domingo, 29 de outubro de 2017

Primeiro Mundo_Aline Frazão



letra:

Eu não sei porquê
Há incêndio dentro de cada janela e se vê
Eu não sei porquê
Este incêndio que arde dentro, 
come o corpo todo e a gente finge que não vê,
Finge que não vê, finge que não vê?

Mas por dentro arde, como não vai arder
Se não minha terra não tem pra? comer
Já quase creio que não tenho o direito de ser alguém
Por isso arde
Ter de dizer adeus
Sem saber se o deserto me vai vencer
Juntar os últimos sonhos com a roupa do corpo
Partir por mim e pelos meus
E afinal tem que haver algum Deus

Eu não sei porquê
Há incêndio dentro de cada janela e se vê
Eu não sei porquê
Este incêndio que arde dentro, 
come o corpo todo e a gente finge que não vê,
Finge que não vê, finge que não vê
Mas por dentro arde, como não vai arder
Se chegando no primeiro mundo
Me sinto mais esquecido do que era no segundo
Arde
Carimbo de ilegal
Preconceito racial
Só por ter nascido mais ao sul
Xe gente do primeiro mundo, pais da civilização
Por não ter um papel acabei numa prisão
Xe gente da terra inteira
Queima o fogo da desilusão
Este primeiro mundo é só de brincadeira
Só de brincadeira, só de brincadeira
E você finge que não vê
Eu não sei porque

Tens que entender que não há diferença entre nós
A mesma essência
Se a minha liberdade não existe
A tua é só aparência

É só aparência
E você finge que não vê
Eu não sei porque

Primeiro mundo só de brincadeira
Primeiro mundo só de brincadeira
Só de brincadeira, só de brincadeira, 
só de brincadeira, só de brincadeira.


........
Entrevista ao jornal "Expresso":



“As prisões fizeram-me pôr tudo em perspetiva”



Aline Frazão gravou 
este disco em Jura, 
na Escócia, por sugestão de Carlos Seixas, diretor 
do FMM Sines
DINIS SANTOS

“Insular” é uma viagem a Luanda guiada pela poderosa e combativa voz de Aline Frazão. Ainda que ‘doce’ seja o adjetivo que melhor a descreve

