terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Nicholas Oulman_entrevista


"Estamos a ficar cada vez mais estúpidos. Somos facilmente enganados por um discurso populista"


ENTREVISTAS VISÃO

17.02.2019 às 20h00


José Carlos Carvalho

"Pensava que o ser humano aprendia com os erros, que evoluía e se tornava mais sábio, mas é o oposto", diz o realizador de cinema Nicholas Oulman, em entrevista à VISÃO



MIGUEL CARVALHO


Debaixo do Céu é o regresso do realizador Nicholas Oulman, 51 anos, à longa-metragem documental, depois do êxito de Com que Voz (2009), filme biográfico sobre o pai, o compositor Alain Oulman, e a cumplicidade poética e artística com Amália Rodrigues, que acabaria por revolucionar o fado e elevar o reportório da cantora a patamares líricos e musicais nunca antes alcançados.

Desta vez, Nicholas Oulman “viaja” ao universo dos refugiados judeus que encontraram, em Portugal, um lugar para refazerem as suas vidas, depois da fuga dramática à perseguição nazi. Este, porém, não é mais um filme sobre o Holocausto. Inspirado nas histórias ouvidas à família, nos relatos da comunidade judaica e em diversas narrativas sobre o tema, o realizador nascido em Londres mas criado entre Paris e Lisboa, onde vive, ensaia uma corajosa e arriscada ponte entre o passado e a atualidade.

A ideia é desassossegar as nossas vidas confortáveis, o pensamento preguiçoso, a anestesia diária e desafiar-nos a tomar em mãos, em nome da harmonia coletiva, o nosso “destino pequeno”, citando a expressão usada no filme por um dos sobreviventes.

Oulman insta o espectador a tornar-se, ele próprio, uma espécie de protagonista, abanando-o e sacudindo-o ao ponto de convocar a sua imersão na narrativa da longa jornada de escape ao abominável, à boleia de dolorosas recordações, de trágicos percursos, de imaginários infantis e de territórios de redenção. Neste filme, não há fornos crematórios, campos de concentração ou de extermínio – nem sequer exibição da violência gratuita e coletiva que a História registou. O que mais pesa é o quotidiano – arrastado, intuído, magoado – que desfez vidas e sonhos mas encontrou, dentro de si próprio e no encontro com os outros, a salvação. Pretexto, pois, para uma conversa com o realizador, entre o Porto e o Dafundo, na semana após a estreia deste documentário com um título tão óbvio quanto simbólico de casa comum.

Quais foram os impulsos e reflexões que o levaram a fazer este filme?

Tudo isto começou quando fiz a pesquisa para o Com que Voz sobre o meu pai. Nessa altura, investiguei a infância dele e a época em que viveu no Dafundo. Descobri que Portugal foi uma placa giratória para milhares de refugiados e que a minha família ajudou alguns a fugir ao regime nazi, dando-lhes casa ou fazendo o que podia. O facto de saber que o meu tio fugiu e se alistou na Royal Air Force (RAF) e que a minha tia se tornou enfermeira voluntária e seguiu para Londres foram elementos que deram substância ao que eu procurava e que me impulsionaram a ir mais fundo. Em Portugal, não havia a perseguição antissemita que existia no resto da Europa. O País era uma porta do Ocidente. O meu desconhecimento, o ter ascendência judia e o ter falado com a comunidade fizeram-me perceber que teria material para fazer qualquer coisa sobre este tema.

Que obstáculos encontrou e como chegou a estes testemunhos?

Foi complexo encontrar sobreviventes que tivessem passado por Portugal durante aquele período. As pessoas que podiam prestar depoimentos estavam numa idade avançada, não lhes era possível deslocarem-se e eram crianças à época dos acontecimentos, e isso obrigou-me a rever a ideia inicial. Precisei de tempo para conquistar parte dessas pessoas e ganhar a sua confiança, antes de invadir um pouco a privacidade delas e de ouvi-las a propósito de momentos delicados e dolorosos das suas vidas. Acresce que, como tinham fugido, deixaram para trás muitas das recordações. Tive pouca coisa a que recorrer para concretizar a reconstrução das personagens e criar empatia entre os relatos e o espectador. Encontrei uma linguagem alternativa para transmitir o que pretendia e que, ao mesmo tempo, fosse visualmente interessante, sem usar fórmulas gastas. A ideia é que o espectador mergulhe neste passado e faça também estas viagens, por dentro da narrativa.

