Notícias do Brasil (1ª parte)
O novo governo brasileiro acaba de garantir, na chefia das duas câmaras do Congresso, figuras cuja orientação política se lhe apresenta como favorável. Rodrigo Maia e o até agora desconhecido Davi Alcolumbre, ambos oriundos do DEM, respetivamente na Câmara de Deputados e no Senado, parece serem uma boa notícia para o novo presidente. O DEM, aliás, surge, nesta fase política, como o principal partido do espetro tradicional que, até agora sem falhas, se apresta a apoiar abertamente Bolsonaro.
Bolsonaro está, para já, a encontrar um ambiente confortável no Congresso. Não há nenhuma surpresa neste facto: é da lógica dos regimes presidencialistas que aos presidentes recém-eleitos, independentemente da lógica do número de deputados, seja conferida uma trégua parlamentar para o início da governação, mesmo que depois se conclua que não há uma maioria automática para aprovar os “pacotes” legislativos. A legitimidade decorrente da eleição tem, além disso, um tradicional tropismo, que leva quase sempre a uma onda inicial de adesões à ala “governista”, facilitada no Brasil pela imensa flexibilidade do sistema partidário.
Bolsonaro tem, sob o seu controlo, um novo partido, o PSL, que não saiu maioritário das eleições legislativas, embora tenha tido um resultado não despiciendo. Isso também é normal.
Nos tempos de Lula ou Dilma, o PT - contrariamente à imagem mítica que se criou - nunca teve mais de 20% dos votos e, por isso, foi sempre obrigado a “costurar” apoios com várias outras formações partidárias, a fim de garantir maiorias no Congresso. O “mensalão” foi um dos métodos para sustentar esse apoio, sendo outro a distribuição de lugares no aparelho de Estado, de ministérios a empresas públicas.
O vencedor conjuntural deste primeiro “round” no âmbito legislativo é o DEM, que sempre foi o partido mais à direita do espetro político tradicional do Brasil. Um partido que também tem três ministros no governo. O que é o DEM?
Convém lembrar que, durante a ditadura militar, para alimentar a ficção de que existia um mínimo de pluralismo, haviam sido criados, “manu militari”, dois partidos: a Arena, um partido de aberto apoio ao regime militar, que deu suporte a algumas das sua medidas mais sinistras, e o MDB, onde se juntava alguma oposição legalista (isto é, a que não optou pela luta clandestina e mesmo armada, de resistência à ditadura), às vezes muito complacente, outras com registos de rutura, a qual, de certo modo, ia aceitando fazer o jogo da tropa, em troca de um mínimo de voz pública.
No regresso à democracia, em 1985, estas duas formações políticas colocaram-se, com alguma naturalidade, na primeira linha no novo sistema político.
A Arena, “absolvida” pelo ambiente de transição do apoio dado à barbárie militar, evoluiu para se transformar no PFL, que, anos depois, mudaria o nome para DEM. O DEM esteve várias vezes associado ao poder político democrático, afirmando-se sempre como uma estrutura política muito conservadora.
O MDB, após 1985, transformou-se no PMDB (hoje chama-se de novo MDB) e foi, até 2018, o maior partido do Brasil, embora com uma heterogeneidade que sempre o levou a ter, simultaneamente, uma ala de suporte dos governos e uma outra que se lhes opunha.
Perceber o PMDB é meio caminho andado para perceber o Brasil. Mas não vale a pena tentar saber se o PMDB/MDB é de esquerda ou de direita. Tem sido, muitas vezes, as duas coisas simultaneamente. Tanto esteve com Lula como se aliou frequentemente à direita. A sua única “ideologia” visível, ao longo destes anos, foi sempre tentar ocupar espaços de poder a todo o custo.
O mais mais relevante sobressalto dentro do PMDB, em termos históricos, foi a cisão que deu origem ao PSDB, por emancipação da sua ala dita social-democrata, basicamente criada à volta de Fernando Henrique Cardoso. Muito polarizado contra o PT nos tempos de Lula e Dilma (candidaturas presidenciais de José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves), o PSDB acabou por ter uma forte “virada” conservadora e hoje, no Congresso, “namora” visivelmente o bolsonarismo, ao lado do DEM.
