quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Eugénia de Vasconcellos_Despedida

Despedida

DESPEDIDA

Podes ficar com os Teus exércitos
e suas espadas flamejantes,
arcanjos à frente,
anjos ao centro,
voz do Espírito adiante;
e com os Teus milagres,
protecções, provações, profecias;
e com a inamovível montanha -
a semente de mostarda, devolvo-Ta.
Pelo baptismo, renunciamos ao mal,
pela vida ao bem prometido.
A ti, e eu chamava-te Amor,
lugar onde amanheciam todos os prodígios,
devolvo-te os futuros cancelados
como qualquer outro voo.
Aos meus pares, amados iguais
neste pacto de sangue a preto e branco
a correr pelas páginas:
aprendi, para o bem, o que não vem,
e para o mal, a que renunciei,
sou ímpar, estou só.
Nada mais tenho a devolver
além do corpo de hoje, amanhã pó.
Fecho a porta. Entrego a chave.
Adeus.

Eugénia de Vasconcellos 

escrever e' triste_"a voz de quem escreve"


À memória do Escrever é Triste


Publicado em Setembro 23, 2018 por Diogo Leote




“Porque começou a escrever”? “Porque escreve”? As perguntas foram-me lançadas à cara, sem qualquer preparação prévia. A meio metro de mim, numa manhã em que os Tristes andaram a ser entrevistados num inspirador jardim lisboeta, um microfone e uma câmara aguardavam a minha resposta. Dois, três segundos de hesitação, e saiu-me: “por necessidade”, “porque a minha vida paralela não podia continuar aprisionada num recanto fechado e inacessível da minha cabeça”.


Isto, dito assim, até pode parecer que tinha uma vida dupla, que, fora de portas, e do alcance da família e dos amigos, ia ali à cabine telefónica mais próxima mudar de roupa e vestir a pele de personagens que guardavam segredos inconfessáveis. E quem o pensar não anda longe da verdade. Desde que me lembro de existir, alimento uma vida paralela onde vivo vidas de outros. Desde o primeiro dia em que me contaram uma história, assentou arraiais no reduto mais privado da minha intimidade uma existência paralela, que tem lugar num mundo de fingimentos e fantasias, e que corre a par da sucessão de atos que faz o meu dia-a-dia.


Ao que julgo saber, isso não fez de mim um alienado anti-social, ou um hipócrita em quem não se pode confiar, e muito menos um pobre infeliz à procura de satisfação e realização em identidades forjadas. Isto porque todas as vidas paralelas que vivi e continuo a viver são as que a ficção me dá. As que histórias empolgantes, personagens arrebatadoras e lugares de maravilhamento me trazem. E que, apesar de imaginadas, inventadas, fantasiosas, acabam invariavelmente a cruzar-se com a minha rotina de acontecimentos diários. O modo como se cruzam as histórias a fingir com as verdadeiras, o efeito que as primeiras provocam nas segundas, é matéria que não cabe aqui, num texto de meia dúzia de linhas. Até porque, ao longo das dezenas de textos que deixei no Escrever é Triste, não fiz outra coisa senão a de chamar a atenção – umas vezes de megafone na mão, outros sussurrando ao ouvido, como as circunstâncias impunham – para o poder transformador das palavras, das imagens e da música de outros. Eu disse transformador, podia ter dito redentor, inspirador, enriquecedor.


No meu caso particular, podia ter dito salvador. Não fossem as histórias imaginadas de outros, não fosse a minha vida paralela, a minha outra vida pouco ou nenhum sentido teria. Sem essas histórias, não teria, provavelmente, conhecido muitas das pessoas mais importantes da minha vida. Não teria tido a inspiração e a coragem para tudo aquilo de que me orgulho. Não teria dado aquele passo decisivo que tantas vezes faz a diferença nas nossas escolhas. E, provavelmente, outros não dei porque me faltou o impulso de tudo aquilo que ainda não li, que não vi, que não ouvi, que é quase tudo.


Onde surge o “porque escreve?” lá de cima, onde surge o Escrever é Triste nesta história de vida, torna-se fácil de perceber. Sem a escrita, a do Escrever é Triste sobretudo mas também a de todas as que o antecederam, sucumbiria como Sherazade se finaria se não tivesse histórias para contar. Sem a escrita do Escrever é Triste, não poderia devolver ao mundo tudo o que o mundo de ficção me trouxe, que foi quase tudo do que sou. Não conseguiria libertar a minha consciência do peso que foi e é guardar só para mim os segredos e mistérios de décadas de uma vida dupla.


Agora, é tempo de o Escrever é Triste dar lugar a outras escritas. Ficará, para sempre, com lugar cativo no sítio onde a estrada da minha vida terrena se cruza com as alamedas de acesso reservado (quase sempre sombrias, porque eu sempre fui de preferir “as vozes sofridas e os gritos de raiva, ou os sons negros e abafados, ao fogo de artifício dos refrões fáceis”) a que a ficção, e imaginação que dela nasce, me levam. Em nome de todos os que fizeram o Escrever é Triste, agradeço a atenção com que nos leram ao longo destes últimos sete anos. À nossa modestíssima escala, esperamos ter feito despontar ou crescer algumas vidas paralelas por aí. Até breve."


