MIA COUTO
O MEU PRIMEIRO PAI
24.05.2019 às 8h23
"O seu verdadeiro vício não era o álcool. O seu vício éramos nós que ele amava e que não sabia o que fazer com esse amor. Não sabia como dizer esse amor. Tinha medo de se entregar e de não regressar
Ilustração: Suza Monteiro
Todos os domingos, o meu pai anunciava que ia à missa. Nunca chegou a entrar na igreja. Pelo caminho, parava nos bares. Eram vários os bares e, mais ainda, as paragens que ele fazia. Encontrava as tabernas de olhos fechados como um devoto ante a cruz. A gente, dizia ele, começa a beber antes de ter boca. Ele bebia pelo cheiro. O nariz dos bêbedos ocupa o corpo todo. A sede do beber pode ser saciada. A do corpo não se resolve nunca.
Em cada taberna, o nosso pai ajoelhava-se e benzia-se de copo na mão, lentamente para não entornar a bebida. Perante um altar pejado de garrafas, misturava orações, impropérios e encomendas de mais aguardente.
Regressava a casa ao final da tarde. A nossa mãe espreitava, por detrás das cortinas. Quem me dera que faça calor, suspirava ela. Nos dias quentes, o marido entrava em casa já meio adormecido, sapatos na mão, os olhos à procura do olhar. Com o calor, a maldade saía-lhe
do corpo, diluída em suor. No geral, porém, a chegada dele era temida, prenúncio de uma guerra sem panos brancos. O pai surgia no topo da rua, a mãe alertava-nos: ele aí vem, vão para o quintal. E corria a recebê-lo como quem se apressa a entregar um carrasco.
Por detrás das moitas, adivinhávamos a sua ágil dança, escapando aos murros, chutos e pontapés. A arte de quem apanha, dizia a mãe, é evitar marcas nos lugares expostos do corpo. Regressávamos quando os gritos viravam choro. Depois, quando tudo era silêncio, com mil cuidados rodávamos a maçaneta da porta. O pai esperava-nos na cozinha. Ocupava esse aposento que ele, com antigo desdém, chamava “lugar das mulheres”. A cozinha ficava ainda mais pequena com ele ali sentado, cansado de ter corpo, as pernas longas não cabendo dentro da casa. Havia uma destilaria dentro do hálito dele.
Aguardávamos em silêncio, prontos para escutar o que ele nunca chegou a dizer. Os bêbedos têm medo das palavras. Magoam-se mais ainda com o silêncio, esse fundo de copo irremediavelmente vazio. A luz tornava mais branca a sua justíssima camisola interior. Temíamos a sua ferocidade, mas receávamos ainda mais tornarmo-nos parecidos com ele.
Sobre os joelhos o pai deitava os velhos sapatos, os únicos que tinha. As pontas dos dedos afagavam as solas e eram uma carícia que a ninguém nunca dedicou. Depois de um tempo, os dedos impregnados de poeira, ele anunciava: vão lá, vão lá ter com ela!
Corríamos a reconfortar a mãe que, no seu leito, escondia o corpo debaixo dos lençóis. Eu sacudia a almofada como se afastasse a areia em que ela me surgia sepultada.
– Durma, mãe.
– Não posso, meus filhos.
– Finja que dorme. Assim ele não a importuna mais. E sonhe, mãe.
– Ultimamente tenho-me esquecido tanto de sonhar.
Na manhã seguinte, a mãe falava no pátio com a vizinha: o meu primeiro marido não era assim. E eu estremecia com receio daquelas misteriosas palavras. A mãe sorriu quando lhe confessei esse medo: não houve nunca outro casamento, o seu companheiro tinha sido sempre este que a humilhava. Esse “primeiro” marido que ela inventava era, afinal, este nosso pai antes do desemprego e da bebida. E nós, órfãos, éramos filhos desse outro que se extinguiu dentro deste. Tantas vezes rezei para que esse outro, esse meu inventado pai, regressasse das brumas e tomasse posse do nosso castelo.
A nossa família só se tornou completa quando a nossa mãe ficou viúva. A solidão fê-la adoecer mais do que podíamos prever. Fomos visitá-la ao hospital. E lamentámos o quanto ela sofreu nas mãos do nosso pai. O meu irmão mais velho chegou a dizer algo terrível:
– Odiamo-lo tanto que o nosso maior receio é tornarmo-nos iguais a ele.
– Engano vosso, meus filhos – declarou a mãe. – O vosso pai nunca ergueu um dedo contra mim.
– Como pode protegê-lo depois de tantos anos de pancada?
– Alguma vez viram uma nódoa negra no meu corpo?
– E, então, os gritos, os choros?
– Eu gritava e chorava porque ele se agredia a si mesmo.
A raiva dele abatia-se apenas sobre ele, e isso, para a nossa mãe, era uma prova de amor tão verdadeira e sofrida que, em prantos e soluços, ela implorava que o homem dirigisse os golpes contra ela.
– O vosso pai só me tocou para me amar.
E o seu verdadeiro vício não era o álcool. O seu vício éramos nós que ele amava e que não sabia o que fazer com esse amor. Não sabia como dizer esse amor.
Tinha medo de se entregar e de não regressar. A bebida afastava-o dessa carência. Não era de sede, murmurou a mãe, que ele sofria. Morria, sim, de ciúmes de mim. Nunca houve outro homem e o vosso pai sabia. O que ele não me perdoava era eu estar mais viva do que ele.
Ainda hoje, na solidão da cozinha, passo lustro aos velhos sapatos que foram a minha herança paterna. E os meus dedos são os dele, os do meu primeiro pai, trémulos e receosos perante a Vida que é sempre dos outros."
in: revista "Visao"
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