensamento durante quatro a cinco dias.

Que balanço faz destes últimos 12 anos?

Aconteceu muita coisa, é uma vida. Tive dois grandes amigos que morreram; a um já plantei uma árvore que visito sempre, a outro ainda não plantei, mas vou plantar. A minha filha cresceu imenso, tive duas netas… Casei-me, ganhei dois enteados que adoro. E cruzei-me com pessoas que foram muito importantes neste percurso: Pedro Bidarra, que inventou o slogan “O Zé Faz Falta”, Duarte Cordeiro – senti muito quando ele saiu do executivo camarário para ir para o Governo –, Ângelo Mesquita, um dos funcionários mais antigos da CML e que me acompanha desde a primeira hora nesta aventura, Susana Carvalho, que desenhou esta campanha para a Capital Verde por amor à causa ecológica… E ainda tenho amigos no BE: tinham, é um facto, aquele culto da tolerância com o outro que é extraordinário.

Como ficou a sua relação com Francisco Louçã? Também se cumprimentam?

Cumprimentamo-nos. E um dia destes convidei-o para plantar uma árvore: apesar de tudo, fez parte deste percurso. Gostava muito de ter todos os partidos a plantar árvores em Lisboa."
in: Revista "Visao" 

terça-feira, 19 de novembro de 2019

José Mário Branco

DAQUI: e DALI  e... DAQUELOUTRO:

Até sempre!

Entre o sorriso e  
inquietação
vida espelhada 
humana condição
deste país
que em ti doeu
germinou
e fez-se voz
fez-se canção.

Das novas ilhas

foste vulcão e
da erupção nasceram
flores:
palavras musicadas 
que nos chegaram ao coração.

[a José Mário Branco]
lmc



25 de maio de 1942 - 19 de novembro de 2019

«Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.» (FMI)
____________________________________________________________________
Consolida, filho, consolida...

[FMI foi um texto com música que José Mário Branco gravou num espectáculo ao vivo em 1982 e que foi publicado na altura em maxi-single. Foi republicado em 1996 em cd, juntamente com o duplo álbum Ser Solid/tário. Já havia transcrições online, mas com muitos erros. Penso que a que fiz, baseada nas que já havia e ouvindo a gravação, deve ser a mais fiável até à data. A pontuação é, obviamente, discutível. Juntei uns links para ilustração das novas gerações.]


Vou... vou vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial: trata-se de um texto que foi escrito assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não seja muito actual. Vou vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam já não ser muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer Fundo Monetário Internacional.
Não sei por que é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reunem, com umas pessoas, em torno de uma mesa, para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos... É o internacionalismo monetário!

FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico pra si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer:
Não ando aqui a brincar! Não há tempo a perder!
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico hara-kiri
FMI Panegírico, pró lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada há que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais:
celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...

Entretém-te, filho, entretém-te, não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca, vem-te-bem, bem te vim, Vim-me na cozinha, vim-me na casa-de-banho, Vim-me no Politeama, vim-me no Águia D'ouro, Vim-me em toda a parte... Vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão, olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora, olha a música no coração da Indira Gandi, olha o Moshe Dayan que te traz debaixo de olho... O respeitinho é muito lindo, e nós somos um povo de respeito, né filho? Nós somos um povo de respeitinho muito lindo: saímos à rua de cravo na mão, sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho? Consolida, filho, consolida: enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela, que o malmequer vai-te tratando do Serviço Nacional de Saúde. Consolida, filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo, o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos, como o Astro, não é filho? O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é? Pois claro: ganhar forças, ganhar forças para consolidar, para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho? Pois claro!
Estás aí a olhar para mim? Estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto, pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transacção e estás a pensar lá com os teus zodíacos: «este tipo está-me a gozar! Este gajo quem é que julga que é?» Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste? A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote, hã? Meu Fernão Mendes Pinto de merda! Onde está o teu Extremo Oriente, filho? A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor. Pois claro: tu, sozinho, consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem! Pois é: tu sabes o que é gozar a vida! Entretém-te, filho, entretém-te! Deixa-te de políticas, que a tua política é o trabalho! Trabalhinho, porreirinho da Silva! E salve-se quem puder, que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
A-one, a-two, a-one-two-three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI...