Nas últimas eleições, e apesar da derrota presidencial de Haddad, acabou por ser o PT, de entre os partidos tradicionais brasileiros o que melhor se sustentou, debaixo do “tsunami” que foi o efeito Bolsonaro. Essa “vitória”, que o fez ter a maior “bancada” na Câmara de Deputados, de pouco lhe serve, porquanto, no atual cenário político brasileiro, qualquer aliança com o PT é “tóxica”. O caminho das pedras que o partido de Lula vai ter de fazer, ainda por cima sem uma liderança personalizada evidente, deve ser longo.
Voltemos ao MDB que perdeu, pela primeira vez desde 1985, a sua tradicional liderança em termos de eleitos. Ontem, perdeu também a presidência do Senado, deixando assim de ter qualquer lugar institucional na estrutura central do Estado (recordo que tinha a presidência com Temer e a chefia do Senado, antes com Renan Calheiros e depois com Eunício Oliveira). Passará agora a fazer oposição a Bolsonaro? É cedo para dizer, até porque o equilíbro interno do partido vai depender muito das relações de forças que se gerarem nos diversos Estados - e a leitura que os observadores hoje fazem prospetivamente sobre isso não é unívoca.
Em síntese: Bolsonaro teve um bom resultado nas presidências do Congresso, e tem, à partida, um ambiente favorável nas câmaras legislativas, mas tudo vai depender do modo como se vier a articular com os partidos. E, até agora, o novo presidente, neste domínio, está a seguir uma orientação atípica. Amanhã explicarei porquê e a minha perspetiva, na segunda parte deste texto.
Publicado por Francisco Seixas da Costa à(s) 20:59 _ 03.fev.2019
Notícias do Brasil (2ª parte)
A representação parlamentar brasileira saiu altamente fragmentada das últimas eleições. Aproveitando essa circunstância, Bolsonaro terá sido aconselhado pelos militares a constituir o governo de uma forma diferente do que tem sido corrente no Brasil, isto é, não desenhar um executivo pletórico onde pudesse acomodar um conjunto de representantes de partidos que, somados, lhe pudessem garantir maiorias na aprovação de legislação. O seu governo é mais pequeno (embora maior do que inicialmente anunciado) e tem uma composição atípica. O modelo de suporte parlamentar que visa é diferente.
Vale a pena lembrar que, na tradição do parlamentarismo brasileiro, aos partidos do “setor governista” eram atribuídos ministérios que esses mesmos partidos enchiam com o seu pessoal político. Se o partido tinha muita força no Congresso, ocupava todo o espaço dos chamados “escalões” (níveis) de acolhimento de fiéis: eram os ministérios “de portada fechada”. Se se tratava de partidos mais pequenos, a sua ocupação dos ministérios era mais restringida: tinham de dar espaço, nos “escalões” inferiores, a pessoal indicado por outros partidos. Eram os chamados ministérios “de portada aberta”.
Essa prática era estendida, como modelos adaptados, à plêiade de empresas públicas, com particular interesse por postos de onde saíssem fortes “recursos”. Ficou em tempos célebre o modo como um patusco presidente da Câmara de Deputados, Severino Cavalcanti, oriundo do “baixo clero” (deputados menos importantes), eleito inesperadamente por virtude de um dissídio dentro do PT, reclamou para um seu apaniguado um lugar na Petrobrás, que esclareceu que tinha de ser “daqueles de fura-poço”...
Bolsonaro seguiu, ao que se diz por influência dos militares, um outro modelo, que agora se verá se conseguirá pôr a funcionar no futuro. Assim, além de colocar sete militares (!) em cargos governativos, e mais de 40 em lugares de topo da administração, optou por, na Câmara de Deputados, procurar uma aliança com os interesses organizados, em lugar dos partidos.