Nota sobre esta partilha:


Obrigado ao blog, agora DESCONTINUADO, "escrever e' triste...sempre", e ao autor deste magnifico texto - Diogo Leote - que expressa o muito que eu próprio penso e que nao saberia dize-lo de forma tao eloquente.

AQUI: Novo Blog_"Pagina Negra"


lm_27.set.2018

sábado, 22 de setembro de 2018

Aline Frazão_novo disco



"Aline Frazão leva-nos para dentro da chuva










A cantautora angolana lançou esta sexta-feira o seu quarto álbum, que, embora tenha os pés entre o Rio de Janeiro e Luanda, atravessa o mundo inteiro.

Mariana Pereira
21 Setembro 2018








Aline Frazão.
© Fradique


Foi numa dessas noites de dezembro último, época marcada pelo regresso de Aline Frazão a Angola, seu país natal, que ao ler os últimos dois parágrafos do livro Como Se o mundo não Tivesse Leste, do seu conterrâneo Ruy Duarte de Carvalho, o velho personagem Adriano Kapiapia como que a agarrou pela roupa e a levou para dentro da chuva.


O que é que isso significa? Significa que ela, que então trabalhava no disco de voz e violão hoje lançado, transpôs para canção o que ali estava escrito. "Para mim estava tudo ali, tudo aquilo de que andava à procura. Até é comovente falar sobre isso, porque a gente esquece-se de estar atento", explica ao DN numa manhã bem cedo, sentada no café Luanda, nome tão a propósito, agora que, depois de 10 anos fora, essa voltou a ser a sua cidade, e com mais vida cultural do que nunca, "onde à terça e à quarta-feira se tem de escolher onde ir", tantos são os lugares onde a vida pulsa.


"Toda a descrição final desse personagem é quase a descrição da atenção plena, desse homem, desse velho, nesse lugar no meio do nada, no mato, a conseguir ler a humidade do ar, a mudança das nuvens, a cor das montanhas, o cheiro da terra, sentir a chuva chegar. Essa sabedoria que faz que ele seja aquilo tudo, todos aqueles elementos estão dentro dele e ele está fundido com todos, com a vida, é como se ele fosse igual a ela própria. É uma imagem muito potente, muito inspiradora". E depois recita aqueles agora versos da canção Kapiapia, que canta com Luedji Luna: "É mundo e se é mundo progride em silêncio porque é o silêncio que governa tudo. Está dentro da chuva."


Falamos então de Dentro da chuva, álbum de voz e violão, formato que a autora de Insular (2015) ou Movimento (2013), hoje com 30 anos, há muito queria gravar. É o seu quarto álbum. "Num contexto de muita demanda, muito ruído, barulho, de certa forma esse olhar para dentro, esse despir da canção é uma mensagem importante. [É um disco] de menos elementos, de introspeção, de menos é mais."


"Acho que a música é um balão de oxigénio"

O facto de ter deixado para trás Lisboa e a sua banda também fazia daquele um momento mais solitário e, por isso, propício a este formato. A voz e a guitarra ficam mais despidas naquelas canções, cuja maioria Aline também escreveu. Nelas percebe-se uma certa geografia pessoal, desde logo, claro, em Um Corpo sobre o Mapa (música de João Pires, dos Cordel), com as suas passagens por Barcelona, Lisboa "para não voltar" ou até Zanzibar. Mas não é disso que a cantautora fala quando se refere à exposição que este formato implica."



Aline Frazão.
© Fradique
in:"DN"

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Um "filme" português ou, como a Historia se escreve.



O reencontro da filha e do pai que Salazar e Mao separaram


Vera Wang era filha de um chinês e de uma portuguesa. Com o pai preso na China, refugiou-se no Japão. Conheceu lá Franco Nogueira, futuro MNE de Salazar, e casaram-se. Só depois do 25 de Abril conseguiu rever o pai. Quem conta agora a história é Aida, a filha.



Leonídio Paulo Ferreira16 Setembro 2018 — 06:32
in: DN


1 / 6

Franco Nogueira, Vera Wang e a filha Aida.
Foto Arquivo DN





Aida Franco Nogueira mostra-me a foto dos avós maternos. Uma lindíssima jovem portuguesa e um atraente diplomata chinês, com o cabelo puxado para trás graças à brilhantina, que tinha vindo em missão a Lisboa. Otília Machado Duarte e Wang Shuyao. Conheceram-se numa festa, dançaram toda a noite, apaixonaram-se e casaram-se, alheios à diferença de culturas, embora ele ser católico tenha facilitado o sim. O retrato a preto e branco, agora protegido por uma moldura de vidro, exibe um pequeno rasgão, como que a relembrar que passou quase um século desde aquela inesperada paixão em Lisboa na década de 1920 que acabou por se transformar numa história trágica de separação, com a política a ter muitas culpas.

Otília Machado Duarte e Wang Shuyao, pais de Vera Wang.

