quarta-feira, 10 de outubro de 2018

André Gil Mata_Cinema





"“Estamos sempre à procura de coisas que nos distraiam para não pensarmos em nós próprios”






O medo e o frio entranham-se e andam de mãos dadas. Entre janeiro e fevereiro de 2017, o realizador André Gil Mata enfrentou as baixas temperaturas do inverno na Bósnia para filmar a absoluta solidão de um homem no meio da guerra. Numa obra lenta e contemplativa, somos levados por paisagens nevadas que nos dizem que as noites não são apenas perigosas - são muito tristes. Há um velho que carrega às costas a memória e a loucura de todas as guerras enquanto guarda o terror nos olhos da criança que já foi. Apesar de tudo, continua a caminhar, continua a sua missão

No filme “A árvore” temos dois tempos. O tempo de uma criança, na Segunda Guerra Mundial, e o tempo de um velho, na guerra da Bósnia nos anos 90. No tempo desta rodagem, em 2017, a guerra ainda é palpável em Sarajevo?
Foi uma das coisas que mais me marcou. Tanto quando cheguei à cidade, como quando saí. Quando cheguei, teve um impacto que passa muito pela arquitetura e pelos edifícios, que ainda hoje têm os buracos das balas e dos projéteis. Vês edifícios completamente destruídos e isso tem um impacto muito grande. Cheguei num inverno que depois foi muito longo. Nevou até maio e esses meses para mim foram marcantes. Estava a chegar a uma cidade onde nunca tinha estado e sabia que tinha de lá passar os próximos três anos. Senti algum medo e alguma ansiedade, e o facto de o inverno ser assim tão rigoroso faz com que às 18h já não vejas pessoas na rua. Como sou noctívago, acabei por caminhar muito a essa hora e foi estranho ter a sensação de estar numa cidade que parecia não ter ninguém, quase como uma cidade fantasma. Cheia de neve e sem ninguém a não ser os cães. Lá há cães, não é como cá [Portugal] que são retirados da rua.
Sempre quis ter um cão no filme?
O cão não apareceu imediatamente na minha cabeça, mas a determinada altura tornou-se um elemento importante e o velho não seria o mesmo personagem sem o cão. Aquele velho teria de ter uma relação de sentimento por alguém e, como vivia isolado, essa relação teria de ser com um animal. Antes tinha muito medo de não conseguir filmar a Arna [nome da cadela], mas não foi difícil. Nós rodámos praticamente durante a noite e sempre que ela entrava os donos estavam presentes. E tínhamos uma regra: só o Petar, ator principal, é que falava com ela, para não dispersar a atenção.
Esta é a sua segunda longa-metragem em Sarajevo. Não é difícil fazer cinema numa língua que não se domina? 
A dificuldade prende-se mais com conhecer ou sentir os espaços, as pessoas. Não é tanto uma barreira linguística, mas sim uma barreira de afeto. Quando cheguei a Sarajevo pareceu-me quase impossível filmar. Depois, à medida que o tempo foi passando, essas barreiras foram desaparecendo. O facto de não saber a língua deu-me de certa forma uma liberdade maior, porque tive de delegar isso em alguém, um assistente que soubesse a língua e estivesse atento. Por um lado, deu-me uma liberdade muito maior para estar atento a outras coisas. Se fosse em português, com diálogos, estaria muito preso a essa questão. Acho que até me ajudou a dar liberdade e a confiar nos atores, confiar neles sem estar a impor-lhes a minha forma de como as coisas devem ser ditas. Já tinha sentido essa liberdade no ‘Como me apaixonei por Eva Ras’ [o primeiro filme que André Gil Mata realizou em Sarajevo] e voltei a sentir isso agora.
Os primeiros filmes do André são sobre geografias íntimas, que conhece bem. Podemos dizer que Sarajevo se tornou um desses territórios? 
Sim, Sarajevo tornou-se uma geografia íntima. Foi a única forma de conseguir viver lá aquele tempo [André Gil Mata passou três anos em Sarajevo a fazer doutoramento em cinema]. Mas sim, o ‘Como me apaixonei por Eva Ras’ é filmado num lugar que se tornou íntimo para mim, com uma pessoa que se tornou das mais íntimas na minha vida lá.


FOTO SANJA VRZIC

Este filme só podia ter sido rodado naquele local? 
Podia ter sido rodado noutro lado qualquer, mas para mim chegou um momento em que só fazia sentido ser rodado lá, porque eu não conseguia imaginar transportá-lo para outro lugar. Se calhar por essa razão de afetividade. Se fosse transportado para outro lugar, deixaria de ser aquele filme e passaria a ser outro.
Como encontrou aqueles atores?
O mais velho é pai de uma amiga minha. Não é ator. Em jovem foi realizador, depois isolou-se e neste momento é pescador na costa da Croácia. Pesca para ele e para os vizinhos. O miúdo é filho de amigos de amigos. Quando o filme terminou, disse-me que nunca mais faria cinema na vida, mas em Berlim, na estreia do filme, voltei a encontrá-lo e aí já estava com mais vontade de voltar [risos].
Durante o filme, o espectador apercebe-se da guerra apenas pelo som dos tiros e das bombas. Foi sempre essa a intenção ou chegou a pensar mostrar a guerra?
Na minha cabeça foi sempre assim. Acho que a questão maior é que a imagem - não só daquela guerra mas de todas as guerras - está muito banalizada. Hoje, se ligarmos o telejornal vemos imagens de guerra e o filme que eu tinha na cabeça não era um filme sobre uma guerra específica, mas mais a questão de como é que a personagem lida com uma guerra numa idade em que já passou por outra guerra e, se calhar, já nem acredita na espécie humana. De certa forma, o velho tem de levar com aquilo e aturar essa loucura da sociedade. E eu sempre tive a certeza que as únicas figuras que apareceriam seriam a mãe, ele criança, ele mais velho e o cão. Acho que assim conseguimos falar sobre esse estado, sobre essa loucura que é a guerra, sem dispersar.
E o espectador acompanha o personagem em silêncio durante grande parte do filme...
Sim, este é um filme sobre alguém que está só no meio da guerra. Se estás a tentar filmar essa solidão, é impossível que a pessoa esteja a falar, a não ser que esteja a falar com ela própria, mas isso nunca me passou pela cabeça.



