sábado, 23 de agosto de 2014

vou partir

Luís Castanheira


vou partir


como se fosses tu que me abandonasses


o último sonho que tive era estranho


via o fundo límpido duma rua estreita


que desembocava num largo iluminado


havia leões empalhados nos passeios em areia solta


já não me lembro bem


parece que uma mulher avançava com um envelope na mão


estendia-mo e gritava


mas eu não conseguia perceber


insultava-me muito provavelmente


tinha a cara escondida por um pano branco bordado


apenas via a sua enorme boca a abrir-se


e furiosamente engolir a púrpura do ar


que envolvia as cabeças reclinadas dos leões


ouvia o buzinar nervoso dos carros


exactamente como se ouvem agora


mas não conseguia vê-los


depois


um rapaz apareceu a uma esquina e reconheci-te


uma voz gravada na memória acompanhava-nos


quando nos dirigimos um para o outro


em câmara lenta


ouvíamo-la sussurrar: procuro-te


no interior das penumbras no esquecido sal


das casas abandonadas à beira-mar


procuro-te no perfume excessivo do mel


armazenado pelas abelhas no entardecer das pálpebras


vem


mergulha as mãos nos troncos das árvores


suspende a noite da longa viagem


estás a naufragar


o espelho quebrou-se e tu já não reconheces as paisagens


o corpo estilhaçou-se


tua presença só é visível nas fotografias dos barcos


as quilhas são a tua memória longínqua das Índias


vai


com os pássaros de bicos exuberantes e sonha


e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca


onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas


a cidade espera-te com os cais de madeira


junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios


agarra-os dentro de ti


até que da terra lodosa brotem especiarias


porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade


só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade


inundando um breve instante a noite de nossos desastres


só longe daqui


terás a consciência da quotidiana morte de Deus


repentinamente a voz cessou de se ouvir


eu tinha na palma da mão uma quantidade de comprimidos mortais


depois a voz fez-se ouvir a espaços irregulares: pobres unhas


pelas amarras húmidas dos lençóis rotos


barcos


velas sem sol papel pintado descolando-se das paredes


silêncio espesso sarro da noite


uma viatura arrasta-se boceja no asfalto


o corpo treme cintila


resíduos de cidade ruínas da pele buenas noches


buenas noches mi amor


lençóis floridos ranho cabeças de cafres


pingue-pongue de torneira avariada esferas de flipper


noches buenas noches


barcos despedaçados bolor da memória


da memória da memória da memória


tinhas a cara mascarada com sangue quando a voz silenciou


a mulher ria


eu corria para ti sem conseguir alcançar-te


sentei-me na cama


veio-me do fundo da idade o momento em que nos conhecemos


resolvi levantar-me a meio da noite e escrever-te esta carta


lembro-me que tínhamos fome havia três dias


encostada ao mármore da mesa-de-cabeceira dormia a fotografia


e o maço de português suave filtro


a escuridão não era só exterior


conhecíamo-nos pelo tacto e pelo olfacto


tornámo-nos murmurantes


e tu refulges ainda no escuro dos quartos que conhecemos


cruzámos olhares cúmplices


falámos muito não me recordo de quê


e no calor dos corpos crescia o desejo


caminhámos pela cidade


eu metia as mãos nas algibeiras


onde tacteava tudo o que guardara e possuía


um lenço uma caixa de fósforos um bloco de notas


sentia-me feliz por quase nada possuir


a imagem azulada de tuas mãos flutuava diante de mim


gesticulava para me dizer que estávamos vivos


e apaixonados


escrevo-te


pelo corpo sinto um arrepio uma vertigem


que me enche o coração de ausência pavor e saudade


teu rosto é semelhante à noite


a espantosa noite de teu rosto!


corri para o telefone mas não me lembrava do teu número


queria apenas ouvir a tua voz


contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou


queria dizer-te por que parto


por que amo


ouvir-te perguntar quem fala?