© Arquivo família Franco Nogueira

Apanhado na China pela invasão japonesa e pela guerra civil entre nacionalistas e comunistas, o casal teve de se separar. Wang foi mesmo preso, mas ainda conseguiu enviar Otília e as duas filhas, Vera e Teresa, para o Japão, como refugiadas. Seguiram-se décadas de separação, e Otília, professora de Francês, morreu sem nunca reencontrar o marido. Vera, a mais velha das filhas, foi quem um dia conseguiu ir a Xangai rever o pai, já muito frágil. Como o destino fez que a luso-chinesa se casasse com Alberto Franco Nogueira (que viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros), enquanto Salazar e Mao viveram e Portugal e a China estiveram de relações cortadas, nada pôde ser feito. Foi preciso acontecer o 25 de Abril e voltarmos a ter representação diplomática em Pequim para que uma filha e um pai separados há 35 anos se revissem.

"A minha mãe estava emocionadíssima com a viagem à China. Mas ela, com a dignidade habitual, nunca mostrou exuberância nos sentimentos, percebe? Nunca chorou, nunca riu, mas estava emocionada, claro! E eu, à pressa, arranjo dois álbuns das minhas filhas - o da Filipa foi um bocadinho maior porque ela já tinha 14 meses e mais fotografias do que a Joana que nascera havia três meses. A minha mãe levou em 1981 esses álbuns para mostrar as bisnetas. Ele nunca as conheceu, nem a mim", conta Aida, sentada num sofá numa salinha cheia de fotografias de família, várias dos já três netos. Numa estante alguns livros de encadernação antiga que pergunto se eram do pai, advogado como ela, mas que afinal pertenceram ao avô paterno, juiz. A conversa é num sétimo andar no Restelo, no mesmo prédio onde Alberto Franco Nogueira e Vera Wang Franco Nogueira viveram.
Pai e filha falavam em mandarim

É um tema delicado de conversa para Aida. A voz por vezes embarga-se e os olhos chegam a lacrimejar. A mãe morreu há poucos dias, o pai faria 100 anos neste dia 17 (e vai haver uma cerimónia no Ministério dos Negócios Estrangeiros). Diz-me que quase tudo o que está a contar foi o que ouviu da mãe, que nem sempre sabe as datas certas. Agradeço-lhe ter aceitado contar o episódio do reencontro de Vera Wang (é assim que Aida acha que faz sentido a mãe ser referida nesta reportagem) com o pai chinês, depois de uma hesitação há quase três anos quando a contactei pela primeira vez depois de descobrir a comovente história no livro Em Torno da China, as memórias diplomáticas de João de Deus Ramos. Como primeiro diplomata português nessa Pequim capital da República Popular da China, chegado em 1979, João de Deus Ramos esteve com Vera e o pai. "Um senhor muito distinto, mas que evidenciava claramente que a vida tinha sido dura para ele", relembra agora o embaixador, figura importante nas negociações para a transferência de Macau para a China em 1999.

"Nós nunca pudemos comunicar com o meu avô e o meu pai, sobretudo no período em que foi ministro, teve de ter todas as cautelas para não se fragilizar nem a ele nem ao país. Mas às vezes, chegadas não sei de onde, com imensos carimbos, recebíamos cartas do meu avô. Tinham conselhos para a minha mãe, mas não sei bem o quê, estavam em chinês. Eram baseadas na filosofia chinesa de vida", relata Aida, que conta que a mãe falava cinco línguas, incluindo chinês e japonês. No livro de memórias, João de Deus Ramos diz ter conversado em francês com o antigo diplomata da República da China e que ficou surpreendido por pai e filha falarem em mandarim.




Vera em criança, na Bélgica.

© Arquivo da família Franco Nogueira

Aida pede-me desculpa para atender um telefonema. Está a preparar a missa de 30.º dia da mãe. Durante a conversa o telefone dá sinal mais algumas vezes. Ainda há gente a querer apresentar condolências. Como mulher do mais emblemático ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, Vera Wang era uma figura muito conhecida, mas a filha gosta que se lembrem dela não só como a viúva de Franco Nogueira mas também como a fundadora da Academia de Música de Santa Cecília. Mostra-me alguns álbuns de família. Num deles, de folhas já a soltar-se, está uma foto de Vera, talvez com uns 3 anos (nasceu cá em 1927).
Uma luso-chinesa em Tóquio

Depois de se casar em Portugal, o casal Wang foi para a Bélgica. Ele era diplomata da República da China, fundada por Sun Yat-Sen e depois presidida por Chiang Kai-shek. Na derradeira guerra civil chinesa, já depois da Segunda Guerra Mundial, o generalíssimo foi derrotado por Mao Tsé-tung e refugiou-se em Taiwan em 1949, onde continuou a reivindicar ser o legítimo governante de toda a China. Ainda hoje a pequena ilha aloja a República da China, mas os nacionalistas do Kuomintang estão na oposição e há um crescente sentimento independentista na população, que apesar de ser de cultura chinesa aprecia o sistema democrático que ali vingou depois da morte de Chiang. Os líderes de Pequim só admitem, porém, a solução da reunificação, como aconteceu com Macau, portuguesa desde o século XVI, e com Hong Kong, colónia britânica de 1841 a 1997.