Camóniú, sanóvabiche!Camóne beibi, a ver se me comes! Camóne Luis Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas! E zás: enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares! Zás: enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro Cunhal! Zás: enfio-te a Natália Correia no Sá Carneiro! Zás: enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros! Zás: enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer, e acabamos todos numa sardinhada à Integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto meio Steve McQueen, ok boss, tudo ok... Estamos numa porreira, meu, um trip fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade... né filho? Pois, irreversível, pois claro, irreversivelzinho, pluralismo a dar com um pau, nada será como dantes: agora todos se chateiam de outra maneira, né filho? Ora que porra! Deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é? Preocupações, crises políticas, pá! «A culpa é dos partidos, pá! Esta merda dos partidos é que divide a malta, pá!» «Pois, pá, é só paleio, pá, o pessoal não quer é trabalhar, pá! Razão tem o Jaime Neves, pá!» «Olha: deixaste cair as chaves do carro!» «Pois, pá!» «O que é essa orelha de preto que tens aí no porta-chaves?» «Epá, deixa-te disso, não desestabilizes, pá!» «Eh, faz favor: mais uma bica e um pastel de nata.» «Uma porra, pá, um autêntico desastre o 25 de Abril! Esta confusão, pá... a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa... Tá bem, essa merda da pide, pá, Tarrafais e o carago... mas no fim de contas quem é que não colaborava, hã? Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, hã? Quem é que não se calava? Quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, hã? Meia dúzia de líricos, pá! Meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro!... Isto é tudo a mesma carneirada!» Oh sr. guarda venha cá – ah. Venha ver o que isto é – eh. O barulho que vai aqui – ih. O neto a bater na avó – oh. Deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando, que ao menos agora pode-se falar - ou já não se pode? Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, hã? Estás desiludido com as promessas de Abril, né? As conquistas de Abril! Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho? E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia: «não é nada comigo, não é nada comigo», né? E os da frente que se lixem... E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada: precisas de paz de consciência. Não andas aqui a brincar, né filho? Precisas de ter razão, precisas de atirar as culpas para cima de alguém, e atiras as culpas para os da frente, para os do 25 de Abril, para os do 28 de Setembro, para os do 11 de Março, para os do 25 de Novembro, para os do... que dia é hoje, hã?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho? Todos temos culpas no cartório - foi isso que te ensinaram, não é verdade? «Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande» - tenho dito. A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém - não é isto verdade? Quer-se dizer: há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular, hã? Somos todos muita bons no fundo, né? Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né? Somos todos ou anti-comunistas ou anti-fascistas: estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá, as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa, cá o pintas é sempre o mexilhão... Eu quero lá saber deste paleio, vou mas é ao futebol, pronto! Viva o Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes! Fora o árbitro! Gatuno! Qual gatuno, qual caralho! Razão tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho? Entretém-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs, que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores; entretém-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais; entretém-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho; entretém-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar; entretém-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes. Entretém-te, filho! E vai para a cama descansado, que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada! Milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos, com computadores, redes de polícia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá! Podes estar descansado que o Deng Xiao Ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter; o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II! Tudo corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas. A ver quem vai ser capaz de te convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias; vão te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Moel que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia, e nunca consegue desaguar, de maneira que se possa dizer: «porra! Finalmente o rio desaguou!» Vão te convencer de que a culpa é só tua, e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho? Cada um que se vá safando como puder - é mesmo assim, não é? Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer: votas à esquerda moderada nas sindicais; votas no centro moderado nas deputais; e votas na direita moderada nas presidenciais. Que mais querem eles? Que lhes ofereças a Europa no natal?! Era o que faltava! É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, toma: para safado, safado e meio, né filho? Nem para a frente nem para trás, «e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso», né? Claro! «Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega!» Entretém-te, meu anjinho, entretém-te, que eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti, decidem tudo por ti: se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia, se hás-de plantar tomate para o Canadá ou eucaliptos para o Japão... Descansa que eles tratam disso. Se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo... Descansa, não penses em mais nada... que até neste país de pelintras se acha «normal haver mãos desempregadas» e se acha «inevitável haver terras por cultivar»... Descontrai, beibi, camóne, descontrai, afinfa-lhes o Bruce Lee, afinfa-lhes a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas... Piramiza, filho, piramiza, antes que os chatos fujam todos para o Egipto, que assim é que tu te fazes um homenzinho, e até já pagas multa se não fores ao recenseamento. «Pois, pá, isto é um país de analfabetos, pá!» Dá-lhe no Travolta, dá-lhe no disco-sound, dá-lhe no pop-chula! Pop-chula pop-chula, ié, ié! Jó-ta-pi-men-ta-forever!
Quanto menos souberes a quantas andas, melhor para ti! Não te chega para o bife? Antes no talho do que na farmácia! Não te chega para a farmácia? Antes na farmácia do que no tribunal! Não te chega para o tribunal? Antes a multa do que a morte! Não te chega para o cangalheiro? Antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir! Cabrões de vindouros, hã! Sempre a merda do futuro? E eu que me quilhe? Pois pá: sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu, hã? Que é que eu ando aqui a fazer? Digam lá: e eu? José Mário Branco. 37 anos. Isto é que é uma porra! Anda aqui um gajo cheio de boas intenções, a pregar aos peixinhos, a arriscar o pêlo - e depois? É só porrada e mal viver, é? «O menino é mal-criado», «o menino é pequeno-burguês», «o menino pertence a uma classe sem futuro histórico»... Eu sou parvo ou quê? Quero ser feliz, porra! Quero ser feliz agora! Que se foda o futuro! Que se foda o progresso! Mais vale só do que mal acompanhado! Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos! Deixem-me em paz, porra, deixem-me em paz e sossego! Não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho! Não há paciência, não há paciência! Deixem-me em paz, caralho, saiam daqui, deixem-me sozinho, só um minuto! Vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o raio que vos parta! Deixem-me sozinho! Filhos da puta! Deixem-me só um bocadinho, deixem-me só para sempre! Tratem da vossa vida que eu trato da minha! Pronto, já chega! Sossego, porra! Silêncio, porra! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me só! Deixem-me morrer descansado! Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado! Eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto! Eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrillo e a Vera Lagoa! Deixem-me só, porra, rua! Larguem-me! Desopila o fígado! Arreda! T’arrenego Satanás! Filhos da puta! Eu quero morrer sozinho, ouviram? Eu quero morrer! Eu quero que se foda o FMI! Eu quero lá saber do FMI! Eu quero que o FMI se foda! Eu quero lá saber que o FMI me foda a mim, eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto! Bardamerda o FMI, o FMI é só um pretexto vosso, seus cabrões! O FMI não existe! O FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma! O FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio! Rua! Desandem daqui para fora! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa! A culpa é vossa...
Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe! Oh mãe... Oh mãe...

