quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Eliana Potiguara_Brasil

Brasil

Que faço com minha cara de índia?
E meus cabelos
E minhas rugas
E minha história
E meus segredos?


Que faço com minha cara de índia?
E meus espíritos
E minha força
E meu Tupã
E meus círculos?


Que faço com minha cara de índia?
E meu toré
E meu sagrado
E meus “cabocos”
E minha Terra?


Que faço com minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?


Brasil, o que faço com minha cara de índia?


Não sou violência
Ou estupro


Eu sou história
Eu sou cunha
Barriga brasileira
Ventre sagrado
Povo brasileiro.


Ventre que gerou
O povo brasileiro
Hoje está só...
A barriga da mãe fecunda
E os cânticos que outrora cantavam
Hoje são gritos de guerra
Contra o massacre imundo.

- Eliane Potiguara, no livro "Metade Cara, Metade Máscara". Grumin Edições, 2018, p. 32-33.

domingo, 21 de novembro de 2021

Fernando Tordo_Adeus Tristeza


Daqui:



Fernando Tordo
DR

NOTÍCIAS
101 canções que marcaram Portugal #26: 'Adeus Tristeza', por Fernando Tordo - 07 JUNHO, 2020
‘Adeus Tristeza’ foi uma canção escrita a uma mão - e tanto que Fernando Tordo se acostumara à mão treinada do seu parceiro Ary dos Santos. É uma canção na ressaca da parceria mais fecunda da música portuguesa, uma canção-sinopse da sua vida, uma legenda da sua biografia. Esta é a 26ª de 101 canções que marcaram Portugal, uma rubrica que homenageia as cantigas que ficaram para a história da música portuguesa



JORGE CEREJEIRA



101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.


Em 1959, um pequeno monomotor Bonanza despenhava-se. A bordo seguiam Richie Vallens, J. P. Richardson e Buddy Holly, 3 dos grandes nomes a despontar no circuito rock and roll. Esse dia de tempestade ficou para a história como ‘o dia em que o rock morreu’. A última canção que Ary escreveu para a música de Fernando Tordo foi ‘O amigo que eu canto’, uma canção que, talvez não o soubessem, era uma canção de despedida.

Nesse dia de 1982, como na letra de ‘Tourada’, e à semelhança da data fatídica de 1959, acabaram-se as canções. Mais de 10 anos depois, mais de 600 canções depois, a dupla mais marcante da música portuguesa acabava aqui. O amigo que Ary cantava era Portugal na canção, mas poderia ser ele mesmo, como se pusesse na voz de Fernando Tordo os seus defeitos e qualidades, como que a redimir-se dos seus erros. Tem defeitos, é certo, como todos nós. É capaz de roubar, mas também sabe dar a camisa. Mas quando dentro dele a alma ganha a voz é tal como se fosse o som do nosso mar. E os versos vão por ali fora.

E este era o Ary. Era Ary a escrever uma canção a retratar-se – ainda que velando-se com o seu próprio país. Nesse dia, a canção seria escrita não na casa do poeta, como sempre acontecera, mas na casa de Tordo, no 1.º andar do prédio onde ambos viviam. A relação estava degradada. Estava no fim. O alcoolismo de Ary e o abismo à beira do qual estava Tordo não lhes permitia continuar. Nas veias das relações tumultuosas corre sangue vermelho. E esta relação, agora a branco e preto, fora feita da cor da amizade, das canções, das noitadas, das cumplicidades, dos risos, das conquistas, das consagrações, das ovações. Mas já não era a cores. E terminava ali, no ‘Amigo que eu canto’. Ary ficava órfão. Viveria mais 2 anos de degradação emocional e física, escrevendo sonetos de regresso à infância, como se as canções, como a sua infância, fossem já um passado longe.

Às 6 da madrugada de um dia de 1982, Tordo, triste, fechou o seu bar no Castelo, o Cantador Mor, e, em vez de rumar a casa, ali a 2 passos, seguiu para o aeroporto da Portela e apanhou um avião para os Açores, para o Faial. Aí ficaria quase 4 anos em reclusão. No bolso levava as cantigas que escrevera, amores fracassados e felizes, deixava Ary, deixava os gémeos João e Joana (João é um botão de cravo rubro/Joana é uma rosa cor de Abril/dois filhos que eu embalo e que descubro/que sendo só dois podem ser mil), deixava os amigos e os palcos, deixava os amores, deixava a Lisboa que amava. Mas levava o esboço de uma cantiga que escrevera sozinho no seu bar, letra e música, uma música que era a sinopse da sua vida. Uma cantiga a uma mão – ele que estava acostumado à mão treinada do seu parceiro.
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'Adeus, Tristeza' era a sua legenda. A sua maioridade em nome só. Para se libertar de Ary, do vício de Ary, do génio de Ary. Para ser apenas Fernando Tordo e não um compère do maior escritor de canções, do maior poeta de canções em língua portuguesa. 'Adeus, Tristeza' é uma canção de revolta, uma canção que tenta escapar às emoções que o assolavam e tenta definir um rumo de futuro com base num passado.

Uma canção que resume a projeção de um futuro incerto, que o futuro iria ser o que Fernando Tordo quisesse. Uma anáfora da sua vida. Que tinha cantado de quase tudo e com quase todos, que tinha cantado em muitos palcos e para muita gente. Que tinha caído e se tinha levantado. Que tinha sido um cantor à solta. Que tinha tido amores, muitos, não compreendidos, que tinha tido beijos. Que tinha tido ilusões. Que tinha vivido enfim. E que a sua vida tinha valido a pena.

Agora, no Faial, mostrava que era capaz de seguir em frente, só. Que a gente boa e simples da ilha não merecia tristezas. Nem ele. Nem as cantigas. A imitar o que lhe revolvia o alento, deu o nome ao seu primeiro álbum desta sua nova vida ‘Anticiclone’. Tudo a condizer. Ainda teve tempo de ligar a Ary poucas horas antes da morte deste – uma conversa em forma de tatuagem de um passado comum demasiado cheio. Ainda teria tempo de regressar a Lisboa, rumo a uma nova vida. Ainda teria tempo de escrever as canções que ninguém tinha ainda ouvido.

Teria ainda tempo de ir a Díli cantar na praia da Areia Branca numa esplanada em frente ao mar de Timor. Teria ainda tempo de encher Coliseus. De mergulhar no mar do Algarve. De comover os outros com o seu olhar intenso de uma história onde cabem mil vidas. De homenagear poetas com canções que afinal ninguém ouviu. De se revoltar com a Troika, de acomodar a revolta na mala do inconformismo (que está sempre feita) e abalar para o Brasil.

Continua a ser, 50 anos depois, o nosso Fernando Tordo. O grande parceiro de Ary mas sobretudo o homem das letras, das cantigas, da voz aberta, da vida intensa. O homem que é da gente, que é da gente certa. Saravá, Fernando Tordo.

Na minha vida fui sempre um outro qualquer
Era tão fácil, bastava apenas escolher
Escolher-me a mim, pensei que isso era vaidade
Mas já passou, não sou melhor mas sou verdade.


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Verdes Anos", de Pedro Tamen

 

de julho de 2011

"Verdes Anos"




Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))