Há num dos álbuns muitas fotografias de Aida, tiradas em Richmond Park, quando Franco Nogueira esteve colocado como diplomata em Londres no final dos anos 1950. Aproveito para pedir a Aida que me conte como se conheceram os pais, que é outra das histórias míticas da nossa diplomacia, durante muito tempo relembrada por quem fazia carreira no Palácio das Necessidades. Ri-se. É uma recordação feliz, que lhe agrada contar um pouco como terá ouvido tantas vezes contada pelo pai e pela mãe: "O meu pai é colocado no Japão em 1946, como representante de Portugal junto do alto-comando liderado pelo general MacArthur. Na altura os Estados Unidos ocupavam o Japão, que em agosto de 1945 se tinha rendido depois das bombas atómicas. Ele vai alojar-se em Tóquio no hotel onde viviam os estrangeiros não americanos. E ninguém fala nada que ele entenda e vice-versa. Mas percebem que é português e vão buscar a minha mãe. E aparece ela e a minha tia pequenina, com 10 anos ou coisa parecida. É no Japão que começa o amor deles e no Japão casam-se e ficam mais oito anos." Mas faltava a autorização de Salazar para que um diplomata pudesse casar-se.
O sim de Salazar ao casamento

"Houve uma peripécia: o meu pai, como diplomata português, não podia casar-se com quem lhe apetecesse. A autorização estava difícil porque naquela altura o meu pai não tinha nenhum contacto com Salazar, não o conhecia. A autorização é pedida, mas demora. Salazar exigiu ver uma fotografia da minha mãe porque alguém terá dito que era uma jovem comunista, revolucionária e aventureira e que não devia ser dada a autorização. O Salazar, com aquela calma dele, pede para ver a fotografia e quando a viu autorizou o casamento. Simplesmente, a minha avó Otília estava, por causa da demora, a tratar da viagem de regresso a Portugal, dela própria e das filhas. A viagem veio e as três embarcaram para Portugal, a caminho primeiro de Macau e, num dos portos em que o navio atracou, chega de repente um telegrama com a autorização do casamento e a minha mãe pegou nas suas coisas e voltou para o Japão. Só vêm para a Europa oito anos depois. Regressam para um posto para Londres e ficam aqui pouco tempo - o tempo de eu nascer, porque eu nasci aqui. Depois foram para Londres, tinha eu 9 meses", acrescenta Aida, hoje com 63 anos. Portanto, Vera, que saíra de Portugal com uns 3 anos, regressa mais de 20 anos depois. "Não tinha qualquer memória do que era Portugal e quando chega o português dela não era muito bom, apesar de já estar a melhorar. Mas o hábito dos meus pais era falar em inglês. Só mais tarde é que começaram a falar em português. E quando o meu pai se torna ministro dos Negócios Estrangeiros e ela acaba por ter um protagonismo público, aí já fala português corretamente."




Beijo de Aida a Franco Nogueira, quando o pai era diplomata em Londres.

© Arquivo da família Franco Nogueira

Ministro entre 1961 e 1969, com Salazar e depois, por pouco tempo, com Marcelo Caetano à frente do governo, Franco Nogueira teve de lidar com um período de grande isolamento internacional de Portugal, que se esforçou por contrariar, sobretudo junto dos países da NATO. No arquivo do DN são muitas as fotografias suas com líderes internacionais, destacando-se uma na Casa Branca com John Kennedy, a 7 de novembro de 1963, duas semanas antes do atentado em Dallas. Considerado um liberal na juventude, Franco Nogueira foi-se tornando mais conservador ao longo dos anos, mas mesmo Francisco Seixas da Costa, da geração de diplomatas que surgiu logo a seguir à revolução, reconhece o brilhantismo intelectual. E, diz ao DN, valoriza o antigo MNE por ter sabido rodear-se "para a "missão impossível" que fora defender o patético colonialismo tardio de Salazar, de muitos daqueles que eram, de facto, grandes funcionários das Necessidades, a esmagadora maioria dos quais viria a transitar, com escassos sobressaltos, para o tempo democrático". Já o antigo ministro chegou a ser preso depois do 25 de Abril e Aida recorda-se de ser acordada em casa por militares com G3 em punho. "Senti o frio do cano da arma encostado à pele", diz.




Franco Nogueira na Casa Branca com Kennedy.

© Arquivo DN
Fato para o verão, outro para o inverno

Constrangido durante uma década de tentar qualquer contacto com a China comunista enquanto chefiava a diplomacia do Estado Novo, já em 1979, quando João de Deus Ramos se instalou em Pequim, nada impedia Franco Nogueira de aceitar ajuda dos antigos subordinados (como era o caso do encarregado de negócios com cartas de gabinete) para tentar encontrar o sogro. E foi assim que chegou a licença das autoridades chinesas para a viagem de Vera Wang. Mao já morrera e Deng Xiaoping estava prestes a iniciar as reformas económicas, mas ainda era uma China pobre aquela que a luso-chinesa vai encontrar quando viaja em 1981, lá ficando um mês.