Não foi preciso ouvi-la cantar para lhe perceber a força. Bastou ouvi-la falar, há pouco mais de três anos, num encontro que precedeu um concerto inesquecível. A voz é a de uma estrela, ainda que o tom seja baixo; porque, como ela acredita, não é o grito que a levará mais longe, a tornará mais combativa. Apesar dos 27 anos, da “falta de cabelos brancos”, Aline Frazão, nascida em Luanda, há muito que tem maturidade suficiente para ser levada a sério. É uma voz suave mas confiante, uma compositora séria, uma mulher que pensa por si. Depois de vários anos a residir na Europa, com visitas regulares a Luanda e discos como “Clave Bantu” (2011) e “Movimento” (2013), lança “Insular”. A poesia apura-se sem descartar a situação política angolana. A música não perde identidade, mas eletrifica-se, através da colaboração da guitarra de Pedro Geraldes (Linda Martini) e da produção de Giles Perring.
O ponto de partida deste disco é “O Conto da Ilha Desconhecida”, de José Saramago, que inspira uma das canções? Não. Chegou depois. Estava a uma semana de embarcar para Jura, na Escócia, onde fui gravar o disco [no estúdio de Giles Perring], e numa conversa uma amiga fala-me deste conto. Quando o li parecia-me que tinha sido escrito para este disco. Tinha as metáforas perfeitas... A ideia de ir à procura de uma ilha desconhecida, com o objetivo de descobrir quem somos, quando todas as ilhas já foram descobertas... A música e a letra surgiu no dia seguinte. Ganhei mais uma música.
Quem nasce em África fala sempre da imensidão. De onde vem a necessidade ‘insular’, palavra que dá nome ao disco? Antes de pertencer ao continente africano, pertenço a Luanda, que é uma cidade muito específica. Luanda não é uma savana africana. É uma cidade com um horizonte cada vez menos aberto e um skyline cada vez mais preenchido, mais bloqueado. Os meus pais nunca se quiseram aventurar muito, e durante a guerra civil nunca nos afastámos mais de 40 ou 50 quilómetros de Luanda. A minha experiência é a de uma capital africana contemporânea e caótica, na qual se encontra cada vez menos o passado. E a verdade é que as cidades têm muito a ver com a ideia de ilha. E as pessoas têm muito de ilha. As pessoas vivem cada vez mais preocupadas com as suas contas, com as suas vidinhas... O silêncio e o recolhimento são importantes para se chegar a algum lugar. A solidão acontece muitas vezes em ambientes de grande barulho, na cidade.
No disco, fala na solidão... Estamos “nos braços daquela solidão”... Estamos. E de várias maneiras. A solidão pode dar-nos várias respostas. Depende da forma como a abraçamos. A solidão apressada, da vida contemporânea, agitada, promete pouco. Mas uma solidão consciente, virada para dentro, é a que nos dá mais respostas, nem que seja para nos mostrar que não há necessidade de nos fecharmos em nós próprios, mas de nos abrirmos ao contacto com os outros, de modo a dar o mesmo peso aos nossos interesses e aos dos outros. Devemos colocar-nos a um nível de igualdade. E essas são questões que têm tanto de individual e de introspetivo como de social e político.
Mesmo que não pareça, o disco tem uma segunda camada, que é muito política e angolana... Este disco é muito particular. O olhar está mais virado para fora, para o que observei. Mais do que uma construção, é uma desconstrução. Durante o tempo de criação de “Insular” comecei a escrever crónicas [no portal Rede Angola]. Isso afetou a minha escrita de canções. Hoje, faço pouco esforço para transmitir nas canções ideias concretas sobre política. De facto, isso fica nas entrelinhas. Há quem dê conta. Outros não. O que é bom. A música ganha várias dimensões, e cada um encontrará coisas diferentes. Mas este é também um disco onde recuso as definições; e isso está de certo modo expresso nas aguarelas do livreto de António Jorge Gonçalves, que conhece muito bem a minha música e me acompanhou em Jura. Há um mapeamento e uma indefinição. Há um deslocamento no tempo, na geografia, na temperatura... Um lado aquoso.
A opção de as crónicas serem mais políticas ou interventivas foi sua? Exato. Tive esse debate comigo mesma. E oscilo um pouco entre linguagens mais poéticas ou mais racionais e políticas, mas no geral as crónicas acabam por ser mais objetivas e analíticas, o que responde também ao que sou. As crónicas, o gastar tão rápido e semanal de palavras, levaram-me a ser mais cautelosa nas canções. Não no sentido de me conter a nível político, mas ao nível formal da escrita.
Há uma preocupação mais poética? Sim, mas tem a ver com essa economia de recursos; e talvez com menos espontaneidade na escrita. As canções são mais contidas. Não são quilométricas, como nos discos anteriores. Mas há de facto um contexto angolano. Em ‘Sol de Novembro’, por exemplo, há uma citação da poesia de Viriato da Cruz, mas a canção não esquece que neste mês se comemoraram os 40 anos da independência de Angola.
A luta de Luaty Beirão não está fora do disco. A gravação coincide, aliás, com as prisões dos ativistas. Isso é lembrado no livreto... Sim, a canção ‘Langidila’ aparece como homenagem a uma mulher que admiro muito, Deolinda Rodrigues, guerrilheira angolana que morreu em combate, mas também se relaciona com as prisões. Acompanhei muito de perto as notícias e até acho que a ansiedade em relação ao disco se relativizou um pouco perante algo mais importante que estava a acontecer. Quando acabei este disco, senti-me em tranquilidade absoluta, provavelmente porque as prisões me fizeram pôr tudo em perspetiva. É irónico que 40 anos depois da independência volte a haver presos políticos. Não que não tenho havido durante estes anos... Mas este ano? Com acusações tão frágeis e tão mal sustentadas? É um fator de grande preocupação em Angola. Acho que nunca vi tanta gente preocupada e apreensiva...
Texto publicado na edição do Expresso de 28 novembro



2 comentários:

  1. Caro Luís,

    deslumbramento meu com a voz dessa menina
    e poema tão forte e actual e certeiro,

    um momento raro de canto e poesia, vestidos por uma voz de eleição

    Parabéns.

    forte abraço

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  2. Não conhecia esta cantora e fiquei encantada, com a voz e com o poema. Vou tomar nota.
    Um beijo, meu Amigo.

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