CARTA A UM ALGUÉM - I
Terras de Prata
No meu chão há espinhos de prata e frutos de um dourado rubro, em campos a perder de vista, a perder o pé. O campo estende-se - como lençol em cama nubente - em tons de água chovida de um céu cor de anjos. As fragrâncias doces e finas - jóias de artesão - rodopiam em terno e cadenciado turbilhão. No meu chão há pétalas de rubis e diamantes: negros, como noites sem luar. Há risos que sobrevoam, rasantes, os pezinhos das fadas transparentes. No meu chão há a sombra de um alguém.
A vida arqueja coxeante, dia-a-dia: noite-a-noite, como raposa delapidada, como gaivota arroteada em terras de nunca mais. Tudo cresce, tudo floresce e enrubesce - tudo muda - menos tu: minha sombra de alguém; Tu caminhas comigo - silenciosa -, arroxeada e encastoada de espanto. Onde eu pisar, pisarás tu também. Sento-me à sombra das faias - desdentadas de invernia - e escrevo-te.
Dedilho palavras sobre o papel como se esgravatasse as teclas de um piano. Oh minha sombra de alguém: saberás tu, porventura, o que vulcaneja no meu peito sempre que o teu rumor contrastante se projecta no meu caminho? Saberás tu, quem me dera, as golfadas de amor que reprimo - amordaço -, ao procurar-te neste meu chão de argênteos espinhos? Não - não sabes-, não podes.
Busco-te nas esquadrias matinais pintadas de carmim e ouro. Prendo o teu reflexo nos baixios da queda do sol a cada noite. Aso a minha alma sempre que a tua mão roça - breve - como penugem de pomba peregrina, os meus olhos vazios, o meu rosto deserdado. Suspiro pelo toque da tua mão - de sombra de alguém -, na minha, de maré vazante. E escrevo, escrevo pelas horas e pelos vazios, a preencher os ocasos onde te perco: sombra minha. E escrevo, escrevo - poemas e prosas - inventando mares para descobrir, leitos de mel e rosas para te desfrutar - para me rendilhar -, para nos fundir. Escrevo cada palavra que se cola aos lábios, murchos de tanto guardar, cada tela que idealizo, projectada nos meus céus de véus velados.
Aos meus pés permanece o caminho de espinhos prateados, e nas árvores ainda pendem os cobiçados, frutos de rubro dourado - agrestes de solidão - desidratados de amor, ácidos de (des)carinho. encolhidos de solidão. Hoje - sombra de alguém- não te procurei. Tu estás: sempre, escondido num tronco, olhando para mim - de longe - espiando, guardando, velando; Paternal sombra. Sinto a tua presença, mansa como maré vazante, suave como berço de ternura - em braços maternais. O teu perfume engole o espaço entre o tu e o eu - vem como brisa -, como orvalho salgado de um mar profundo inebriado, e veste-me o corpo, enfeita-me a alma, acelera o coração.
Diz-me, sombra de alguém - é assim que fazes amor? É assim que amas, que profanas, que devoras e te deleitas?
No meu chão continuam espinhos de prata e frutos de um dourado rubro em campos a perder o pé.....
CARTA A UM ALGUÉM - II
Terras de Prata
Neste meu chão de espinhos prateados fiz nascer um sacerdotal sentimento - pulcro - para ti: minha etérea sombra de alguém. Sentei-me nos esconsos de um ribeiro de águas sonhadas, mergulhei na magia do micro segundo que media o suspiro entre o dia e a noite. Toquei-te! Toquei-te com o escorregar dos dedos: aflorei o contorno, negro, da tua figura - feita presença - ao meu lado. Tu sorriste: do âmago do teu encarvoado aspecto.; Sabes? o teu sorriso penetrou a minh'alma, borboletou o meu coração. Fizeste o dia nascer - de novo - no fusco dos pirilampos.