"A minha mãe contou-me algumas coisas bastante chocantes. Aliás, quando fez a mala ela sabia que o pai não tinha nem dinheiro nem roupa nem casa, não tinha nada, porque na China era assim, tinha um fato para o verão, um fato para o inverno, um pijama para o verão e um pijama para o inverno, acabou", relembra Aida. Que prossegue com o relato daquilo que viu e ouviu: "Era arriscado, mas mesmo assim, à cautela, levou algumas peças, uma camisa, umas calças, um pijama, mas nada de valor. Levou três ou quatro peças de roupa. Levou aquilo com que podia ajudar o pai sem ser ostensiva, sem ser revistada e presa também. Depois, para não ser muito ostensiva, teve muito cuidado nas roupas que levou, umas simples calças e uma blusa, de uma cor só. Mas sentiu a mudança dos tempos. Apesar de tudo ela sentiu que a ajudaram, se eles não quisessem que ela fosse lá não deixavam." Foi mais ou menos um mês que a filha passou na China com o pai. Conta ainda Aida que o avô tinha voltado a casar-se e que tinha uma filha jovem, engenheira. E que "ter conseguido ser professor, depois de todas as humilhações sofridas pelos letrados durante a Revolução Cultural, significava que se tinha conseguido reerguer". Mostra-me mais algumas fotos da mãe. "Era bem bonita, não era?" As fotografias respondem por si, mas quem conheceu Vera Wang fala também de uma autoridade natural. João de Deus Ramos recorda-se de um jantar em Lisboa em 1968, na legação da República da China, em que "a mulher do ministro, num tom firme mas cândido", o aconselhou "a usar os pauzinhos chineses". E recorda que Salazar tinha grande admiração por esta pequena luso-chinesa de personalidade forte a ponto de se "darem como deus com os anjos", sublinha o antigo administrador da Fundação Oriente.




Franco Nogueira, já MNE, e Vera Wang numa visita a Moçambique.

© Arquivo DN

Hoje com 76 anos, o nosso diplomata pioneiro em Pequim diz que se recorda bem do pai de Vera, que surgiu vestido tão pobremente que pediu desculpa. Pediu para ver os livros de João de Deus Ramos "e confessou que há muito não via tantos livros ocidentais". A ida à capital foi uma exceção, pois a maior parte do tempo foi passada em Xangai, onde, sublinha Aida, a mãe foi obrigada a procurar um hotel pois não a deixaram ir para a casa onde o pai vivia.

A despedida de pai e filha foi definitiva ao fim daquele mês de reencontro e muitas emoções. Wang Shuyao, que já deveria andar na casa dos 80, morreu "talvez uns cinco anos depois", diz Aida, que passou a receber cartas em inglês. Numa delas, que me relê em voz trémula, o avô aconselha-a "a viver perto da água e a olhar para o mar".

A notícia da morte "veio com fotografias dele morto. Alguém comunica, não se sabe bem quem, eu pelo menos não sei. Alguém comunica e manda umas dez fotografias da cerimónia em que ele está morto numa bancada de pedra." Não é coisa para se pôr num álbum de família, mas Aida conta que estão guardadas, "muito bem guardadas".


quarta-feira, 5 de setembro de 2018

opinião_manuel alegre



"Não consigo ficar calado"

"Sete séculos depois ardeu o pinhal de D. Dinis, o das "naus a haver", morreu o verde pinho do rei poeta. Dá vontade de chorar e não consigo ficar calado. É um símbolo triste da falência do Estado, fruto de décadas de desleixo, de incompetência, de amiguismos múltiplos, da submissão do interesse geral a interesses instalados e da capitulação perante lógicas que não são a dos fins superiores do Estado e do país. Olho o rosto do camponês publicado na primeira página do Público e não consigo ficar calado. É o rosto de séculos de pobreza, o rosto do Portugal esquecido e abandonado pelo próprio Estado democrático, o rosto daquela parte do país que foi deixada para trás quando a agricultura foi vendida a Bruxelas a troco de fundos para auto-estradas que hoje levam a lado nenhum. Um Portugal que já só existe nas páginas de Aquilino e de Torga. Vi as imagens televisivas, aldeias destruídas, casas a arder, homens e mulheres a defender com as próprias mãos os seus bens ou o pouco e quase nada que lhes resta. Vi outra vez automóveis calcinados, ouvi as notícias dos mortos e não consigo ficar calado. Porque passou a haver cada vez mais incêndios desde que foram extintas as quatro regiões militares e os governadores civis a quem cabia a respectiva prevenção e coordenação? Não sei. Só sei que se fizeram grandes reformas e que os meios de combate aos fogos foram saindo das mãos do Estado, entregues ou partilhados com empresas privadas. Não sou um especialista, mas é preciso corrigir o que não deu bons resultados. Vi o meu país a arder, sei que morreram cem pessoas em quatro meses e não consigo ficar calado. Talvez a culpa seja minha, porque fui deputado e participei na construção de uma democracia que a páginas tantas se distraiu e não soube resolver problemas estruturais, como o reordenamento do território e das florestas, assim como o combate ao abandono e à desertificação do país. Não se ouviu como se devia ter ouvido o arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles. É certo que por vezes protestei, mesmo contra o meu próprio partido. Mas não foi suficiente. Não consigo calar-me e sinto-me culpado. Já disse que não sou um especialista. Mas acho que os meios de combate aos incêndios devem passar para o Estado. Os meios aéreos para a Força Aérea Portuguesa. E é óbvio que se torna urgente a criação de um corpo nacional de bombeiros profissionais organizado segundo normas e regras de tipo militar, como de certo modo já acontece em Espanha. Vai ser preciso enfrentar preconceitos e interesses instalados, mas este é um tempo em que é preciso coragem para tomar decisões para que o Estado não se demita de exercer as suas funções de soberania e seja capaz de proteger o território e garantir a segurança dos portugueses."
in: jornal DN





terça-feira, 4 de setembro de 2018

sobre a memória_artigo DN


"Lembrar, esquecer, inventar: que sabemos da memória?