e faltar-me a coragem para responder e desligar


depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa


a noite tornou-se patética sem ti


não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua


procurar-te imediatamente


correr a cidade duma ponta a outra


só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te


e morrer


como quando me tocaste a testa e eu não pude reconhecer-te


apesar de tudo senti a mão sabia que era a tua mão


mas não podia reconhecer-te


sim


correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses


mesmo que nem me olhasses


mesmo que me dissesses coisas que me


mesmo que


e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me


correr a cidade com o corpo sedento


a noite esgravatando a pele


bebendo nas veias as poucas forças que me restam


uma lâmina pelos sonâmbulos asfaltos


onde morrem ambíguos nomes de corpos sem sexo


o veneno agindo dos pés para a cabeça


as mãos encharcadas de chuva tacteando um século qualquer


o sangue a chuva a memória desses dias tão difíceis


a noite a lambuzar com violência os rostos magoados


visões de sonhos ainda não sonhados


dilaceradas imagens de bocas coroadas por flores de aço afiado


ouço outra vez uma voz e agora não estou a sonhar


mas a escrever-te


e ouço-a em mim como se estivesse gravada


e a fita do gravador gasta pelo uso: a tua vida


será feita de embarcações e de solidão


beberás a secura dos cabos distantes


conhecerás ilhas de saliva profunda


olhar-te-ás nas fotografias


que as unhas aceradas do tempo arranharam


e para lá dessas imagens envelhecidas tudo sangra e dói


a tua infância a tua adolescência e o medo


de não conseguires sobreviver ao estrume do país


avançarás pelo mar dentro


ferido por outros naufrágios imperceptíveis


descansarás


nas areias aveludadas da foz dalgum rio sagrado


e quando o mar se retirar


o sol e a lua virão tatuar sobre o ombro


a silhueta viva dum bicho estelar e a memória


essa parte calcinada da vida começará a doer e a latejar


navegarás pela cidade que adere aos dedos


como sarna mais antiga navegarás


com o escorbuto no coração transportarás o silêncio


e a escrita na fragilidade dos pulsos acorda


onde cintila a faca acorda o mar


está próximo o mar acorda


o mar acorda o mar acorda o mar


o mar


na gaveta onde o bolor cobriu a roupa guardo as fotografias


reparo como amareleceram suavemente os rostos


as mãos que seguram ramos de flores os cabelos os olhos


exala-se deles uma leve doçura cor de sépia


foram perdendo a definição esfumaram-se os contornos


numa das fotografias tens vestida a camisa de riscas azuis


noutras sorris olhas-me nos olhos


mas aquele sorriso não o que ainda ontem te vi esboçar


o sorriso que tens na fotografia morreu


no entanto está ali e fico perturbado quando o vejo


eu sei que nada está vivo na fotografia ou se repetirá


aqueles sorrisos aqueles instantes para sempre perdidos


a camisa às riscas votada à degradação lenta do papel


acabei por destruir as fotografias queimei-as


para que ninguém possa supor através delas


histórias a nosso respeito


e também para que minha mulher as não encontre


a única coisa que levo comigo é a cápsula de laranjada


atada a um cordão em couro deste-ma tu um domingo


quando passeávamos perto do rio


íamos ver o sol morrer nas águas


caminhávamos sem destino pela cidade


o crepúsculo atingia-nos com misteriosos desejos


seria inútil falar das razões da minha viagem


no fundo nada a justifica


embora a minha vida ultimamente seja um barco sem rumo


de vaga em vaga de ressaca em ressaca


fui arrastando o meu próprio naufrágio


mas ser-me-ia difícil falar-te destas catástrofes


prefiro calar-me para sempre ou enlouquecer


ou avivar a memória de certas visões aciduladas


enquanto te escrevo esta última carta


é também a última vez que penso em ti


sempre habitei este país de água por engano


estas planícies asfaltadas pelo tédio estes prédios de urina


estas paredes vomitadas


onde as diáfanas aves da solidão embatem e definham


deixam cair dos bicos fios de sangue e de cuspo que te evocam


vou migrando de corpo para corpo


sem nunca conseguir definir o voo complexo do meu


escrevo-te ainda lúcido


no entanto ignoro se chegarei vivo ao fim da noite


quem poderá afirmar que daqui a instantes


não atravessarei os espelhos impossíveis da noite?