Assim, apoiou-se prioritariamente nas chamadas “bancadas” (frentes de interesses, que atravessam as linhas partidárias) mais representativas de setores conservadores e, em alguns casos, de direita muito radical.
É o caso da “bancada evangélica”, onde se acolhem os eleitos oriundos e financiados pelas poderosíssimas igrejas evangélicas (com uma agenda ultra-conservadora para a educação pública e política familiar, recusa do aborto, privilégio das relações com Israel, etc), a “bancada do boi”, com deputados protetores dos interesses de proprietários agrícolas (favoráveis ao desmatamento da Amazónia, à redução dos cuidados ambientais, com grande desprezo pelos interesses e direitos indígenas) e a “bancada da bala”, constituída pelos promotores de um alargamento da posse privada de armamento e, simultaneamente, com uma política ultra-securitária, favorável a uma repressão da criminalidade que, em alguns casos, poderia passar as barreiras legais mais elementares e civilizacionais. Há semanas, um relevante bolsonarista reclamava da dificuldade de fazer passar legislação que, em lugar da castração química dos violadores, autorizasse a castração “por facão”...
Na constituição do governo, acolheu, para além do seu novo partido PSL, uma única formação do núcleo tradicional de partidos brasileiros, sem surpresa o mais à direita - o DEM (ver história na 1ª parte). Raramente na história da democracia brasileira o DEM (que é um partido ausente de representação em muitos Estados brasileiros) havia conseguido ser tão poderoso: tem hoje três ministros, um dos quais, Onyx Lorenzoni, no decisivo posto de chefe da casa civil. E, como referi no texto anterior, tem agora a presidência das duas câmaras do Congresso: a Câmara dos Deputados e o Senado. Para um partido que, nesta eleição, viu reduzida fortemente a sua representação parlamentar trata-se de uma vitória indiscutível.
Um filósofo brasileiro ultra-reacionário, Olavo de Carvalho, que vive nos EUA e é uma espécie de guru de alguns setores próximos de Bolsonaro, terá também tido “direito” a indicar os nomes do ministro da Educação (um colombiano naturalizado brasileiro, que tem uma obsessão contra o método de alfabetização de Paulo Freire, um património e um orgulho para muitas gerações brasileiras), do ministro das Relações Exteriores e do consultor internacional do presidente.
O caso do chefe da diplomacia, Ernesto Araújo, é, provavelmente, o maior erro de “casting” de um governo onde eles não parece faltarem (o caso da ministra evangélica, indicada para a pasta da Família, Damares Alves, é uma fonte regular de episódios hilariantes).
Funcionário diplomático de nível baixo, o novo ministro das Relações Externas, um fanático anti-multilateralismo, negacionista das alterações climáticas, com uma cultura de extrema subserviência face aos EUA (que não é muito bem acolhida numa escola militar muito nacionalista e às vezes com um ligeiro tropismo anti-“yankee”), fez já uma série de “gaffes” que, ao que parece, terão levado os militares em torno de Bolsonaro a propor a criação de uma espécie de “conselho estratégico”, para regular as decisões com implicações externas mais relevantes.
Há uma tese a correr segundo o qual este bizarro ministro será utilizado para fazer o “dirty work” de “remoções” de chefes de missão menos agradáveis ao novo poder, como nomeações de diplomatas mais fiéis e ideologicamente “like-minded” com o novo poder e que, daqui por uns tempos, ele será “posto com dono” numa embaixada simpática e a chefia do Itamaraty será entregue a alguém responsável, com outro estatuto, capacidade e prestigio.
Duas notas para dois ministérios particulares e bastante poderosos - cujos titulares, não por acaso, acompanharam Bolsonaro em encontro de Davos - onde a impreparação manifesta do presidente fez passar uma humilhação ao Brasil.