De cada vez que nos lembramos de algo alteramos essa memória, diz um ramo da investigação recente; outro afiança que memórias, pelo menos as olfativas, podem passar de pais para filhos. Mergulho na complexidade de um mecanismo que nos permite recordar -- e esquecer - e que conforma e certifica a nossa identidade individual, mas também a da espécie: sem memória, que seria da consciência do eu?








1 / 2

Fernanda Câncio - 03 Setembro 2018 — 23:07


Numa série recente de TV, Westworld, a memória é o tema principal. A ação passa-se num enorme parque de diversões onde máquinas de aparência humana - os anfitriões - vivem uma narrativa situada no faroeste. A cada um desses androides é conferida uma história pessoal com uma memória associada, mas essa memória é supostamente apagada no fim de cada ciclo de narrativa - geralmente quando são mortos, já que os humanos que visitam o parque podem matá-los e fazer-lhes tudo o que lhes apeteça, enquanto os anfitriões não podem fazer mal aos humanos. No fim de cada "ciclo", são reparados e a sua memória original reinstalada. Mas algures fica qualquer coisa - e a partir daí, da memória traumática que se vai acumulando dessas sucessivas "vidas", nasce a consciência de si e do papel que estão a desempenhar, e a revolta.

A questão da série, como de outras ficções como Blade Runner (1982), na qual o caçador de replicants (outro nome dado aos androides) os distinguia precisamente pela deficiente memória de infância, quando lhes perguntava pela mãe, é o que distingue o humano - o que é ser humano, ou como se é ou não humano. E de como a memória, como noção da história de vida e da individualidade, desempenha um papel primordial nisso. Uma espécie de "lembro-me, logo sou".

O argumento de Westworld é de Jonathan Nolan, irmão do cineasta Christopher Nolan, cujo segundo filme, com argumento de Jonathan, é o extraordinário Memento (2000), sobre um homem que perdeu a capacidade de criar memórias. A personagem de Leonard Shelby, interpretada por Guy Pearce, lembra-se - ou julga lembrar-se - de tudo até ao momento em que uma pancada na cabeça o tornou incapaz de formar novas memórias. Tem apenas alguns minutos de memória das coisas, até a perder. Ou seja: se entrar num café e pedir uma bebida, passados três ou quatro minutos já não sabe o que está ali a fazer, se já pediu, se já tomou alguma coisa. Para lidar com essa afeção, tira polaroides e toma notas - tem uma polaroide do seu carro, por exemplo, para o reconhecer --, mandando tatuar no corpo os factos mais importantes. O twist do filme, que é todo ele um twist por ser filmado em reverso, algo que só percebemos no fim, é que Shelby tira partido da sua própria afeção para se enganar a si mesmo, criando narrativas alternativas para justificar as suas ações sem sofrer dilemas morais. Algo que, naturalmente, pode ser visto como uma metáfora da forma como regemos a nossa memória - o que lembramos e esquecemos, ou como criamos a nossa própria história de modo a justificarmo-nos, ou seja, a sobreviver. Ou seja, de como todas as vidas são uma obra de ficção, na qual cada um de nós tem de acreditar, quer acreditar.


O homem que esquecia tudo

O grande feito de Memento, como muitos já disseram, é fazer o espetador comungar da afeção do protagonista: não há uma narrativa fluida, só a aflição de fragmentos que tentamos unir para encontrar um sentido, descobrindo que estamos sempre a enganar-nos sobre o que está a acontecer e obrigando-nos assim a refletir sobre o processo da memória...

Definida como a complexa forma como adquirimos, armazenamos, retemos e recuperamos informação, ou, como diz o psiquiatra Frederico Simões do Couto ao DN, "a capacidade de reter e utilizar secundariamente a informação", a memória divide-se em vários tipos. Há aquelas que duram apenas alguns segundos, e têm a ver com o darmo-nos conta de informação sobre o que nos rodeia (a chamada memória sensória); seguem-se as memórias de curta duração, que duram de 20 a 30 segundos; e finalmente as memórias que podem durar a vida toda, ou de longa duração. Esta classificação, conhecida desde 1968 como o modelo de memória de Atkinson-Shiffrin (cientistas americanos, ambos de primeiro nome Richard), cruza-se com outros conceitos de psicologia e psiquiatria, como o consciente e o inconsciente, correspondendo o primeiro à memória de curta duração e o segundo à de longa duração.