Não aparecem as imagens típicas destes filmes, com campos de concentração e de extermínio. No entanto, a carga emotiva do quotidiano acaba por tornar-se mais pesada...

Não queria fazer mais um filme sobre o Holocausto. A maneira mais forte de comunicar o que pretendia era criar um universo narrativo que transportasse o espectador para aquele período e que, de certa maneira, o obrigasse a vivenciar, através da incerteza e da empatia que se estabelecem com as histórias e o destino dos seus protagonistas. Quando se cria empatia, cria-se sentimento – e isso obriga a pensar. Além do mais, recorri a imagens que nunca tinha visto e que podiam ser algo novo para o espectador. A redução da velocidade das imagens, os grandes planos e o registo humano geram um lado etéreo, memorialístico, fantasmagórico. No fundo, não queria fazer mais um filme sobre o Holocausto.


O Portugal de Salazar, autoritário, conservador, miserável, vigiado, que prendeu o seu pai e que o deportou por atividades consideradas subversivas, é olhado por protagonistas do filme como o melhor dos mundos. Surpreendeu-o esse olhar idílico?

Foi uma questão complicada com a qual me debati. A Península Ibérica era governada por ditadores fascistas. O regime oprimia os portugueses mas, para pessoas que vinham de um mundo horrível que as perseguia por serem o que são, Portugal era um paraíso. O olhar que elas tinham desse tempo não estava contaminado por políticas, governantes ou regimes. É o olhar puro de crianças. Relatam memórias boas de infância, não são insultadas, não há uma consciência, uma maturidade. Para elas, que eram perseguidas, que não podiam entrar em sítios públicos e não tinham comida, chegar cá e ter acesso a isso, e em segurança, era algo idílico, embora houvesse sempre receio de a Península ser invadida pelos alemães ou de elas serem recambiadas.

Portugal foi a salvação?


Para esses refugiados, Portugal foi sempre um porto de espera, uma escapatória. Não era o destino final. Era apenas a possibilidade de refazer uma vida. E muitos conseguiram-no, nos Estados Unidos da América ou na América do Sul. Vingaram, fizeram as suas carreiras, criaram famílias e novas gerações. Só o facto de o País não lhes ter fechado a porta faz com que falem sempre de Portugal com muito carinho e afeto. O único momento em que há referência ao caráter do salazarismo é quando se conta a história de um bibliotecário da Figueira da Foz, que quer aprender francês com o estrangeiro refugiado para lhe poder dizer o quanto o regime é mau.

Uma das mensagens poderosas do filme começa logo no próprio título: a ideia de que ontem, como hoje, vivemos todos debaixo do mesmo céu. Não estamos, contudo, a habitar um tempo de memória curta?

Sim! E de que maneira! A Europa, os EUA, o Brasil, a Hungria, a Polónia estão a passar por isso. Tenho muita dificuldade em entender o que está a acontecer – a facilidade com que os extremistas têm palco, exercem poder e expressam sentimentos xenófobos, antirracistas e antissemitas com total impunidade. E fazem-no com a mais completa impunidade, perante a nossa indiferença. Pensava que o ser humano aprendia com os erros, que evoluía e se tornava mais sábio, mas é o oposto: estamos a ficar cada vez mais estúpidos. Somos facilmente enganados por um discurso populista, aqui ou ali. Não percebo o mundo em que vivemos. Mesmo os mais educados e esclarecidos esqueceram-se das dificuldades pelas quais passaram os seus antepassados. Estão acomodados à sua vida confortável, mais egoístas e habituados a ver apenas o seu jardinzinho. De facto, todos vivemos debaixo do mesmo céu, mas eles não se lembram de que aquilo que acontece hoje noutros sítios terá, mais cedo ou mais tarde, repercussões nas nossas vidas. Não há lugar para individualismos e protecionismos.