ferindo o corpo rasgando borboletas de luz


no écran da cidade amanhecendo em mim


esqueço como me chamo


e tenho a certeza de que nunca mais nos veremos


mesmo no caso de eu permanecer aqui


neste país de água por engano


descobri que a morte calça o mesmo número de sapatos que eu


sabes


por vezes queria beijar-te


sei que consentirias


mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado


porque os beijos apagam o desejo quando consentidos


foi melhor sabermos quanto nos queríamos


sem ousarmos sequer tocar nossos corpos


hoje tenho pena


parto com essa ferida


tenho pena de não ter percorrido teu corpo


como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti


do pescoço às mãos da boca ao sexo


tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro


acordado


perto de ti as noites teriam sido de ouro


e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo


ah meu amigo


estou definitivamente só


estou preparado para o grande isolamento da noite


para o eterno anonimato da morte


mas perdi o medo


a loucura assola-me


preparo a última viagem às índias imaginadas


disseram-me que só ali se pode descansar da vida


e da morte


perscruto a razão profunda desta viagem


ou talvez seja já a torna-viagem o que vislumbro


e não valha a pena partir porque já estou de volta


sem o saber


hesito em deixar-te escrito mais que um simples adeus


de qualquer maneira por muito longe que me encontre


se pousares a tua mão sobre a minha testa senti-lo-ei


esse gesto aliviar-me-á de todas as dores


a manhã aproxima-se cortante


ouço barcos largarem do cais


preparo a lâmina


estendo as velas em agonia uma lâmina de vidro


para fender as águas imperturbáveis do dia sem bússola


destruo cartas papéis manuscritos outros sinais


destruo as imagens que me chamam e me querem reter aqui


releio estas poucas palavras para ti: child of the moon


debaixo das cerejeiras uma serpente antiga adormeceu


em tuas mãos de pétalas lunares


movem-se astros em cima da alba da pele


olharemos os insectos perfurarem a treva da noite


e tecerem claridades


mas já não tínhamos mais noite a desvendar


lembro-me


a cidade está cada vez mais rente à nossa separação


caminhamos em direcções opostas


ou melhor


eu caminho enquanto tu não existes


a noite aproxima-se com seus territórios de sombra e fábula


areias penumbras oscilantes apagando resíduos de corpos


teu corpo minúsculo arrefece dentro de mim


quando as feras despertam nos olhas abandono-me


à lama colorida dos terrenos vagos


dói-me a voz ao chegar aos lábios


os dedos penetram o metal cintilam


conchas abertas ao sonho


onde terei abandonado a nossa paixão?


um cristal flutua no enxofre de remotas cidades


compridos cabelos de jade espalham-se sobre o rosto


indecifráveis vegetações


o sonho torna-se exótico quando abres os braços


surgem nas pálpebras caudalosos rios


neles pouso a cabeça deixo-a flutuar


uma mulher anela aos ziguezagues pelos corredores da casa


vejo peças de vestuário espalhadas pelo chão


a mulher grita


corre à roda do quarto insulta os electrodomésticos


abre o frigorífico


atira com os legumes congelados ao chão espezinha-os


esborracha-os contra as paredes chora


ri pega numa camisa de riscas e rasga-a em mil tiras


recomeça a correr


entra na casa de banho e abre todas as torneiras


abre as janelas e ri


e lambe as vidraças sujas


derrama açúcar dentro do telefone


e por cima das petúnias de plástico fluorescente urina


mas tudo isto se passou há muito tempo noutro lugar


noutro corpo


viro-me para o sul de nossos corpos e descubro uma ilha


percorro demoradas estradas de tabaco e o ouro envelhecido


dos caminhos alquímicos desvendo


os sinuosos mistérios da seda e da pimenta as grandes rotas


do vento bebo o amargor ela vida errante


onde a mulher dorme sossegada sobre a cama desfeita


o telefone toca obsessivamente toca


um corpo translúcido surge do papel em que te escrevo


revela-se-me a água dos gritos repetidos


um foco de luz incide-me sobre a boca fechada


procuro-me na silenciosa cinza de tua memória


pela casa atravessada de ecos de fogos postos respiro


dificilmente ouço zumbidos de flipper


o quarto povoa-se de rostos alados mecânicos olhares


pequenas garras de ar


desfazem-se em finos cordéis de terra


a mulher avança sob o peso da tempestade


aqui está sempre a chover


o frasco de barbitúricos conta-me o falhado suicídio


a mulher tem o teu rosto ou o meu já não sei


a luz percorre-te o corpo


é noite há muito tempo


fixo um ponto invisível da parede estou sentado na cama


escrevo-te


e tenho a certeza de que ninguém será capaz


de roubar a minha morte


porque eu moro neste país líquido por engano


e tenho dificuldade em imaginar o sono fora de meu corpo


se quiseres vem dormir perto de mim vem


sonharemos um país fabuloso junto ao coração das árvores


vem


antes que trema o corpo no frio sem deuses e na loucura


quase amanhece


lá fora as avenidas mantêm-se vazias


subúrbios sonolentos no refrão dum brutal rock'nd roll


vicious you are so vicious


baunilha azul nos lábios orgasmo de baunilha


tarzan de pastelaria um cigarro de chocolate come


chocolates come sentado no cimo do ice cream toute la nuit


fuck fuck


fuck em diferido


os eléctricos já passaram e as mãos já não são as minhas


têm sede


sede de nudez.


mas vou partir deixar-te aí


como se fosses tu que me abandonasses


viajar antes da alba partir


para longe destes inúteis dias


eu


pobre de mim


navegador da noite próxima da morte


vou acendendo no sangue os sonhos dum povo que não sonha


eu


arquipélago de cinzas oceano do nada


vou de veias inchadas e penso que talvez não valha a pena


mas vou


preciso encontrar o lugar certo para o nosso amor


queres vir comigo?


já avisto da gávea inquietantes iluminuras de rostos de afogados


mãos antigas como rochedos peixes fantásticos


bocas aflitas a tua boca mordendo


o cordame avariado pelo sal


ah meu amigo


eis o sofrimento de meus lábios gretados pelo sarro oceânico


eis minhas unhas doentes protegendo o sexo aberto


às monções aos ventos adversos às vagas rumorosas


vou abandonar-te no lado claro da noite


onde o tempo é um fio de luz rasgando a espessura do corpo


vou partir


com estas manchas de frutos sorvados no coração


para sempre vagamundo


no corredor de espelhos sem tempo deixo-te o sonho


onde já não arde nenhum rosto nenhum nome


nenhuma voz da silente treva


nenhuma paixão


abandono-te para além da linha nítida da manhã


onde dizem que tudo existe se transforma e continua vivo


longe


muito longe desta inocente memória das Índias






Al Berto

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