Apesar dessa solidão, o velho recolhe vários garrafões porta a porta e depois segue em direção a uma fonte. Há aqui uma ideia de serviço à comunidade e de contacto com o outro, não há?
Sim. O que mais me marcou nos amigos que fiz em Saravejo, amigos que passaram pelo cerco da cidade ou que passaram pela guerra noutras cidades da Bósnia, é que as pessoas voltaram de repente a ter esse sentimento, ou essa necessidade, e precisavam umas das outras. De certa forma, durante a guerra, os vizinhos voltam a juntar-se. O que eu sinto é que nós já não conhecemos os nossos vizinhos nem falamos com eles. Chegamos a casa ao fim do dia e não temos qualquer relação com o espaço em que vivemos. Mas nos períodos críticos, as pessoas têm de se juntar para sobreviver. A minha ideia, se calhar um pouco ingénua, porque não vivi a guerra, é que eu posso fazer uma tarefa, tu outra e um vizinho outra. O sentido de comunidade para mim seria esse…. A tarefa daquele velho é ir buscar água e os vizinhos certamente teriam outras. Além disso, é difícil viveres em Sarajevo e as pessoas não te falarem sobre a guerra. Muitos dos amigos que fiz disseram-me que tinha sido o período mais feliz da vida deles. É estranho ouvir isso, mas chega uma altura em que começas a entender. A nível artístico nunca houve uma pulsão artística tão grande.
Tinha que ver com a intensidade com que viviam?
Sim, porque depois parece que nada interessa mais. Tudo deixa de fazer sentido, imagino eu, porque vives um período com uma intensidade tão grande que depois nada se equipara. A seguir, as pessoas são incapazes de produzir a esse nível. E certamente essa intensidade cria momentos que as pessoas nunca mais esquecem.



Há vários planos-sequência no filme. Qual era a intenção?
Tem que ver com a liberdade para te relacionares com o personagem. Na vida precisas de tempo para criar laços de afeto com alguém e no cinema o que podes trabalhar é essa questão de dilatar ou comprimir o tempo. As coisas têm de ser dilatadas - no sentido de fazeres demorar a ação mais tempo do que o tempo que ela realmente leva - para o espectador sentir uma relação mais profunda com o personagem.
Existe também um momento de sonho/pesadelo e aí reconhecemos uma veia tarkovskiana. 
Para mim, esse momento tinha de existir por ser um momento de transição: deixas de acompanhar o velho e passas a acompanhá-lo em criança. E o único lugar onde tens efetivamente dois tempos é através da memória ou do sonho. Para mim, aquele plano é quase uma reminiscência bela para o velho, que se lembra de si próprio em criança a andar de trenó perto da mãe e, simultaneamente, um pesadelo da criança por se lembrar da mãe que ele procura.
O filme é uma jornada de resistência e de resiliência. O espectador acompanha, no silêncio da sala de cinema, os personagens na sua solidão absoluta até chegarmos ao momento de encontro e de diálogo. Aí ouvimos: “resiste”, aconteça o que acontecer resiste, e sobrevive. Hoje ir ao cinema é também um pouco isso, não é? Uma escolha que se faz, sem telemóveis, sem conversas, um encontro absolutamente a sós com um filme? 
É sempre difícil para um realizador pensar no que nos leva a fazer as coisas. Mas há coisas em que acredito e que se calhar se refletem nos meus filmes. Uma dessas coisas surgiu na minha adolescência, pois tive a possibilidade de ir regularmente a um cineclube em Santa Maria da Feira. E esse era um momento em que sentia que me encontrava de certa forma comigo mesmo, no cinema. Quando digo encontrar é poder estar num sítio com pessoas à volta, mas com uma espécie de regras de jogo - sentar, não falar com a pessoa que está ao lado durante aquele tempo - e que te obriga a estar contigo mesmo. Acho que antes tínhamos isso através das religiões, no nosso caso íamos à missa e não podíamos falar. Estávamos só a ouvir e de certa forma o exercício era o de refletir sobre aquilo. De outra forma, mas na mesma linha, o cinema pode dar-te isso, mas sem impor nada. Confrontas-te contigo sem haver uma imposição do outro lado. E eu acredito mesmo nessa possibilidade de o cinema ser alguma coisa em que tu podes pensar nos erros todos que tens feito na tua vida - até porque se calhar estás a ver em espelho os erros de personagens que estão na tela e que te fazem pensar nas coisas. E se calhar é por isso que tens as salas de cinema vazias. Hoje ninguém quer ser, ou tem muito medo de ser, confrontado consigo mesmo. Estamos sempre à procura de coisas que nos distraiam para não pensarmos em nós próprios.
“A Árvore” (104min) está em exibição até 10 de outubro nos cinemas da Trindade (Porto), Nos Alma Shopping (Coimbra) e Ideal (Lisboa)."

in: jornal "Expresso"

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