Mãe, eu quero ficar sozinho. Mãe, eu não quero pensar mais. Mãe: eu quero morrer, mãe. Eu quero desnascer: ir-me embora, sem sequer ter que me ir embora... Mãe, por favor... Tudo menos a casa em vez de mim; outro maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo... De quê, mãe? Diz: são coisas que se me perguntem? Não pode haver razão para tanto sofrimento.

E se inventássemos o mar de volta? E se inventássemos partir, para regressar? Partir e aí, nessa viagem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste. Partida para ganhar, partida de acordar... Abrir os olhos, numa ânsia colectiva de tudo fecundar: terra, mar, mãe... Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto. Lembrar, nota a nota, o canto das sereias. Lembrar o «depois do adeus» e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal. Lembrar cada lágrima, cada abraço, cada morte, cada traição... Partir aqui, com a ciência toda do passado... Partir, aqui, para ficar.
Assim mesmo, como entrevi um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o azul dos operários da Lisnave a desfilar, gritando ódio apenas ao vazio, exército de amor e capacetes; assim mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou: «Olá, camaradas, somos trabalhadores, eles não conseguiram fazer-nos esquecer: aqui está a minha arma para vos servir.» Assim mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera, se levantam antiquíssimos rumores, as festas e os suores, os bombos de Lavacolhos. Assim mesmo senti um dia, a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila, o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
«De quem é o carvalhal?» «É nosso!» - assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei. Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, «Grândola Vila Morena».
Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu, pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.

