sexta-feira, 23 de novembro de 2018

José Jorge Letria – “Os Mares Interiores”


Escreve-se para o desdém

Escreve-se para o desdém, para o vazio,
‘a espera de um dia, que pode ser o seguinte,
em que alguém dira’: valeu a pena.
Contam-se as traves do tecto, contam-se os versos,
do enamoramento e da guerra,
contam-se as ilhas e as paixões
e sobretudo tenta escrever-se, credulamente,
com a inocência de quem descobre petróleo
no caminho da hortelã e segue em frente,
indiferente ‘a riqueza e ‘a posse. Escreve-se
para o desprezo dos que amam outra escrita
e se enredam nela como as prostitutas
nas camas baixas do lucro garantido.
Escreve-se para não ser lido, para a morte,
para a  ironia dos que dizem: ate’ nem
era mau poeta, mas escreveu de mais.
Escreve-se para o bandolim e para a quimera,
para a queixa e para o ciúme, para depois
da morte, caneta apontada ‘a têmpora, ‘a espera
que alguém se levante e diga: aprendi
a gostar de poesia lendo o seu silêncio,
saboreando a sua dor. Escreve-se para
o gosto da aventura, como na prosa de Salgari;
com medo que um crítico chegue e diga:
esta’ fora do cânone, cede ‘a facilidade.
Escreve-se para não se ter poder, para o nada,
rosto caído sobre a página da adoração dos sons.
Escreve-se burlescamente, com os olhos postos
nas personagens que confundem com o musgo
nas casas assombradas pelo tédio. Escreve-se,
escreve-se sempre para o desdém,
para o fingimento das vozes que prometem
a glória na miséria dos livros. Escreve-se
para a alma que fica, muito depois
de deixarmos de escrever, de viver
estupidamente na solidão do que escrevemos.
E pode ser que num outro dia,
no dia seguinte, alguém abra o livro,
a gaveta, a caixa dos medos, sonâmbulo, e diga:
esteve aqui um poeta, sinto-lhe o cheiro,
a forma, o alvoroço da ausência, a raiva,
o desespero de não querer partir.
Muito respeitinho, que aqui morreu o poeta,
na mais perigosa curva das palavras
que matam, libertam e resgatam. Fim.

José Jorge Letria – “Os Mares Interiores”
(Prémio de Poesia de Barcelona – 2001)
Editora Teorema e José Jorge Letria, 2001,
pag.s 9 e 10    

Nota: Livro em estado novo, comprado ontem na estação do Oriente por 3 euros. 
        

2 comentários:

  1. Lindo texto.

    Arthur Claro
    http://www.arthur-claro.blogspot.com

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  2. Tenho a maioria dos livros de José Jorge Letria, pois aprecio imenso a forma como ele escreve. Este poema é muito belo.
    Uma boa semana, meu Amigo Luís.
    Um beijo.

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