quarta-feira, 29 de outubro de 2014

ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA - CANTAR DE EMIGRAÇÃO






emigração

Rio de fogo estendido
Em rasgado voo planado
Pássaro branco perdido
Num horizonte amado.

Jovem ainda em viagem
Com destino incerto e sombrio
Rasgo de espaço sem paragem
Dum porto inseguro sem brio.

Mar a tocar o céu
Em noite escura de breu.

Oh! Jovem sem pais
Avós e outros mais
Partiste só com as mágoas
Num caminho sem margens
Um destino no olhar
Perdido no verbo amar.


Oh! Jovem oráculo da verdade
Tanta saudade
Hás-de deixar
Presa à terra
E ao cheiro
Deste padecer sem luar.

Partes para terra fria
De gelo nos sentimentos
Emoções estranguladas
Nas tuas próprias razões
Já não há estrelas douradas
A guiar-te o percurso de anões
Dum horizonte esquecido
Na memória de menino ferido.

Lembras-te quando o ocaso
Aquecia o futuro do teu passo?


Eras criança com destino
Eras alegria todo o dia
Eras a mão guiada pelo chão
Eras tudo o que ainda não foste.
Ficavas preso ao deslumbre da noite
Sem medo do amanhã ainda cedo
Foste projecto e ambição
Foste o sonho grande num pequeno coração
Que batia sorrindo no carinho e paixão

Tanta emoção…

Hoje perdido olhas p’ra trás
E não vês o caminho de quem o faz
- Quem te levou ao momento
deste tamanho sofrimento?

(dia em que o T.C. chumbou a convergência das pensões)

Luís M. Castanheira_19.dez.2013

Banda do Casaco - Natação Obrigatória

Banda do Casaco - No Jardim da Celeste (1980, album completo)

Manuel Moua Guedes_Foram cardos Foram prosas

BANDA DO CASACO - MORGADINHA DOS CANIBAIS

Arte&oficiO 02

Anos 70' _Talvez a Maior Banda de Rock Portuguesa_


Arte & Ofício - Arquivo RTP 70's

Talvez a maior Banda Rock Portuguesa de sempre...
















Cante Alentejano - Hino ao Alentejo - Alentejo Alentejo.

Cante Alentejano_Taberna em Cuba - Baixo Alentejo

CANTE ALENTEJANO: PARA PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE !!!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

sem título

Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade
Mas em mim não sei o que há.

(sem data) Fernando Pessoa

Ep. #6: Alentejo | The McNamara Surf Trip

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

sem título

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim,.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este lugar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer (até ver)*
O que nunca poderei ser.

*Deixem-me crer, até ver (primeira versão)

8/7/1931, Ricardo Reis (Fernando Pessoa) 



Já não há baleias no mar do Japão


Projecto Kaya - Fangolê




Andrea


Neste bairro que é Lisboa
Bairro alto, estendo o meu não á solidão
Sem lei
Sou boémia na cidade
Só sei
Que hoje a noite acaba tarde

Sem ter rumo ou direcção
Sigo a voz desta cidade
O meu fado é caminhar
É cantar na confusão

Liliana


Muxima
Muxima de Angola
Muxima
Muxima de Angola
É p’ra ti que danço
É p’ra ti que canto
Até ao amanhecer

Meu coração está no semba
Da tua canção
O meu fado é não chorar
É sorrir em união



Muxima L


Sou boémia na cidade A
Muxima de Angola L
Hoje a noite acaba tarde A
(Sem lei)é p’ra ti que canto L
É p’ra ti que danço, até ao amanhecer L
O meu fado é caminhar A
O meu fado é não chorar L
é cantar em união L A

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

David Mourão Ferreira_Obra Poética









É como se tivesses mãos ou garras
                              I


É como se tivesses mãos ou garras
milhões de dedos braços infinitos
É como se tivesses também asas
libertas do minério dos sentidos
É como se nos píncaros pairasses
quando nas nossas veias é que vives
É como se te abrisses - ó terraço
rodeado de abutres e raízes -
sobre o perene pânico dos astros
sobre a constante insónia dos abismos
E é como se te abrisses e fechasses
sobre a antepalavra do Espírito
É como se morresses quando nasces
É como se nascesses quando expiras

                               II

Ó claridade Ó vaga Ó luz Ó vento
que no sangue desvendas labirintos
Ó varanda no mar sempre Setembro
Ó dourada manhã sempre Domingo
Ó sereia nas dunas irrompendo
com as dunas e o mar se confundindo
Ó corpo de desperta adolescente
já no centro de incógnitos caminhos
que por fora te aceitas e por dentro
pões em dúvida o sol do teu fascínio
Ó dúvida que avanças mas por entre
volutas de pavor que vais cingindo
Ó altas labaredas Ó incêndio
Ó Musa a renascer das próprias cinzas

                              III

Só tu a cada instante nos declaras
que renegas a voz de quem divide
Que a única verdade é haver almas
terrível impostura haver países
Que tanto tens das aves o desgarre
como o expectante frémito do tigre
tanto o céu indiviso que há nas águas
quanto o múltiplo fogo que há no trigo
Que és igual e diversa em toda a parte
Que és do próprio Universo o que o sublima
Que nasces que te apagas que renasces
em procura da límpida medida
Que reges o mais puro e o mais alto
do que Deus concedeu às nossas vidas



David Mourão Ferreira
Ode à Música_Obra Poética
1948-1988

Editorial Presença



Casa
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.