Ser solidário assim para além da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E, improvavelmente, ser feliz

De como aqui chegar não é mister contar
O que já sabe quem souber
O estrume em que germina a ilusão
Fecundará por certo esta canção

Ser solidário, sim, por sobre a morte
Que depois dela só o tempo é forte
E a morte nunca o tempo a redime
Mas sim o amor dos homens que se exprime

De como aqui chegar não vale a pena
Já que a moral da história é tão pequena
Que nunca por vingança eu vos daria
No ventre das canções sabedoria

Renaud - Mistral gagnant

letra

À m'asseoir sur un banc cinq minutes avec toi
Et regarder les gens tant qu'il en a
Te parler du bon temps qu'est mort ou qui reviendra
En serrant dans ma main tes petits doigts
Puis donner à bouffer à des pigeons idiots
Leur filer des coups d'pieds pour de faux
Et entendre ton rire qui lézarde les murs
Qui sait surtout guérir mes blessures
Te raconter un peu comment j'étais minot
Les bonbecs fabuleux
Qu'on piquait chez l' marchand
Car-en-sac et Minto, caramel à un franc
Et les Mistrals gagnants
À remarcher sous la pluie cinq minutes avec toi
Et regarder la vie tant qu'y en a
Te raconter la Terre en te bouffant des yeux
Te parler de ta mère un petit peu
Et sauter dans les flaques pour la faire râler
Bousiller nos godasses et s'marrer
Et entendre ton rire comme on entend la mer
S'arrêter, repartir en arrière
Te raconter surtout les Carambars d'antan et les Coco Boer
Et les vrais roudoudous qui nous coupaient les lèvres
Et nous niquaient les dents
Et les Mistrals gagnants
À m'asseoir sur un banc cinq minutes avec toi
Regarder le soleil qui s'en va
Te parler du bon temps qui est mort et je m'en fous
Te dire que les méchants c'est pas nous
Que si moi je suis barge, ce n'est que de tes yeux
Car ils ont l'avantage d'être deux
Et entendre ton rire s'envoler aussi haut
Que s'envolent les cris des oiseaux
Te raconter enfin qu'il faut aimer la vie
Et l'aimer même si
Le temps est assassin
Et emporte avec lui les rires des enfants
Et les mistrals gagnants
Et les mistrals gagnants.

Sente-se em um banco cinco minutos com você
À m'asseoir sur un banc cinq minutes avec toi

E observe as pessoas enquanto ele tiver
Et regarder les gens tant qu'il en a

Fale sobre o bom momento que está morto ou voltando
Te parler du bon temps qu'est mort ou qui reviendra

Segurando meus dedinhos na mão
En serrant dans ma main tes petits doigts

Então dê comida aos pombos idiotas
Puis donner à bouffer à des pigeons idiots

Chute-os por falso
Leur filer des coups d'pieds pour de faux

E ouça sua risada estalando nas paredes
Et entendre ton rire qui lézarde les murs

Quem sabe curar minhas feridas
Qui sait surtout guérir mes blessures

Conte um pouco sobre como eu era mineiro
Te raconter un peu comment j'étais minot

Os fabulosos bonbecs
Les bonbecs fabuleux

Que costuramos o comerciante
Qu'on piquait chez l' marchand

Car-in-Bag e Minto, Caramel em um franco
Car-en-sac et Minto, caramel à un franc

E os Mistrals vencedores
Et les Mistrals gagnants

Andar na chuva por cinco minutos com você
À remarcher sous la pluie cinq minutes avec toi

E assista a vida enquanto houver
Et regarder la vie tant qu'y en a

Te digo a Terra soprando seus olhos
Te raconter la Terre en te bouffant des yeux

Fale um pouco sobre sua mãe
Te parler de ta mère un petit peu

E pular em poças para fazê-la gemer
Et sauter dans les flaques pour la faire râler

Para estragar nossos sapatos e começar
Bousiller nos godasses et s'marrer

E ouça sua risada enquanto ouvimos o mar
Et entendre ton rire comme on entend la mer

Pare, volte
S'arrêter, repartir en arrière

Diga-lhe especialmente os Carambars do passado e o Coco Boer
Te raconter surtout les Carambars d'antan et les Coco Boer

