sexta-feira, 24 de maio de 2019

Lídia Jorge_entrevista


"Lídia Jorge: "Os poetas não gostam que se diga que a poesia é mais fácil"


Inesperadamente, uma das mais importantes escritoras portuguesas fecha por momentos a torneira da ficção e reúne os poemas que considera incapaz de melhorar num livro.

João Céu e Silva
23 Maio 2019 — 18:28

Lídia Jorge
livro
Cultura


A poucos dias de começar a Feira do Livro de Lisboa, a escritora Lídia Jorge lança um novo livro... Só que O Livro das Tréguas pouco tem que ver com o que a autora já foi autografar neste evento numa longa carreira, afinal é obra poética. Bem assinalada na capa, para que o leitor não vá ao engano!

A primeira palavra do livro é "Antes" e as finais "de quem serei eu filha?", que bem poderiam ser espelho da ficção que se conhece assinada por si, contudo as milhares de palavras entre o princípio e o fim confirmam que a autora abriu definitivamente as portas ao género literário que lhe faltava publicar.

Mais, é um livro escrito por uma mulher e que fala de preferência para as leitoras. Basta ver o índice e confirmar que a maior parte dos "capítulos" têm que ver com situações femininas, às vezes até autobiográficas. A poeta não o nega: "Acontece sim." Explica: "Penso que as vozes da poesia que mais ecoam têm sido as das mulheres. Porquê? Não o sei dizer, mesmo que olhe para o trabalho de Seamus Heaney, Paul Valéry ou Rimbaud, aproximei-me muito mais da poesia escrita por mulheres e, principalmente, das portuguesas." Dá exemplos: "Faço um périplo e dizem-me muito a Sophia, a Luiza Neto Jorge, a Fiama Hasse Pais Brandão, de outra maneira a Maria Teresa Horta, e na atualidade a Ana Luísa Amaral. Isto para falar das jovens, por quem também fico deslumbrada em vários casos."

Pede-se para confirmar se existe nesta poesia agora exposta publicamente um contrato sentimental para com as mulheres. Sim, responde: "Mesmo que involuntário, é natural ter um contrato sentimental para com as mulheres, pela condição. Não é de vítimas, mas de auscultadoras de outras coisas. Dentro destas mulheres que referi, o que mais gosto na sua poesia é aquela em que se mostram triunfantes." Por isso gosta tanto de Sophia: "Ela não aparece vitimizada, mas sempre alguém que triunfa sobre a natureza, a ciência, a cultura, a história, o país ou a política. Nunca se lamenta que não pode, é a poeta que tem o poder e eu gosto disso. De outra maneira, a Fiama é também excecional nisso, ou a Luiza e a Ana Luísa. Atentas a outras cordas diferentes da harpa que as mulheres podem tocar porque historicamente estão noutra posição. No futuro, iremos aproximar-nos todos mais, mas creio que há uma natureza que nos distingue - cérebro e corpo - e nos fará sempre ser diferentes."

Depois de lermos o seu último romance, Estuário, em que o protagonista trabalhava sobre A Odisseia e A Ode Marítima, só poderia surgir um livro de poesia?
Não posso fazer essa ligação, porque ao longo da minha vida sempre fui escrevendo poesia. Portanto, estes poemas que reuni poderiam ter sido publicados há dois anos ou esperar dois anos para o serem. Não têm relação direta com o caminho que estou a fazer.

Para os leitores este livro será quase inesperado...
Penso que sim, porque as pessoas não estão à espera de que publique poesia, ainda que eu ache, e até porque muitos leitores me dizem que há páginas na ficção, em romances e contos, sobre as quais consideram "isto é poesia". Por vezes, gosto de introduzir, sobretudo nos pontos cimeiros da ficção, poemas como condensação do sentido mais forte do livro. Foi o que aconteceu em A Costa dos Murmúrios, tanto que muitas vezes as pessoas começam a falar desse livro a partir do poema que lá está. Que é parte do personagem, escrito ficcionalmente por ele, mas de minha autoria. Portanto, penso que os leitores mais atentos ao que escrevo não sentirão uma grande surpresa. Acho que se percebe que não só leio poesia como gosto e a escrevo permanentemente.

Já havia dois poemas que circulavam na internet, o "Assim a Casa Seja" e o "Cai a Chuva no Portal"...
Tenho publicado poemas em jornais e outros que se transformaram em letras para canções. Comecei a publicar poemas em jornais regionais deveria ter uns 15 anos, no entanto vem desde quase criança. Escrever poesia é para mim um ato pacífico, onde parece que ajusto as contas comigo e me confronto, e posso dizer que existe uma outra espécie de escrita ao lado daquela que até agora tenho publicado. Para mim, publicar este primeiro livro de poesia não é um acontecimento extraordinário, antes natural porque surge como alguma coisa que tinha mesmo de acontecer.