David Mourão Ferreira
Infinito Pessoal
(1959-1962)
Obra Poética
1948-1988

Editorial Presença

Vinicius de Morais_(soneto)


De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Morais

Cecília Meireles_Despedida

Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo 
que está onde as outras coisas nunca estão, 
deixo o mar bravo e o céu tranquilo: 
quero solidão. 

Meu caminho é sem marcos nem paisagens. 
E como o conheces? - me perguntarão. 
- Por não ter palavras, por não ter imagens. 
Nenhum inimigo e nenhum irmão. 

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada. 
Viajo sozinha com o meu coração. 
Não ando perdida, mas desencontrada. 
Levo o meu rumo na minha mão. 

A memória voou da minha fronte. 
Voou meu amor, minha imaginação... 
Talvez eu morra antes do horizonte. 
Memória, amor e o resto onde estarão? 

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. 
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! 
Estandarte triste de uma estranha guerra...) 

Quero solidão.

(Cecília Meireles)

The Sound of Silence_Simon & Garfunkel


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Noturno

Miguel Araújo - Os Maridos Das Outras



Os Maridos Das Outras
Miguel Araújo


Toda a gente sabe que os homens são brutos
Que deixam camas por fazer
E coisas por dizer.
São muito pouco astutos, muito pouco astutos.
Toda a gente sabe que os homens são brutos.
Toda a gente sabe que os homens são feios
Deixam conversas por acabar
E roupa por apanhar.
E vêm com rodeios, vêm com rodeios.
Toda a gente sabe que os homens são feios.
Mas os maridos das outras não
Porque os maridos das outras são
O arquétipo da perfeição
O pináculo da criação.
Dóceis criaturas, de outra espécie qualquer
Que servem para fazer felizes as amigas da mulher.
E tudo os que os homens não...
Tudo o que os homens não...
Tudo o que os homens não...
Os maridos das outras são
Os maridos das outras são.
Toda a gente sabe que os homens são lixo
Gostam de música que ninguém gosta
Nunca deixam a mesa posta.
Abaixo de bicho, abaixo de bicho.
Toda a gente sabe que os homens são lixo.
Toda a gente sabe que os homens são animais
Que cheiram muito a vinho
E nunca sabem o caminho.
Na na na na na na, na na na na na.
Toda a gente sabe que os homens são animais.
Mas os maridos das outras não
Porque os maridos das outras são
O arquétipo da perfeição
O pináculo da criação.
Amáveis criaturas, de outra espécie qualquer
Que servem para fazer felizes as amigas da mulher.
E tudo o que os homens não...
Tudo o que os homens não...
Tudo o que os homens não...
Os maridos das outras são
Os maridos das outras são
Os maridos das outras são
Os maridos das outras são...

U2_Song for Someone_the Graham Norton Show


Cecília Meireles_A arte de ser feliz


A arte de ser feliz


Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Cecília Meireles

(sem título)

Pessoa, um homem infeliz, grandioso, até no sonho de ser tantos, e que nem dele conseguiu ser:



Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

(18/3/1935)_Fernando Pessoa


Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita,
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

(11/5/1928)_Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)





segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O meu olhar ...


O meu olhar ...

O meu olhar é nítido como um girassol...

Tenho o costume de andar pelas estradas,
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez en quando, olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes tinha visto.
Eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial,
Que tem uma criança se,
ao nascer reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento 
para a eterna novidade do mundo!


Alberto Caeeiro


destino


O destino plantou-me aqui
e arrancou-me daqui.
E nunca mais as raízes me seguraram
bem em nenhuma terra.

Ter um destino
é não caber no berço onde o corpo nasceu,
e transpor as fronteiras uma a uma
e morrer sem nenhuma.

Miguel Torga



domingo, 19 de outubro de 2014

Pai_Graça Pires

22.10.13

Pai

Georges de La Tour


À memória de meu pai, no centenário do seu nascimento

Hoje pensei na solidão dos pássaros
quando as searas se incendeiam. 
E pensei em ti, pai, que partiste tão cedo
 como se tivesses vindo do lado 
mais desolado das sombras. 
O que sei eu das uvas entre os teus dentes 
no tempo das vindimas? 
Que pássaro de cinza, diz, 
te sobrevoou o verde do olhar? 
Se prolongasse o poema 
dir-te-ia como os meus olhos te lembram. 
Mas não posso. Vou devolver ao mar 
as conchas negras da minha colecção.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

A tremenda voz de um país calado_Graça Pires

4.1.14

A tremenda voz de um país calado

Magno Torres

Ouves? Não é um tumulto. É a tremenda voz de um país calado.
Não, não é um choro.São inúteis as lágrimas nos tempos da revolta.
Também não é uma reza. Há muito que os deuses não passam por aqui.
Podiam ser canções para enganar a mágoa,mas quem quer cantar agora?
Ouves? É o silêncio feroz dos que resistem.
Ignoremos, então, a exacta trama que nos deforma o pranto.
Cortemos o arame farpado que enlouquece as aves e os homens.
Quebremos os vidros que roubam a entrada livre do ar na planície do peito.
Passo a passo, a alvorada será a revelação do alento 
que, desesperadamente, imploramos. 

Graça Pires, 2014

sábado, 18 de outubro de 2014

Camané_sei de um rio



Sei de um rio…
Sei de um rio
Em que as únicas estrelas
Nele, sempre debruçadas
São as luzes da cidade
Sei de um rio…
Sei de um rio
Rio onde a própria mentira
Tem o sabor da verdade
Sei de um rio
Meu amor, dá-me os teus lábios!
Dá-me os lábios desse rio
Que nasceu na minha sede!
Mas o sonho continua…
E a minha boca (até quando?)
Ao separar-se da tua
Vai repetindo e lembrando
"- Sei de um rio…
Sei de um rio…"
Sei de um rio…
Ai!
Até quando?