E o verdadeiro barulho que corta nossos lábios
Et les vrais roudoudous qui nous coupaient les lèvres

E nós estávamos pregando nossos dentes
Et nous niquaient les dents

E os Mistrals vencedores
Et les Mistrals gagnants

Sente-se em um banco cinco minutos com você
À m'asseoir sur un banc cinq minutes avec toi

Veja o sol ir embora
Regarder le soleil qui s'en va

Falar sobre o bom momento morto e eu não ligo
Te parler du bon temps qui est mort et je m'en fous

Diga que os bandidos não somos nós
Te dire que les méchants c'est pas nous

Que se eu sou uma barcaça, é apenas com seus olhos
Que si moi je suis barge, ce n'est que de tes yeux

Porque eles têm a vantagem de serem dois
Car ils ont l'avantage d'être deux

E ouvir sua risada voar tão alto
Et entendre ton rire s'envoler aussi haut

O que os pássaros estão gritando
Que s'envolent les cris des oiseaux

Digo-lhe finalmente que devemos amar a vida
Te raconter enfin qu'il faut aimer la vie

E amá-lo, mesmo que
Et l'aimer même si

O tempo é assassino
Le temps est assassin

E leve com ele o riso das crianças
Et emporte avec lui les rires des enfants

E os mistrais vencedores
Et les mistrals gagnants

E os mistrais vencedores
Et les mistrals gagnants

Fonte: LyricFind
Compositores: Renaud Sechan
Letras de Mistral gagnant © Mino Music

sábado, 16 de novembro de 2019

Isabel Allende_Entrevista_Livro "Longa Pétala de Mar"

Isabel Allende: "A raiva acumulada no Chile explodiu agora e foi uma surpresa para o mundo"

in: Jornal "Dario de Noticias" 
João Céu e Silva 16 Novembro 2019 - 00:28

Em 1939, 2 mil espanhóis fugiram de Franco para o Chile num navio requisitado pelo poeta Pablo Neruda. A escritora Isabel Allende refaz a história e conta algumas das situações vividas pelos refugiados. E explica a crise atual do Chile.
Há vários anos que Isabel Allende não vem a Portugal, mas os leitores que a descobriram no seu primeiro romance, A Casa dos Espíritos, são aos milhares - o mesmo se passou em todo o mundo a partir desse ano de 1982 - e nunca a esqueceram. Após uma carreira literária que resultou em mais de 70 milhões de exemplares traduzidos em 42 países, a escritora está a lançar Longa Pétala de Mar e falou com o DN sobre o romance que, a exemplo dos dois anteriores, trata da dramática questão dos imigrantes e dos refugiados que fogem dos seus países devido a guerras que matam homens e crianças, a violações e a abusos de mulheres e meninas - através de um facto real: a história de dois mil espanhóis que estavam no lado derrotado da Guerra Civil de Espanha e foram levados num navio para o Chile em 1939.

O título do romance é um verso de Pablo Neruda, o responsável pela contratação do navio Winnipeg, e o poeta chileno também aparece enquanto personagem do livro. Nada que não tenha irritado as feministas chilenas, pois as características pessoais do "machista" Neruda desagradaram de imediato. Isabel Allende explica porque manteve a presença de um dos mais importantes poetas do seu país natal, bem como outras razões para ter escrito um romance sobre uma realidade que também vive desde que se tornou imigrante por razões de exílio familiar, estatuto que até hoje vive por residir nos EUA.

Este foi mais um romance começado num dia 8 de janeiro, data que se tornou um ritual para a escritora dar início aos seus livros: "Tornou-se uma questão de disciplina. Se não organizar a minha vida para ter tempo, paz e solidão para escrever, e não marcar um dia para começar, adiarei sucessivamente a escrita do romance."

Quanto a continuar a escrever em espanhol, Isabel Allende garante que assim é: "Só escrevo romances nesta língua. Até poderei escrever um discurso ou um ensaio em inglês, mas no que respeita à ficção é apenas em espanhol. Creio que a língua é como o sangue que corre em nós e todas as coisas importantes na vida acontecem-me em espanhol: sonho, rezo, cozinho e faço amor em espanhol. É tudo sempre em espanhol."