“Não vos queremos cá, ide embora!” é uma frase que atravessa os testemunhos e que alguns sobreviventes sentiram na pele na Alemanha nazi. Em que medida isto remete para a atualidade e como se combate?

Estamos a viver numa sociedade profundamente capitalista, consumista, que só se preocupa com o instantâneo. E esquecemos que temos de manter uma certa harmonia. Virarmos as costas uns aos outros, e agirmos cada um por si não é solução. As pessoas não aprenderam nada com as guerras anteriores? Quando penso na frase que citou, não posso deixar de refletir na vida dos filhos de imigrantes ilegais que já nasceram nos EUA, a quem agora é dito para se irem embora. É a mesma coisa que sentiram muitas pessoas que viviam na Alemanha, quando Adolf Hitler chegou ao poder. É chocante! Enquanto pai e responsável pela minha família, se um dia eu tivesse de encarar uma situação dessas, não sei o que faria, como reagiria... Mas tenho sempre esperança de que isto dê uma reviravolta, de que as pessoas tomem consciência...

“Para mim há dois destinos na vida: o destino menor, relativo a cada um de nós, e o destino maior”, ouve-se num dos testemunhos. O que é termos nas mãos o destino menor?

Significa que podemos não ter o controlo sobre o destino maior – guerras ou tragédias globais –, mas que somos donos do nosso destino menor – fazer boas ações, trabalhar, ajudar e ser solidário com os outros, cultivar a empatia com os nossos vizinhos, etc. Isto pode soar a cliché, mas tudo junto pode fazer a diferença. O ser humano não foi feito para viver sozinho. Precisamos uns dos outros. Ouço falar muito em lobbies, em grupos de interesses, em fortunas nas mãos de um por cento da população, e eu pensava que isso era rejeitado pela sociedade, mas a verdade é que é tolerado. Se os outros são descartados, não é o enriquecimento material que faz as pessoas melhores. Tenho 51 anos e achava que, à medida que envelhecia, a vida tornar-se-ia mais fácil. Mas penso no futuro dos meus filhos e fico preocupado. Não é isso que está a acontecer.

O documentário, apesar de ressalvar o fosso que deve separar a compreensão e o perdão, não cede a uma visão maniqueísta. Ou seja: também nele se contam histórias de alemães bons. Foi importante para si separar os seres humanos daquilo que eles representam?

As coisas não são a preto-e-branco, há muitas zonas cinzentas na vida. Apesar de os alemães, enquanto povo, terem sido muito complacentes com o nazismo, ou terem mesmo fechado os olhos aos seus crimes, houve alemães que fizeram o que podiam para salvar outros seres humanos. Tenho alguma dificuldade em julgar... Um dos protagonistas diz algo como isto: “Eu não acho que aquilo aconteceu por eles serem alemães. Acho que aconteceria em qualquer sítio.” Partilho desta ideia. Isto pode repetir-se num sítio qualquer – basta fechar os olhos.

E quando um extremista condenado por diversos crimes tem direito a uma descontraída entrevista, num programa matinal de televisão de grande audiência, isso diz-nos o quê?

Significa que estamos a brincar com o fogo. As pessoas têm direito às suas opiniões, mas não ao direito de defender ideais ou regimes, cujo objetivo é causar danos ao seu semelhante.

O passado relatado no filme e a atualidade estão demasiado próximos?

A minha intenção foi, em parte, estabelecer essa ponte. Quando estava a fazer as pesquisas, a ouvir aqueles discursos de Hitler e de Goebbels, a ver aqueles desfiles militares, foi inevitável associá-los a Donald Trump e às suas intervenções que incitam à violência. As situações dramáticas pelas quais a Humanidade passou na sua História recente já deveriam ser suficientes para aprendermos... No fundo, é isto: We should know better!

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