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

um pedido

uM Pedido...



Sussurra-me
Entra em sintonia
Dança delicadamente em meus passos

Eleva-me
faz-me flutuar
permite-me levitar num ser em suspensão

Ensina-me
com toda a dedicação
Que as mais belas palavras são trazidas com o tempo

Traz-me
E envolve-me
Num mundo de harmonia em que tudo se torna perfeito
Em cada olhar
A cada palavra
Em cada suspiro
A cada momento...

Torna a simplicidade em eternidade
E amor em plenitude! 

Colibri
in: *Jardim de Palavras*,  9 de Setembro de 2009


Permite-me...sentir-te

Permite-me.. sentir-te!...

Estou isolada
numa ilha distante
naufrago em lágrimas
por um rumo perdido

Tento levar a força comigo
mas fujo do amor
refugio-me na solidão
perco a vontade de falar, rir, ou dançar..

Para onde foste alegria?
Para onde me levas destino?
O que esperas de mim vida?

Rastejo contra a tentação de correr
Quero e preciso de acreditar
que existe um lugar para mim!
Lugar onde seja possível voar

Vento, carrega-me no teu pairar
Sol, ilumina-me com o teu calor
Água, leva-me para onde devo de estar
Terra suporta o meu caminhar
Vida...
ensina-me a embarcar!

colibri 

in: *Jardim de Palavras*, 9 de Fevereiro de 2009



Velha Chica - Waldemar Bastos ft Dulce Pontes




Velha Chica


Antigamente a velha Chica
Formerly the old Chica
vendia cola e gengibre
selling cola and ginger
e lá pela tarde ela lavava a roupa 
and there in the evening she did the laundry
do patrão importante;
important to the boss;
e nós os miúdos lá da escola
us and the kids there from school
perguntávamos à vóvó Chica
we asked the grandma Chica
qual era a razão daquela pobreza,
what the reason was that poverty,
daquele nosso sofrimento.
that our suffering.
Xé menino, não fala política,
Xé boy, do not talk politics
não fala política, não fala política.
do not talk politics, not political speech.

Mas a velha Chica embrulhada nos pensamentos,
But the old Chica wrapped in thoughts,
ela sabia, mas não dizia a razão daquele sofrimento.
she knew, but he said the reason for this suffering.
Xé menino, não fala política,
Xé boy, do not talk politics
não fala política, não fala política.
do not talk politics, not political speech.

E o tempo passou e a velha Chica, só mais velha ficou.
And time passed and the old Chica, just got older.
Ela somente fez uma kubata com tecto de zinco, com tecto de zinco...!
She just made
Xé menino, não fala política, não fala política.
Xé boy, do not talk politics, not political speech.

Mas quem vê agora 
But who now sees
o rosto daquela senhora, daquela senhora,
the face of that lady, that lady,
só vê as rugas do sofrimento, do sofrimento, do sofrimento!
only see the wrinkles of suffering, the suffering, the suffering!
Xé menino, não fala política,
Xé boy, do not talk politics
não fala política, não fala política.
do not talk politics, not political speech.
E ela agora só diz:
And now she just says:
“- Xé menino, quando eu morrer, quero ver Angola viver em paz!
- X is a boy, when I die, I want to see Angola live in peace!
Xé menino, quando morrer, quero ver Angola e o Mundo em paz!” 
X is a boy, when I die, I want to see peace in Angola and the World! "


Romaria



Romaria

É de sonho e de pó
O destino de um só
Feito eu perdido em pensamento
Sobre meu cavalo
É de laço e de nó
De jibeira ou jiló
Dessa vida
Cumprida à sol
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
O meu pai foi peão
Minha mãe solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
Em busca de aventuras
Descasei, e joguei
Investi, desisti
Se há sorte, eu não sei, nuca vi
Sou caipira Pirapora nossa
Senhora de aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Me disseram porém
Que eu vivesse aqui
Pra pedir em
Romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Sou caipira Pirapora nossa
Senhora de aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida

Dulce Pontes & E. Morricone _ La Luz Prodigiosa _



La Luz Prodigiosa

Nana, ninõ, nana
Del caballo grande
Que no quiso el agua.
El agua era negra
Dentro de las ramas.
Cuando llega el puente
Se detiene e canta.
Quien dirá, mi niño,
Lo que tiene el agua con su larga cola
Por su verde sala?

Duérmete, clavel,
Que el caballo no quiere beber.
Duérmete, rosal,
Que el caballo se pone a llorar.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Ana Moura - Desfado




Desfado
Ana Moura

Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém, mas não ter sentido algum
Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem e que aqui esteve presente
Ai que saudade
Que eu tenho de ter saudade
Saudades de ter alguém
Que aqui está e não existe
Sentir-me triste
Só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem
Só por eu andar tão triste
Ai se eu pudesse não cantar "ai se eu pudesse"
E lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse no silêncio que fizesse
Uma voz que fosse minha cantar alguém cá dentro
Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza que nada mais certo existe
Além da grande certeza de não estar certa de nada