Nota-se que a escritora está feliz e que ri em vários momentos da entrevista, mesmo que ao comentar situações dramáticas dos imigrantes, por exemplo, acabe por chorar. A parte da felicidade explica facilmente: "Casei há três meses." Está tudo dito.Este romance é o mais recente passo de uma longa caminhada desde A Casa dos Espíritos. Tem sido um bom percurso?
Sim, posso dizer que tem sido muito bom. Escrevi 24 livros e sinto que contei muitas histórias que criaram uma grande ligação com os meus leitores, e de uma maneira que nunca esperei que acontecesse. Nem suspeitaria que tal pudesse vir a acontecer.

Este romance trata principalmente de refugiados e imigrantes. Era um tema que estava no seu plano?
Não estava, apesar de este tema dos refugiados estar no ar atualmente e ser um problema global. De qualquer modo, o meu interesse nesta questão não é de agora, já que os meus dois romances anteriores eram em função dos desalojados e dos imigrantes, dos que pedem asilo ou são refugiados.

Este é um tema próximo para uma mulher que já foi obrigada a mudar de país mais do que uma vez. Vê o mundo de uma forma mais clara?
Talvez tenha uma visão mais global do mundo porque viajo muito. Pessoalmente, sempre fui uma estrangeira: nasci no Peru, vivi no Chile, fui refugiada política após o golpe de Pinochet na Venezuela e agora sou imigrante nos Estados Unidos. Portanto, tenho sempre o sentimento de quase não pertencer a um lugar, estou sempre a recear que a qualquer momento a situação se altere e de ter de mudar de novo. No caso da tragédia dos refugiados, relaciono-me sempre a um nível emocional porque sou uma imigrante muito privilegiada: tenho documentos, vivo do meu trabalho, tenho uma família, uma fundação... A minha fundação trabalha com imigrantes que estão numa situação desesperada, pessoas que vêm da Nicarágua, de El Salvador ou da Guatemala, que fogem de gangues, de cartéis de droga, dos governos, de polícias e militares corruptos; pessoas que perderam a vida onde moravam e que vêm para os EUA e são paradas na fronteira em condições desumanas e colocam-lhes os filhos em jaulas. Isto é uma vergonha, mas está a acontecer e eu não sou capaz de aceitar esta situação.

A sua fundação não tem que ver com a situação das mulheres e o seu empoderamento?
Sim, esse era o primeiro grande objetivo da fundação, no entanto, como 80% dos refugiados no mundo são mulheres e crianças, é preciso agir. Antes eram os homens que imigravam para achar trabalho, agora são famílias inteiras, além de que muitas mulheres foram violadas e exploradas. Muitas vezes até são mortas ou desaparecem, e ninguém quer saber o que lhes aconteceu. Não são importantes.

Sente-se como imigrante também?
Eu sou uma imigrante, mas posso estar nos EUA sem problemas porque vivo lá há mais de 30 anos e tornei-me cidadã americana ao casar com um americano. O que não me impede de ver o que sofrem, de viverem com medo de ser deportados dos Estados Unidos.

Esta era Trump é também um perigo para os próprios americanos?
Estou certa de que este é um tempo terrível, mas irá passar porque já vivi o suficiente - tenho 77 anos - para saber que as situações aparecem e desaparecem. A mudança é da natureza da vida e do mundo! Tivemos 17 anos de ditadura no Chile, onde tudo era controlado pelos militares e parecia não haver esperança, mas tudo sempre terá um fim. Penso que esta era Trump é terrível para os EUA, deixará cicatrizes profundas na sociedade dividindo-a, criando ódios, racismo e misoginia, mas irá passar.


Isabel Allende.© Lori Bara

Os tempos no Chile também estão perigosos. Esperava esta turbulência no seu país?
Não. O Chile aparecia como o país mais estável da América Latina e era o paraíso deste continente a nível político, económico e de estabilidade. No entanto, essas estatísticas não mostram a ausência da distribuição da riqueza. Tem havido realmente mais criação de riqueza e desenvolvimento, mas apenas para algumas pessoas. Mais de 40% da população não pode pagar os serviços de água, eletricidade, saúde, educação e transportes, vive de crédito. Se for a um supermercado no Chile comprar comida para as refeições do dia, os estabelecimentos oferecem o poder pagar em três prestações com juros. O que se passa é que a maioria da população não está representada politicamente e ainda vive sob uma Constituição não democrática imposta por Pinochet em 1998. Esta raiva acumulada ao longo dos anos explodiu agora e foi uma surpresa para os políticos chilenos e para o mundo porque ninguém esperava a expressão dessa raiva.