Mas como funciona isto exatamente? Sabe-se que diferentes áreas do cérebro estão envolvidas. O hipocampo é aquela em que as novas memórias se formam. Danos no hipocampo resultam na situação do protagonista de Memento; é também lá, frisa Frederico Simões do Couto, que se iniciam os problemas nos pacientes de Alzheimer, pelo depósito de uma proteína que bloqueia a capacidade de criar novas memórias; daí que comecem por perder a memória de curta duração, continuando a lembrar-se de coisas antigas (também essas se perdem com o avançar do processo degenerativo, até que a pessoa deixa completamente de saber quem é e de ter consciência de si).

A descoberta ou prova deste facto deveu-se a uma tragédia, a de Henry Gustave Molaison. Nascido em 1926 no Connecticut, começou a sofrer de crises de epilepsia aos 10 anos, provavelmente após uma queda de bicicleta. Em 1953, um médico sugeriu uma intervenção cirúrgica radical. Molaison concordou e foi-lhe extraído quase todo o hipocampo, assim como outras partes do cérebro, incluindo a amígdala. As crises de epilepsia melhoraram e, incrivelmente, Molaison conservou a sua personalidade e capacidade cognitiva em geral. Mas deixou de ter capacidade de formar novas memórias, como o protagonista de Memento. Os médicos responsáveis pela operação escreveram na altura: "Ele não consegue lembrar-se de onde é a casa de banho nem de coisa nenhuma do quotidiano no hospital." Podia ler a mesma revista todos os dias, por exemplo, achando que nunca a tinha lido: era um caso puro de amnésia anterógrada (em contraste com a amnésia retrógrada, em que o esquecimento diz respeito aos eventos anteriores a um trauma, mantendo-se a capacidade de criar novas memórias).

Praticamente incapaz de trabalhar, dependente de notas para se lembrar de tudo - se tinha tomado banho, se tinha almoçado, se a mãe e o pai ainda eram vivos ou já tinham morrido - Molaison, que não conseguia ter noção da sua idade por não ser capaz de se dar conta da passagem do tempo, foi para o resto da vida uma espécie de cobaia de laboratório, uma experiência viva sobre o funcionamento do cérebro. Quando morreu, em 2008, aos 82 anos, o órgão foi-lhe extraído para mais estudo.


Proust era um neurocientista?

Mas voltemos à forma como guardamos a informação. Saul McLeod, investigador em psicologia da Universidade de Manchester, explica em "Os estádios da memória - codificação do armazenamento e recuperação" como guardamos a informação: "Há três formas de a codificar. A visual (imagem), a acústica (som) e a semântica (significado)." E dá um exemplo, o de um número de telefone. Se o vemos na nossa memória, usámos a codificação visual; se o repetimos para nós próprios, estamos a usar o modo acústico. Segundo McLeod, a codificação acústica é a mais usada na memória de curta duração. Já na memória de longa duração, cuja "consolidação" ou "construção" demora algumas horas, a regra é a codificação por significado. Mas também pode usar-se aí a codificação visual e acústica. Há mais diferenças de codificação entre os dois tipos de memória: a de curta duração é guardada e recuperada "em sequência", a de longo termo por associação. E, mais uma vez, exemplifica: "Se numa experiência dermos a um grupo de pessoas uma sequência de objetos para memorizar e a seguir lhes perguntarmos qual o quarto objeto, eles terão de rememorar a sequência para responder; quando vamos ao primeiro andar buscar uma coisa e chegamos lá e não nos lembramos do quê, podemos recordar-nos se voltarmos ao sítio onde estávamos quando decidimos ir buscar a coisa."

Ok. Mas, e para usar um exemplo clássico e misterioso de funcionamento da memória, como é que um cheiro ou um sabor - como o do pedaço de madalena molhado em chá no romance Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, nos projeta num tempo e lugar que julgávamos esquecidos? Em Proust era um neurocientista, de 2007, o autor Jonah Lehrer, com formação em neurociência, procura demonstrar que aquilo que o romancista francês e outros contemporâneos descreviam na literatura foi décadas mais tarde "provado" pela ciência. No caso, como defendido em 2002 pela psicóloga Rachel Brown, que o olfato e o paladar são os únicos sentidos com ligação direta à área no cérebro onde são armazenadas as memórias de longa duração.

Esta informação ganha densidade face a uma descoberta (ou devemos chamar-lhe hipótese?) recente, a de que determinadas experiências, nomeadamente relacionadas com o olfato, stress e trauma, podem passar de pais para filhos. Uma equipa da Emory University (Atlanta, EUA) treinou ratos para temer um determinado cheiro, associando-o a choques elétricos. Tendo permitido a seguir que esses ratos se reproduzissem, a equipa detetou respostas semelhantes ao odor em causa na primeira e segunda ninhada. Os resultados, publicados em 2013 na revista Nature Neuroscience, permitem perceber, explica um dos cientistas responsáveis, Brian Dias, "como as experiências tidas por mães e pais, antes de se reproduzirem, influenciam tanto a estrutura como a função do sistema nervoso dos descendentes. Este fenómeno pode contribuir para a compreensão da etiologia e da possível transmissão intergeracional de risco para afeções neuropsiquiátricas como fobias, ansiedade e stress pós-traumático."