Ana Moura _ A Fadista_*2012 FNAC Chiado*




A Fadista
Ana Moura
Vestido negro cingido
Cabelo negro comprido
E negro xaile bordado
Subindo à noite a Avenida
Quem passa julga-a perdida
Mulher de vício e pecado
E vai sendo confundida
Insultada e perseguida
P'lo convite costumado
Entra no café cantante
Seguida em tom provocante
P'los que querem comprá-la
Uma guitarra a trinar
Uma sombra devagar
Avança para o meio da sala
Ela começa a cantar
E os que a queriam comprar
Sentam-se à mesa a olhá-la
Canto antigo e tão profundo
Que vindo do fim do mundo
É prece, pranto ou pregão
E todos os que a ouviam
À luz das velas pareciam
Devotos em oração
E os que há pouco a ofendiam
De olhos fechado ouviam
Como a pedir-lhe perdão
Vestido negro cingido
Cabelo negro comprido
E negro xaile traçado
Cantando pra aquela mesa
Ela dá-lhes a certeza
De já lhes ter perdoado
E em frente dela na mesa
Como em prece a uma deusa
Em silêncio ouve-se o fado
compositor: Ana Moura (Fado Primavera)
Àlbum: Desfado

Guitarra Portuguesa: Ângelo Freire
Viola de Fado: Pedro Soares
Contrabaixo: André Moreira 






sonho roubado


Sonho roubado e feito refém
De outras sombras imaginado
Talvez em algum silêncio negado
Mas um sonho nunca se detém!!


Sofia Almeida, in: "metamorfose"

sábado, 11 de outubro de 2014

Owen e Haatchi, uma história incrível de um cão e um menino ...






Uma história dos nossos dias...

...como o Amor  pode derrotar a Crueldade dita "Humana" !!!!





Menino de Sua Mãe

No plano abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.


in: 'Antologia Poética´, Fernando Pessoa


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ode Marítima

Ode Marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, 
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido, 
Olho e contenta-me ver, 
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. 
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. 
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. 
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio, 
Aqui, acolá, acorda a vida marítima, 
Erguem-se velas, avançam rebocadores, 
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto. 
Há uma vaga brisa. 
Mas a minh'alma está com o que vejo menos, 
Com o paquete que entra, 
Porque ele está com a Distância, com a Manhã, 
Com o sentido marítimo desta Hora, 
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea, 
Como um começar a enjoar, mas no espírito. 

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, 
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente, 

Os paquetes que entram de manhã na barra 
Trazem aos meus olhos consigo 
O mistério alegre e triste de quem chega e parte. 
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos 
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos. 
Todo o atracar, todo o largar de navio, 
É — sinto-o em mim como o meu sangue - 
Inconscientemente simbólico, terrivelmente 
Ameaçador de significações metafísicas 
Que perturbam em mim quem eu fui... 

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra! 
E quando o navio larga do cais 
E se repara de repente que se abriu um espaço 
Entre o cais e o navio, 
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente, 
Uma névoa de sentimentos de tristeza 
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas 
Como a primeira janela onde a madrugada bate, 
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa 
Que fosse misteriosamente minha. 

Ah, quem sabe, quem sabe, 
Se não parti outrora, antes de mim, 
Dum cais; se não deixei, navio ao sol 
Oblíquo da madrugada, 
Uma outra espécie de porto? 
Quem sabe se não deixei, antes de a hora 
Do mundo exterior como eu o vejo 
Raiar-se para mim, 
Um grande cais cheio de pouca gente, 
Duma grande cidade meio-desperta, 
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética, 
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo? 

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, 
Real, visível como cais, cais realmente, 
O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado 
Insensivelmente evocado, 
Nós os homens construímos 
Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira, 
Que depois de construídos se anunciam de repente 
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas, 
A certos momentos nossos de sentimento-raiz 
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta 
E, sem que nada se altere, 
Tudo se revela diverso. 

Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! 
O Grande Cais Anterior, eterno e divino! 
De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto? 
Grandes Cais como os outros cais, mas o Único. 
Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs, 
E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes 
E chegadas de comboios de mercadorias, 
E sob a nuvem negra e ocasional e leve 
Do fundo das chaminés das fábricas próximas 
Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha, 
Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria. 

Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados 
Em divino êxtase revelador 
Às horas cor de silêncios e angústias 
Não é ponte entre qualquer cais e O Cais! 

Cais negramente refletido nas águas paradas, 
Bulício a bordo dos navios, 
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada, 
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura, 
Que quando o navio volta ao porto 
Há sempre qualquer alteração a bordo! 

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso! 
Alma eterna dos navegadores e das navegações! 
Cascos refletidos devagar nas águas, 
Quando o navio larga do porto! 
Flutuar como alma da vida, partir como voz, 
Viver o momento tremulamente sobre águas eternas. 
Acordar para dias mais diretos que os dias da Europa, 
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar, 
Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens 
Por inumeráveis encostas atônitas... 

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe, 
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto. 
O mistério de cada ida e de cada chegada, 
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade 
Deste impossível universo 
A cada hora marítima mais na própria pele sentido! 
O soluço absurdo que as nossas almas derramaram 
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe, 
Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar, 
Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente, 
Para o navio que se aproxima. 

Ah, a frescura das manhãs em que se chega, 
E a palidez das manhãs em que se parte, 
Quando as nossas entranhas se arrepanham 
E uma vaga sensação parecida com um medo 
- O medo ancestral de se afastar e partir, 
O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo - 
Encolhe-nos a pele e agonia-nos, 
E todo o nosso corpo angustiado sente, 
Como se fosse a nossa alma, 
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira: 
Uma saudade a qualquer coisa, 
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria? 
A que costa? a que navio? a que cais? 
Que se adoece em nós o pensamento, 
E só fica um grande vácuo dentro de nós, 
Uma oca saciedade de minutos marítimos, 
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor 
Se soubesse como sê-lo... 