"Não tenho um plano e não sei o que irei escrever no próximo ano. Começo a sentir nascer qualquer coisa na minha barriga e não no cérebro e essa sensação é que me traz a inspiração"

Uma crise que afeta a maior parte da América Latina, pois a Bolívia, a Venezuela e o Brasil também estão em ebulição.
Creio que tem que ver com o sistema económico que vigora no continente. Existia a ideia de que um sistema económico liberal criaria prosperidade e desenvolveria a iniciativa empresarial, que a concentração da riqueza não era um problema porque de alguma forma seria distribuída pela população - só que isso não aconteceu. Tal como não aconteceu nos EUA, onde 400 pessoas dominam a maioria da riqueza americana, fazendo que a classe média [a trabalhadora] não melhore as suas condições de vida.

Os seus três últimos romances têm que ver com situações de refugiados. Faz parte de um plano, ou simplesmente aconteceu?
Foi por acaso. Não tenho um plano e não sei o que irei escrever no próximo ano. Começo a sentir nascer qualquer coisa na minha barriga e não no cérebro e essa sensação é que me traz a inspiração. Habitualmente, tem que ver com qualquer coisa que está a acontecer no mundo, que não precisa de ser nesse momento, mas que sinto estar madura o suficiente para escrever sobre ela.

Os protagonistas Roser e Victor têm uma história tão complexa que daria para um segundo ou mais romances. Vai ficar por este?
O Victor foi inspirado por um amigo meu, Victor Pey, que me contou a história dos passageiros do Winnipeg porque foi um deles. Chegou ao Chile em 1939, viveu ali muitos anos e, quando houve o golpe militar em 1973, teve de voltar a exilar-se na Venezuela. Foi lá que o conheci, há 40 anos, e tenho trazido a sua história dentro de mim durante todo este tempo. Agora escrevi-a, depois de o questionar sobre muitos detalhes que nunca apareceram em livros de história, como os dos campos de concentração, das prisões, os exílios, do navio, e ele ajudou-me a criar o romance. Infelizmente, morreu seis dias antes de terminar o manuscrito. Ele tinha 103 anos e estava muito lúcido, mas com a sua morte acho que não serei capaz de voltar a escrever sobre ele.

Este romance é mais ficção ou realidade?
Há muita ficção, mas não tanto assim, porque os acontecimentos históricos são verdadeiros e os protagonistas são baseados em pessoas de verdade. Roser existiu mesmo, foi pianista e reitora de uma escola de música.

Isabel Allende com a capa do livro da edição espanhola.

Começa com uma personagem masculina, mas a maioria das importantes irão ser mulheres...
No entanto, há um casal que tem a particularidade de ver o mundo a partir de diferentes perspetivas e com uma história de amor muito interessante: começa com um casamento por conveniência, cresce numa amizade durante muitos anos e um dia descobrem, porque um deles pode morrer, que estão perdidamente apaixonados. Portanto, é o contrário das histórias de amor, onde primeiro apaixonam-se perdidamente, depois são amigos e no fim vivem um casamento de conveniência.

Este romance inspirará mulheres a lutar por uma vida própria e pelo que têm direito?
Não podemos generalizar porque depende das pessoas, também não pretendo passar uma mensagem ou querer mudar certas mulheres por colocar certas ideias nos livros - apenas conto histórias. O que me interessa são homens e mulheres que se confrontam com grandes obstáculos nas suas vidas e conseguem ultrapassá-los sem perder a compaixão e a capacidade para serem alegres e amar. Não preciso de as inventar porque quando olho à minha volta muitas das mulheres com quem trabalho na fundação são pessoas assim. Algumas ultrapassaram verdadeiras tragédias, foram violadas ou raptadas, perderam os filhos, e mesmo assim continuaram a viver e continuam a ser capazes de cantar e dançar. Isso é fantástico.