Tens magia no teu silencio ululante, tens luz na tua escurecida silhueta, tens ritmo sinusal a elevar-se na natureza que se despe para dormir.Tens o poder de me prender ao suspiro das borboletas, estonteadas, de luz. Tens nas mãos - que não conheço - o calor que pões nas minhas: geladas de esperar, de te esperar. E no entanto, aí estás tu: sombra amada de alguém, a projectar-te sobre mim, a capear-me o corpo, como se me quisesses possuir; A inundar-me a alma, como se a quisesses sugar. Aí estás tu; Imensa, imersa, eterna e suavemente presente. Estendo a mão, devagar, não te quero assustar: não te quero longe, preciso de te ter ao lado, ao alcance da mão. E, sabes? Hoje tu ficaste; Sossegadamente ao meu lado, invadindo-me com a tua sombra: sabes bem. Tens tons de luar e algas, misturado com alfazema e mel. Sabes a liquido e a terreno - sabes a vida.
Escrevo-te, minha sombra de alguém, relembrando os hidrofóbicos instantes em que te derreteste no meu corpo, em que decompuseste o orvalho de uma incógnita lagoa, bordada de estrelas e embalada de luar. Escrevo-te: porque não te posso falar....
CARTA A UM ALGUÉM III
Terras de Prata
Minha sombra de alguém, o tempo passa, o tempo corre - e morre - e ressuscita num novo dia; Este dia. Dedilhei as horas e penteei os verdes prados, embalei mares de cobalto nos meus braços de satélite da vida. Gravitei pelo dia: que não para. Saltei barreiras de interrogações e certezas só para estar contigo - sombra de alguém. A noite cai, mais uma noite de mantos de veludo, a arrastar uma cauda de estrelas: cadentes, incandescentes. Só mais uma noite.
E tu continuas o teu caminho de sombra, não sei se paralelo ao meu. Não sei se cruzando o meu. No fundo nada sei de ti, minha sombra de alguém, sei apenas o que sinto se te penso; Sei apenas o que sonho, se te sonho - o que me invade - se te procuro. E hoje procuro-te, sabes? Procuro-te no ténue cair do dia, quando se desdobram as sombras e as penumbras, quando os pintores posam os pincéis e embrulham as tintas. Procuro-te na brisa que escorre da serra e se amadurece no mar. Procuro-te nas palavras - na melodia de cada uma delas -, nas imagens, nas luzes que acordam nas ruas, nos lares, no céu. Sim, procuro-te neste final de dia - já é noite - e não te sinto. Não te vejo: não te toco, nem a tua afável sombra me segue, nem se prende nos meus passos. Desapareceste - sombra de alguém.
A noite agigantou-se no tempo, as doze badaladas estão prestes a soar. Há no ar um vazio de vida, um vazio de palavras, de cores, de mundo. Onde estás sombra de alguém? Foste para o teu secreto espaço, onde só as sombras habitam? Foste ver o ano passar lá para o alto, bem perto do céu? Onde podes ver o mundo a teus pés - sem te sujares nas humanas figuras. Fico a sentir as horas passarem...
7...6...5....4...3...2...1....... Saltamos o ano.
Sombra de alguém - onde quer que estejas - que tenhas um novo ano de paz; Mesmo que a tua companhia não se faça sentir em mim, no meu prateado e espinhoso caminho. Mesmo que o teu sombreado toque não me toque mais, nem o teu perfume de escuro me inunde mais. Ainda que não seja mais capaz de pintar telas de sonhos com as cores com que me preenches a vida, desejo-te um ANO bem NOVO. Porque os Natais e Anos Novos da vida são aquilo que nós quisermos que sejam.
Feliz Ano Novo minha querida sombra de alguém.
in:
http://lagrimasdeluar.blogspot.pt
Meu Amigo,
ResponderEliminarComo eu apreciei estas leituras, presentes do ano...
Que partilha maravilhosa, assim que tiver mais tempo
irei no blog da tua amiga e para seguir, pois eu adoro
as partilhas de blogs de poesia e literatura de qualidades.
Preciosidades os textos poéticos dela, sou grata pela
tua generosidade de me apresentar esta Poeta e seu espaço
de arte que passarei a frequentar também.
Um beijo e abraço de paz nos dois!
Textos esteticamente belos. A "sombra de alguém"...Ou é a própria sombra que o persegue?
ResponderEliminarUm beijo meu Amigo.