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca. 
Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido. 
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim. 
E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida, 
E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva. 

Na minha imaginação ele está já perto e é visível 
Em toda a extensão das linhas das suas vigias. 
E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, 
Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco 
E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo. 
Os navios que entram a barra, 
Os navios que saem dos portos, 
Os navios que passam ao longe 
(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) - 
Todos estes navios abstratos quase na sua ida, 
Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa 
E não apenas navios, navios indo e vindo. 

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles, 
Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas, 
Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas, 
Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto, 
Roçando pelas cordas, descendo as escadas incômodas, 
Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo -
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa, 
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira. 

Toda a vida marítima! tudo na vida marítima! 
Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina 
E eu cismo indeterminadamente as viagens. 
Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte! 
Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas! 
As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico 
Em que não sei por que sugestão aprendida na escola 
Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos 
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós! 
A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico! 
O indico, o mais misterioso dos oceanos todos! 
O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater 
De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas! 
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos, 
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer! 

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho! 
Componde fora de mim a minha vida interior! 
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens, 
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas, 
Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas; 
Caí por mim dentro em montão, em monte, 
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão! 
Sede vós o tesouro da minha avareza febril, 
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação, 
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência, 
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética, 
Fornecei-me metáforas imagens, literatura, 
Porque em real verdade, a sério, literalmente, 
Minhas sensações são um barco de quilha pro ar, 
Minha imaginação uma ancora meio submersa, 
Minha ânsia um remo partido, 
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia! 

Soa no acaso do rio um apito, só um. 
Treme já todo o chão do meu psiquismo. 
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim. 

Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro 
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido! 
Ah, a glória de se saber que um homem que andava conosco 
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico! 
Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos, 
Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível 
Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto 
Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia 
E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pros pulmões! 

Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela! 
Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares! 
E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas, 
Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro, 
Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira, 
De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares! 
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta, 
O Puro Longe, liberto do peso do Atual... 
E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor, 
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar. 
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles. 

Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto. 
Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo. 
Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte
São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios, 
Da época lenta e veleira das navegações perigosas, 
Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses. 

Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas, 
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera, 
O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos, 
E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas, 
Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma 
E a aceleração do volante sacode-me nitidamente. 

Chamam por mim as águas, 
Chamam por mim os mares, 
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes, 
As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar. 

Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu 
Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês, 
Que tão venenosamente resume 
Para as almas complexas como a minha 
O chamamento confuso das águas, 
A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar, 
Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas. 
Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue, 
Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz, 
Esse grito tremendo que parece soar 
De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu 
E parece narrar todas as sinistras coisas 
Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite... 
(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas, 
E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca, 
Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras: 

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy... 
Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy...) 

Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa. 
Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre. 
Sinto corarem-me as faces. 
Meus olhos conscientes dilatam-se. 
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, 
E com um ruído cego de arruaça acentua-se 
O giro vivo do volante. 

Ó clamoroso chamamento 
A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim 
Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias, 
Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!... 
Apelo lançado ao meu sangue 
Dum amor passado, não sei onde, que volve 
E ainda tem força para me atrair e puxar, 
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida 
Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica 
Da gente real com que vivo! 

Ah seja como for, seja por onde for, partir! 
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. 
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, 
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, 
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais! 
Ir, ir, ir, ir de vez! 

Todo o meu sangue raiva por asas! 
Todo o meu corpo atira-se pra frente! 
Galgo pla minha imaginação fora em torrentes! 
Atropelo-me, rujo, precipito-me 
Estoiram em espuma as minhas ânsias 
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos! 

Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria! 
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias, 
Subitamente, tremulamente extraorbitadamente, 
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta, 
Do volante vivo da minha imaginação. 
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando, 
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima. 

Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos! 
Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros! 
Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros! 
Homens que dormem em beliches rudes! 
Homens que dormem co'o Perigo a espreitar plas vigias! 
Homens que dormem co'a Morte por travesseiro! 
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar 
A imensidade imensa do mar imenso! 
Eh manipuladores dos guindastes de carga! 
Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo! 
Homens que metem a carga nos porões! 
Homens que enrolam cabos no convés! 
Homens que limpam os metais das escotilhas! 
Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha! 
Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito! 
Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada! 
Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva, 
Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles, 
Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer! 

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Homens que vistes a Patagônia! 
Homens que passasses pela Austrália! 
Que enchesses o vosso olhar de costas que nunca verei! 
Que fostes a terra em terras onde nunca descerei! 
Que comprastes artigos toscos em colônias à proa de sertões! 
E fizestes tudo isso como se não fosse nada, 
Como se isso fosse natural, 
Como se a vida fosse isso, 
Como nem sequer cumprindo um destino! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Homens do mar atual! homens do mar passado! 
Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto! 
Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia! 
Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres 
Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos! 
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos! 
Que primeiro vendesses escravos de novas terras! 
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atônitas 
Que trouxesses ouro, miçanga, madeiras cheirosas, setas, 
De encostas explodindo em verde vegetação! 
Homens que saqueasses tranqüilas povoações africanas 
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças 
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes 
Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa 
Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh eh-eh! 
A vós todos num, a vós todos em vós todos como um, 
A vós todos misturados, entrecruzados. 
A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados, 
Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo! 
Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh! 
Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à! 

Quero ir convosco, quero ir convosco, 
Ao mesmo tempo com vós todos 
Pra toda a parte pr'onde fostes! 
Quero encontrar vossos perigos frente a frente, 
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa 
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos 
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas 
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos! 
Fugir convosco à civilização! 
Perder convosco a noção da moral! 
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade! 
Beber convosco em mares do Sul 
Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma, 
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito! 
Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! - 
O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações, 
Meu medo inato das cadeias, 
Minha pacífica vida, 
A minha vida sentada, estática, regrada e revista! 