Entra num mundo que não é o seu e num país de muitos poetas!
Um país de muitos grandes poetas, é preciso dizê-lo, e quando confrontamos os nossos com os grandes do mundo percebemos que é assim. Simplesmente, eu não escrevo poesia para entrar em nenhum clube nem para dizer "cheguei!" ou que "também pertenço ao vosso grupo". Não. Considero que entre a ficção e a poesia há uma linha de continuidade, apesar de a poesia ter em relação à ficção uma densidade maior no sentido, na semântica e na linguagem. Enquanto na ficção a linguagem tem de se desdobrar em segmentos menos significativos porque a narrativa assim o manda, na poesia o sentido das palavras é mais denso. É por isso que gosto de ler poesia, como uma espécie de descanso entre a ficção e o ensaio. É uma espécie de intermezzo na vida, para dizer: isto aqui é-me fácil e não estou em competição com nada, é apenas um confronto com aquilo que sou capaz de expressar.

Quando diz que a poesia lhe é fácil pode entender-se que é mais fácil escrever um livro de poemas do que um romance?
De facto, é mais fácil. Os poetas não gostam que se diga que a poesia é mais fácil porque consideram, o que é verdade, que cada verso é uma iluminação. Ficam ofendidos porque passam muito tempo a burilar e acham que a ficção é uma espécie de poesia conspurcada, que se desenvolve de uma forma operária. Aquilo que me parece é que se eu quiser escrever poesia, independentemente de ser boa ou não, isso será mais fácil. Possivelmente não atingirei o grau de densidade do Saint-John Perse ou da Wislawa Szymborska, mas a verdade é que me surge com muita naturalidade e se me dedicasse à poesia escreveria muitos mais livros. Não sei que tipo de sucesso é que teria, quantos leitores, ou se seria considerada uma poeta importante. Contudo, luto mais para escrever ficção, onde tenho de ter sobre o tabuleiro vários dados, do que na poesia, que surge instantaneamente e depois se vai trabalhando em intervalos. Reescrever uma página não é o mesmo que o fazer em milhares de páginas. Como Céline dizia: de oito mil aproveitava 800. É um trabalho diferente e digo-o sem menosprezar qualquer tipo de atividade, até porque acho que são contíguas.

Com a poesia fecha o ciclo dos géneros literários: romance, conto, teatro, ensaio e crónicas. Faz o pleno?
Está tudo muito próximo e não vejo grande distinção porque até se vai notar que existe uma continuidade entre todos os meus textos. Os géneros não se opõem e quem gosta de escrever sente desejo de fazer experiências a várias vozes. Isto é um palco múltiplo onde ora fala mais um eu personalizado ora como se o meu eu sozinho não fosse capaz de cobrir as minhas interrogações. Então, espalho-me pelos personagens que, falando uns com os outros, encontram a resposta que só não consigo. A minha forma primitiva é sempre o "Era uma vez" e mesmo quando isso não está escrito na poesia é o que se passa.

Já criou sete dezenas de personagens em ficção. Neste livro só há uma: a poeta. Como reagirão os leitores?
Acho que bem e ninguém ficará a dizer "aqui está uma máscara do que ela escondia e agora revela!". Quem lê os meus livros repara que há muito de biográfico e neste caso questiona se sou eu a personagem, mas não sentirá esse choque porque há a continuidade, nem se sentirá num território estranho.

O poema "Autografia" é claramente autobiográfico?
Sim, é uma espécie de arte poética que tem a chave do que me faz escrever: a ideia de que enquanto pego numa história adio a morte de alguma coisa.

Tem um poema em que diz que tem a cabeça cheia de fábulas. Para desenvolver na poesia ou na ficção?
Ambas. Na poesia, se perceber que este livro não ofende as pessoas e tem um eco nos leitores; mas não deixarei de escrever ficção. Arrumei estes poemas dispersos, os que considerei que tinham chegado à forma final, ou que não sou capaz de melhorar, mas tenho muitos e continuo permanentemente a escrever. Ao mesmo tempo estou a pensar no romance, nas figuras que falam e numa história.

Está mais ansiosa perante a reação do leitor com este livro ou quando publica um romance?
Só estou ansiosa no momento em que termino, porque pergunto se terei feito tudo o que podia. Depois, fico calma porque o que poderia fazer fiz. Aí, aconteça o que acontecer, na vida ou na escrita, o amanhã virá por si e se não gostarem muito ou nada do livro só posso responder com o próximo. Eu privilegio mais um caminho do que uma carreira.

O Livro das Tréguas - Poesia
Lídia Jorge
Editora D. Quixote"

in: jornal "DN"

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