"Quando García Márquez crescia não podia ler os autores latino americanos porque eles não eram vendidos no seu pais"

Uma das personagens principais é o poeta Pablo Neruda. Não se preocupou com a reação bastante crítica dos movimentos feministas chilenos?
Sem a sua ideia e trabalho, a viagem do Winnipeg nunca teria acontecido, nem estas duas mil pessoas teriam chegado ao Chile, Penso que Pablo Neruda deve ser olhado de forma separada entre o seu comportamento em vida com as mulheres e o seu trabalho enquanto criador. Se não o fizermos, então teríamos de julgar o trabalho de todos os artistas, cientistas, filósofos, etc., e separar as pessoas do que criaram não funciona, ou teríamos de eliminar metade da cultura mundial.

Mas as feministas não pensam assim e querem justiça seja em que época for.
É verdade e compreendo esse desejo de as feministas mais novas quererem fazer uma revisão da história do ponto de vista feminista. Isso faz parte do processo, mas sei que estes julgamentos irão longe e voltarão atrás de novo até se encontrar um ponto de equilíbrio. Haverá uma altura em que ainda julgaremos Neruda porque violou uma mulher e pelas questões com a filha, mas não podemos esquecer quão grande poeta ele era nem a sua poesia.

Pertence à primeira geração de escritores latino-americanos que foram influenciados por outros escritores latino-americanos e não por estrangeiros. Qual foi a influência?
É verdade que quando García Márquez crescia não podia ler os autores latino-americanos porque eles não eram vendidos no seu pais. No Chile era difícil ler autores do México ou da Argentina, como Borges. Tudo isso mudou quando uma editora de Barcelona começou a publicar escritores latino-americanos e exportava livros para a América Latina, criando o boom da nossa literatura e mostrando ao mundo que esse movimento era um coro com muitas vozes.

Quando publicou A Casa dos Espíritos havia muitas mulheres a escrever na América Latina?
Sim. Mas a sua escrita não era respeitada nem era considerada como a dos homens. Na verdade, elas sempre escreveram, mas as suas vozes foram silenciadas, tanto que quando publiquei esse primeiro livro, e como foi um sucesso na Europa, as pessoas queria ler também livros de outras mulheres. Então, começaram a dizer que eu não pertencia ao boom, que este era só de homens, que eu era pós-boom. Desde então, muitas outras mulheres foram publicadas e também com sucesso, afinal, as mulheres leem mais ficção do que os homens e queriam ler livros escritos por mulheres. Principalmente porque mostravam o mundo sob uma perspetiva feminina e não, como estamos acostumados, ver o mundo sob o olhar masculino.

É a primeira vez que fala da Guerra Civil Espanhola...
... Sim, porque a história o exigia e eu tinha de explicar por que razões as minhas personagens tinham abandonado o seu país. O meu objetivo não é retratar a Guerra Civil, mas o que aconteceu com os refugiados do Winnipeg no Chile, só que era impossível não referir o conflito para o conseguir. E não escrevi antes porque não sou espanhola e há muitos deles a escrever sobre este tema. Atualmente, ainda saem dezenas de investigações todos os anos sobre a Guerra Civil, o que mostra que continua a haver muitos leitores interessados no tema. Muitos destes escritores têm pais ou avós que estiveram na guerra, o que a torna muito presente, portanto não vejo motivo para interferir num assunto que eles conhecem muito melhor.

Era fundamental entrevistar sobreviventes dessa viagem?

Completamente. Já escrevi vários romances históricos e alguns são tão no passado que é difícil ou impossível encontrar um testemunho pessoal, antes é preciso consultar cartas ou diários, porque não ouvimos a voz real dessas pessoas. Neste caso, alguns dos passageiros ainda estão vivos, como algumas crianças que viajaram e que ainda se lembram do que viveram.

Esses testemunhos reais não complicaram a escrita do livro?
Não, pelo contrário, ficou mais fácil porque nos dão o sentimento do que aconteceu e não existe uma distância como a dos livros de história, além de que é sempre uma voz masculina que conta a história e são sempre os vencedores a relatá-la. Onde estão os derrotados, as mulheres, as crianças e as vítimas? São essas que me interessam mais.
Longa Pétala de Mar

Isabel Allende
Porto Editora
391 páginas