No mar, no mar, no mar, no mar, 
Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas, 
A minha vida! 
Salgar de espuma arremessada pelos ventos 
Meu paladar das grandes viagens. 
Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura, 
Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência, 
Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis, 
Meu ser ciclônico e atlântico, 
Meus nervos postos como enxárcias, 
Lira nas mãos dos ventos! 

Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações 
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz! 
Atai-me às viagens como a postes 
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha 
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo! 
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares, 
Sobre conveses, ao som de vagas, 
Que me rasgueis, mateis, fira-os! 
O que quero é levar pra Morte 
Uma alma a transbordar de Mar, 
Ébria a cair das coisas marítimas, 
Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos, 
Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos, 
Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios 
Como dos tranqüilos comércios, 
Tanto dos mastros como das vagas, 
Levar pra Morte com dor, voluptuosamente, 
Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar, 
De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas! 

Façam enxárcias das minhas veias! 
Amarras dos meus músculos! 
Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas. 
E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir! 
Façam do meu coração uma flâmula de almirante 
Na hora de guerra aos velhos navios! 
Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados! 
Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas! 
Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me! 
A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes 
Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas 
Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado, 
Nas vascas bravas das tormentas! 

Ter a audácia ao vento dos panos das velas! 
Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos! 
A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos, 
Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem! 

Os marinheiros que se sublevaram 
Enforcaram o capitão numa verga. 
Desembarcaram um outro numa ilha deserta. 
Morooned! 
O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga 
Nas minhas veias intensivas. 
Os ventos da Patagônia tatuaram a minha imaginação 
De imagens trágicas e obscenas. 
Fogo, fogo, fogo, dentro de mim! 
Sangue! sangue! sangue! sangue! 
Explode todo o meu cérebro! 
Parte-se-me o mundo em vermelho! 
Estoiram-me com o som de amarras as veias! 
E estala em mim, feroz, voraz, 
A canção do Grande Pirata, 
A morte berrada do Grande Pirata a cantar 
Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo. 
Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar: 

                                           Fifteen men on the Dead Man's Chest. 
                                           Yo-ho ho and a bottle of rum I 

E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar: 
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw! 
Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw! 
Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby, 

Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 

Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares 
Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos! 
Dedos decepados sobre amuradas! 
Cabeças de crianças, aqui, acolá! 
Gente de olhos fora, a gritar, a uivar! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 
Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio! 
Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro! 
Rujo como um leão faminto para tudo isto! 
Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto! 
Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 

De repente estala-me sobre os ouvidos 
Como um clarim a meu lado, 
O velho grito, mas agora irado, metálico, 
Chamando a presa que se avista, 
A escuna que vai ser tomada: 

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy.. 
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy... 

O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho! 
Rujo na fúria da abordagem! 
Pirata-mór! César-Pirata! 
Pilho, mato, esfacelo, rasgo! 
Só sinto o mar, a presa, o saque! 
Só sinto em mim bater, baterem-me 
As veias das minhas fontes! 
Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos! 
Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh! 

Ah piratas, piratas, piratas! 
Piratas, amai-me e odiai-me! 
Misturai-me convosco, piratas! 

Vossa fúria, vossa crueldade corno falam ao sangue 
Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive! 

Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos, 
Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas 
Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses, 
Trincasse velas, remos, cordame e poleame, 
Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes! 

E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas, 
Há uma orquestrarão no meu sangue de balbúrdias de crimes, 
De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares, 
Furlbundamente, como um vendaval de calor pelo espírito, 
Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez 
E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias! 

Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora, 
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas, 
E o terror dos apresados foge pra loucura - essa hora, 
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens, 
Brisa, latitude, longitude, vozearia, 
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo, 
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho, 
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma! 

Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes 
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! 
Ser quanto foi no lugar dos saques! 
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue! 
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge, 
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo! 
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres 
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas! 
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles 
E sentir tudo isso -- todas estas coisas duma só vez - pela espinha! 

Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime! 
Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação! 
Amantes casuais da obliqüidade das minhas sensações! 
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos, 
A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos! 
Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado 
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar! 
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica 
Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos 
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladores! 
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis, 
Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto, 
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias, 
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo! 

A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo! 
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis, 
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós, 
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas! 
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis! 
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações 
Quando tingíeis de sangue os mares altos, 
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões 
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças 
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia! 

Estar convosco na carnagem, na pilhagem! 
Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques! 
Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós! 
Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas, 
Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças, navios -, 
Não era só ser a hora e os barcos e as ondas, 
Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse, 
Não era só ser concretamente vosso ato abstrato de orgia, 
Não era só isto que eu queria ser - era mais que isto o Deus-isto! 
Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário, 
Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue, 
Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa, 
Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade 
Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias! 

Ah, torturai-me para me curardes! 
Minha carne - fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam 
Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros! 
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam! 
Minha imaginação o corpo das mulheres que violais! 
Minha inteligência o convés onde estais de pé matando! 
Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo, 
O grande organismo de que cada ato de pirataria que se cometeu
Fosse uma célula consciente - e todo eu turbilhonasse 
Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo! 

Com tal velocidade desmedida, pavorosa, 
A máquina de febre das minhas visões transbordantes 
Gira agora que a minha consciência, volante, 
E apenas um nevoento círculo assobiando no ar. 

Fifteen men on tbe Dead Man's Chest. 
Yo-ho-ho and a bottle of rum! 