Um superministério económico foi entregue por Bolsonaro a Paulo Guedes, um cultor da “escola de Chicago”, admirador do “choque” económico de Pinochet no Chile, restando ver quão longe conseguirá ir num processo intensivo de privatizações que se propôs desencadear, no que poderá vir a ter algumas reticências da área militar. O segundo importante super-ministério foi entregue ao juiz-vedeta Sérgio Moro, adorado pelos diabolizadores de Lula, que tem na sua pasta a estranha combinação da justiça com a ordem pública. Há muito quem pense que pelo sucesso, ou não, destes dois ministros passará muito o destino do governo Bolsonaro.
E chegamos, finalmente, aos militares. Aparentemente, a tropa tem um “droit de regard” muito forte sobre o novo governo. Devo dizer que nunca pensei que a sua influência pudesse ir tão longe, mas vai. Nos dias de hoje, essas figuras não eleitas, ungidas de uma espécie juízo de “neutralidade” patriótica, quase “sebastiânica”, constituiram-se como um elemento fulcral do poder político brasileiro. Estamos já quase numa espécie de “governo militar”, em modelo de “coabitação” democrática com os civis? Se não estamos lá, não estamos muito longe disso. Na estrutura governamental, dois nomes se impõem: os generais Augusto Heleno e Santos Cruz. O primeiro parece ser o “master mind” do governo, mas o segundo tem também forte prestígio. Parecem ser eles quem “define a linha” e, embora na reserva, quem faz a articulação com as chefias militares no ativo - que parecem verdadeiramente empenhadas no sucesso deste governo.
Mas há um terceiro nome, que a cada dia que passa tem vindo a ganhar mais evidência, mas também alguma polémica: é o vice-presidente Hamilton Mourão. Um filho de Bolsonaro confessava há dias que a escolha de Mourão para a vice-presidência havia sido feita para evitar um eventual processo de “impechment” de Bolsonaro. O raciocínio era simples: o general Mourão dera provas de ser um radical desbocado, atribiliário e cáustico, um ultra que trazia as piores memórias do regime militar. Assim, ninguém se atreveria a afastar Bolsonaro porque, se isso acontecesse, seria pior a emenda do que o soneto...
Ora Mourão, empossado que foi do cargo de vice-presidente, decidiu passar de Dr. Jeckill para Mr. Hyde. O seu discurso suavizou, deu mostras de compreensão perante o caso de um deputado de extrema-esquerda que se disse perseguido, teve uma linguagem contemporizadora para com a questão do aborto e, em vários outros dossiês, tem-se revelado, dia após dia, cada vez mais distanciado de certos aspetos mais radicais discurso do “bolsonarismo”.
Um líder evangélico fez já um video quase a insultar Mourão, o filósofo reaça Olavo de Carvalho, lá dos Estados Unidos, tem vindo a dizer em “tweets” cobras e lagartos do vice-presidente e a “famiglia” de Bolsonaro já deu claras e públicas notas de estar à beira de um ataque de nervos. O próprio presidente, no leito do hospital onde recupera dos efeitos do atentado, descontente com as liberdades auto-assumidas pelo seu vice, decidiu avocar, mesmo nesse estado físico, a plenitude dos poderes presidenciais.
Tudo isto a fim de evitar que Mourão continue a utilizar a presidência interina para mostrar estatuto, “gravitas” de Estado e um já indisfarçável tropismo para se sugerir como alternativa futura ao presidente. Ah! E, de caminho, o vice-presidente tornou-se a coqueluche dos diplomatas estrangeiros em Brasília, que correm a visitá-lo. Há dias, também recebeu uma delegação palestiniana à qual quase garantiu que a promessa de Bolsonaro a Netanyahu, de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, afinal pode não ser para levar a serio.
Enfim, neste novo e nóvel governo brasileiro, tudo aponta para que se esteja a “armar uma estrangeirinha” dos demonios.
Publicado por Francisco Seixas da Costa à(s) 04:29 _09.fev.2019: AQUI
Em conclusão: Bolsonaro vai ter o espaço todo para fazer o que bem entender. E assusta…
ResponderEliminarUma boa semana meu Amigo.
Um beijo.