A ideia de que podemos herdar memórias, e nomeadamente medos e traumas, é tão surpreendente e inquietante como a de que o ato de lembrar altera o passado -- entendido não como o que aconteceu realmente mas aquilo de que nos recordamos. Não apenas, como crê a escritora Dulce Maria Cardoso, no sentido filosófico, ou literário -- "Estamos sempre a reconstruir. Costuma-se dizer que só o futuro é desconhecido e o passado é certo mas não é assim. O passado pode trazer tanta novidade como o futuro" - mas no sentido bioquímico, material.


Memória como plasticina?

Essa é a teoria de Karim Nader, neurocientista da Universidade de McGill, no Canadá, a da "maleabilidade da memória". Exemplifica-a, numa entrevista de 2011, com a sua lembrança do 11 setembro. A viver em Nova Iorque na época, estava a preparar-se para sair quando ouviu na rádio a notícia do ataque às torres. Subiu ao terraço do prédio - estava a menos de três quilómetros - e viu-as cair.

Da experiência desse dia faziam parte as imagens, vistas na TV, do primeiro avião a atingir as torres. Mas, veio depois a descobrir, só foram divulgadas no dia 12. Curiosamente, a sua perceção era a de muita gente: num estudo de 2003 em que se inquiriram 569 universitários, 73% diziam o mesmo.

A hipótese de Nader para explicar isto é que de que cada vez que recordamos algo, ou seja, "vamos buscar" uma memória, ela é reconsolidada, ou "reescrita". "O mero ato de lembrar afeta a lembrança", diz. "Pode ser impossível para os humanos ou outros animais rememorar algo sem alterar essa memória de algum modo." Memórias de acontecimentos como o 11 de setembro, crê, serão particularmente suscetíveis de ser alteradas por serem tantas vezes rememoradas. Ou, aventa-se, algo de especial significado para cada um de nós: o nascimento de um filho, a morte de alguém que amámos, o momento em que vimos pela primeira vez a pessoa por quem nos apaixonámos.

A explicação para isto prende-se com o processo "material" da formação e recolecção da memória. Crê-se que as memórias, de curta e de longa duração, envolvem um ajustamento nas conexões entre os neurónios; esse ajustamento ocorre através de alterações químicas nas sinapses - o espaço entre os neurónios -- e da utilização de proteínas. Se as memórias de curta duração correspondem a alterações químicas simples e rápidas nas sinapses, para construir uma memória duradoura os neurónios têm de trabalhar muito mais, produzindo novas proteínas.

Esta descoberta, que valeu ao neurocientista Eric Kandel a partilha do Nobel da Medicina de 2000, apontava no sentido de que uma vez criadas, essas memórias de longa duração tendiam a não mexer: daí darem-lhe o nome de memória "consolidada".

A ideia de que as memórias "antigas" não mudavam resistira a experiências que nos anos 1960 registaram o facto de ratos submetidos a choques elétricos ou a substâncias que afetavam um neurotransmissor específico aquando do relembrar (induzido) de uma determinada memória demonstrarem a seguir um enfraquecimento dessa memória. Nader resolveu voltar a essa linha de investigação em 1999, experimentando também com ratos, e chegou à mesma conclusão que os investigadores dos anos 1960. Experiências posteriores com animais e pessoas permitiram reforçar a ideia de que as memórias podem ser alteradas quando são suscitadas. Em 2013, uma experiência com eletrochoques aplicados a pacientes com depressão testou a teoria, concluindo que estes tinham dificuldade em lembrar os pormenores de uma série de imagens que lhes haviam sido mostradas antes dos eletrochoques. Uma das maiores esperanças que esta possibilidade oferece é a de que se possa reescrever a memória ou memórias que causam o stress pós-traumático.

Mas a ideia de que as memórias podem ser alteradas não é, na verdade, nova; há estudos mais antigos, nomeadamente os da psicóloga americana Elizabeth Loftus, que apontam no sentido de que é possível não só falsear parcialmente determinadas memórias - através de perguntas que induzem versões incorretas -- como criar memórias de acontecimentos que nunca existiram. Nas suas experiências, que procuravam criar nos objetos a memória de enquanto crianças se terem perdido num centro comercial, cerca de 30% descreviam o acontecimento como verdadeiro.

Dulce Maria Cardoso, cujo segundo romance, Os meus sentimentos, é a narração fragmentada, circular, contraditória, das recordações de uma mulher que se despistou no meio de um temporal e revê a sua vida, invoca uma das suas memórias de em criança: "A minha mãe contou-me que quando me levou para Angola eu rejeitei o meu pai, porque ele tinha barba, não o reconhecia. Durante muito tempo, julguei ter memória disso, tinha imagens, via a minha irmã, a minha mãe. Mas tinha seis meses, não é possível que me lembre disso. A memória é muito criativa."

É-o no que reescreve e "inventa" como no que faz desaparecer; a supressão da memória, sobretudo de acontecimentos traumáticos, é a outra face desta maleabilidade. Que sentido guia essas alterações desconhecemos. Como os "hóspedes" de Westworld e ao contrário do protagonista de Memento, que paradoxalmente, por tudo esquecer, controla o processo, só podemos interrogar-nos sobre o que sabemos de nós."

in: jornal "Diário de Noticias"