Eh-lahô-lahô-laHO - lahá-á-ááá - ààà... 

Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda 
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto! 
Eu pr'àqui engenheiro, pratico à força, sensível a tudo, 
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando; 
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil; 
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória, 
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta! 

Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio! 
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização! 
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas! 
Moços de esquina - todos nós o somos - do humanitarismo moderno! 
Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos, 
Sem coragem para ser gente com violência e audácia, 
Com a alma como uma galinha presa por uma perna! 

Ah, os piratas! os piratas!. 
A ânsia do ilegal unido ao feroz, 
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis, 
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzimos, 
Os nossos nervos femininos e delicados, 
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios! 

Obrigai-me a ajoelhar diante de vós! 
Humilhai-me e batei-me! 
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa! 
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone, 
Ó meus senhores! ó meus senhores! 

Tomar sempre gloriosamente a parte submissa 
Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas! 
Desabai sobre mim, como grandes muros pesados, 
Ó bárbaros do antigo mar! 
Rasgai-me e feri-me! 
De leste a oeste do meu corpo 
Riscai de sangue a minha carne! 
Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva 
O meu alegre terror carnal de vos pertencer. 
A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria, 
Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade, 
Dominadores, senhores, imperadores, corcéis! 
Ah, torturai-me, 
Rasgai-me e abri-me! 
Desfeito em pedaços conscientes 
Entornai-me sobre os conveses, 
Espalhal-me nos mares, deixai-me 
Nas praias ávidas das ilhas! 

Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós! 
Cinzelai a sangue a minh'alma 
Cortai, riscai! 
Ó tatuadores da minha imaginação corpórea! 
Esfoladores amados da minha cama submissão! 
Submetei-me como quem mata um cão a pontapés! 
Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio! 
Fazei de mim as vossas vítimas todas! 
Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer 
Por todas as vossas vítimas às vossas mãos, 
Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados 
Nos assaltos bruscos de amuradas! 

Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse 
Arrastado - ó prazer, o beijada dor! - 
Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós... 
Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR! 
Eh-eh-eh-eh-eh! Eh--.h-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EHEH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR! 

Yeh eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eheh-eh-eh-eh-eh' 
Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos, 
Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar! 
Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar! 

FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN'S CHEST. 
YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM! 

Eh-eh eh-eh -eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eheh-eh! Eh eheh eh-eh-eh-eh! 
Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à - ààà! 

AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó - yyyj... 
SCHOONER AHÓ-ó-ó-ó-ó-ó-ó-o-o-o - yyyy! ... 

Darby M'Graw-aw-aw-aw-aw-aw! 
DA.RBY M'GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW! 
FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY! 

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh! 
EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH! 
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH! 
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EFI-EH-EH-EH-EHI 
EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH! 

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu. 
Senti demais para poder continuar a sentir. 
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim. 
Decresce sensivelmente a velocidade do volante. 
Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos. 
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno. 
E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim, 
Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio, 
Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo. 
De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura, 

Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo 
Úmido e sombrio marulho humano noturno, 
Voz de sereia longínqua chorando, chamando, 
Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos... 

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy... 
Schooner a Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy... 

Ah, o orvalho sobre a minha excitação! 
O frescor noturno no meu oceano interior! 
Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar 
Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas 
A lua sobe no horizonte 
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim. 
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo 
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção 
Que fosse chamar ao meu passado 
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter. 

Era na velha casa sossegada ao pé do rio 
(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também, 
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo, 
Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo 
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas. 
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto... ) 

Uma inexplicável ternura, 
Um remorso comovido e lacrimoso, 
Por todas aquelas vítimas - principalmente as crianças - 
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo, 
Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas; 
Terna e suave, porque não o foram realmente; 
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada, 
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida. 

Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas? 
Que longe estou do que fui há uns momentos! 
Histeria das sensações - ora estas, ora as opostas! 
Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe 
As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das águas. 
O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais.... 
A vela passando perto do outro lado do rio, 
Os montes longínquos, dum azul japonês, 
As casas de Almada, 
E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!... 

Uma gaivota que passa, 
E a minha ternura é maior. 

Mas todo este tempo não estive a reparar para nada. 
Tudo isto foi uma impressão só da pele, com uma carícia 
Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo, 
Da minha casa ao pé do rio, 
Da minha infância ao pé do rio, 
Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite, 
E a paz do luar esparso nas águas! ... 

Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu..., 
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me 
(Se bem que eu fosse já crescido demais para isso)... 
Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida, 
E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim. 
As vezes ela cantava a "Nau Catrineta": 

                                        Lá vai a Nau Catrineta 
                                        Por sobre as águas do mar ... 

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval, 
Era a "Bela Infanta"... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim 
E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto! 
Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida? 
Era a "Bela Infanta"... Eu fechava os olhos, e ela cantava: 

                                        Estando a Bela Infanta 
                                        No seu Jardim assentada... 

Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar 
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz. 

                                        Estando a Bela Infanta 
                                        No seu jardim assentada, 
                                        Seu pente de ouro na mão, 
                                        Seus cabelos penteava 

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram! 
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição, 
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente! 

Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha. 
Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter. 
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto. 
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas! 
Vertigem tênue de confusas coisas na alma! 
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam, 
Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos, 
Lágrimas, lágrimas inúteis, 
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma... 

Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção, 
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo, 
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer: 

                                        Fifteen men on the Dead Man's Chest. 
                                        Yo-ho-ho and a bottle of rum! 

Mas a canção é uma linha reta mal traçada dentro de mim... 
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma, 
Outra vez, mas através duma imaginação quase literária, 
A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque, 
Da chacina inútil de mulheres e de crianças, 
Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres 
E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais queridas dos outros, 
Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa a respirar-me sobre a nuca. 

Lembro-me de que seria interessante 
Enforcar os filhos à vista das mães 
(Mas sinto-me sem querer as mães deles), 
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos 
Levando os pais em barcos até lá para verem 
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho 
e está dormindo tranqüilo em casa). 

Aguilhôo uma ânsia fria dos crimes marítimos, 
Duma inquisição sem a desculpa da Fé, 
Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria, 
Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal, 
Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo, 
Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha 
Atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar, 
Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande coisa, 
De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá... 
Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me. 
Um calafrio arrepia-me. 
E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo, 
De repente - oh pavor por todas as minhas veias! -, 
Oh frio repentino da porta para o Mistério 
que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar! 
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente 
A velha voz do marinheiro inglês Jim Barris com quem eu falava, 
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, 
das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã, 
Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas, 
A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca, 
Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares, 
Chama por mim, chama por mim, chama por mim ... 

Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse, 
Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir, 
Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso. 
De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo, 

O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso: 

Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy...... 
Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy...... 
Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ô - - yy..... 

Tremo com frio da alma repassando-me o corpo 
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado. 
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez! 
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos! 
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo. 

Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe. 
Só o que está perto agora me lava a alma. 
A minha imaginação higiênica, forte, pratica, 
Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e úteis, 
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros, 
Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras. 
Abranda o seu giro dentro de mim o volante. 

Maravilhosa vida marítima moderna, 
Toda limpeza, máquinas e saúde! 
Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado, 
Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares, 
Todos os elementos da atividade comercial de exportação e importação 
Tão maravilhosamente combinando-se 
Que corre tudo como se fosse por leis naturais, 
Nenhuma coisa esbarrando com outra! 

Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas 
Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida 
Comercial, mundana, intelectual, sentimental, 
Que a era das máquinas veio trazer para as almas. 
As viagens agora são tão belas como eram dantes 
E um navio será sempre belo, só porque é um navio. 
Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve 
Em parte nenhuma, graças a Deus! 

Os portos cheios de vapores de muitas espécies! 
Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias, 
De tão deliciosamente tantas companhias de navegação! 
Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos! 
Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar, 
No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses! 

O olhar humanitário dos faróis na distância da noite, 
Ou o súbito farol próximo na noite muito escura 
("Que perto da terra que estávamos passando!" 
E o som da água canta-nos ao ouvido)! ... 

Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio; 
E o destino comercial dos grandes vapores 
Envaidece-me da minha época! 
A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros 
Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil 
Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as coisas, 
E gozar a vida realizando um grande número de sonhos. 

Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo! 
Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como , gentlemen, 
São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões, 
Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar. 

O dia é perfeitamente já de horas de trabalho. 
Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se. 

Com um grande prazer natural e direto percorro a alma 
Todas as operações comerciais necessárias a um embarque de mercadorias. 
A minha época é o carimbo que levam todas as faturas 
E sinto que todas as cartas de todos os escritórios 
Deviam ser endereçadas a mim. 

Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade, 
E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna! 
Rigor comercial do princípio e do fim das cartas: 
Dear Sirs - Messieurs - Amigos e Srs., 
Yours faithfully - ...nos salutations empressées... 
Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo, 
E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde embarquem 
As mercadorias de que as cartas e as faturas tratam. 

Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente 
Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes - 
E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso! 
Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto. 
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias. 
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente. 
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios! 
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a, 
Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna, 
Porque as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história 
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.

Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras, 
As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros
Duma maneira especial, como se um mistério marítimo 
Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento 
Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta, 
Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água,, 
Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus! 

Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto 
E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças! 

As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! 
Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! 
Tanto destino diverso que se pode dar à vida, 
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! 
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas 
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. 
A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária. 
É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, 
E passa a achar graça ao que tem que tolerar, 
E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! 

Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado 
Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. 
Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! 
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. 
Pobre gente! pobre gente toda a gente! 

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio 
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês, 
Muito sujo, como se fosse um navio francês, 
Com um ar simpático de proletário dos mares, 
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas. 

Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural. 
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta, 
Curnpridora duma qualquer espécie de deveres. 
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou. 
Lá vai ele tranqüilamente, passando por onde as naus estiveram 
Outrora, outrora... 
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância. 
Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida! 
Boa viagem! Boa viagem! 
Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor 
De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos, 
E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar. 
Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto... 

Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino 
Na tua saída do porto de Lisboa, hoje! 
Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso... 
Por isso quê? Sei lá o que é!... Vai... Passa... 
Com um ligeiro estremecimento, 
(T-t--t --- r ---- t----- r ... ) 
O volante dentro de mim pára. 

Passa, lento vapor, passa e não fiques... 
Passa de mim, passa da minha vista, 
Vai-te de dentro do meu coração, 
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus, 
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me... 
Eu quem sou para que chore e interrogue? 
Eu quem sou para que te fale e te ame? 
Eu quem sou para que me perturbe ver-te? 
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro, 
Luzem os telhados dos edifícios do cais, 
Todo o lado de cá da cidade brilha... 
Parte, deixa-me, torna-te 
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido, 
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto 
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!), 
Ponto cada vez mais vago no horizonte.... 
Nada depois, e só eu e a minha tristeza, 
E a grande cidade agora cheia de sol 
E a hora real e nua como um cais já sem navios, 
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira, 
Traça um semicírculo de não sei que emoção 
No silêncio comovido da minh'alma... 

in:  "Poemas" (Álvaro de Campos),  Fernando Pessoa