quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Eliana Potiguara_Brasil

Brasil

Que faço com minha cara de índia?
E meus cabelos
E minhas rugas
E minha história
E meus segredos?


Que faço com minha cara de índia?
E meus espíritos
E minha força
E meu Tupã
E meus círculos?


Que faço com minha cara de índia?
E meu toré
E meu sagrado
E meus “cabocos”
E minha Terra?


Que faço com minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?


Brasil, o que faço com minha cara de índia?


Não sou violência
Ou estupro


Eu sou história
Eu sou cunha
Barriga brasileira
Ventre sagrado
Povo brasileiro.


Ventre que gerou
O povo brasileiro
Hoje está só...
A barriga da mãe fecunda
E os cânticos que outrora cantavam
Hoje são gritos de guerra
Contra o massacre imundo.

- Eliane Potiguara, no livro "Metade Cara, Metade Máscara". Grumin Edições, 2018, p. 32-33.

domingo, 21 de novembro de 2021

Fernando Tordo_Adeus Tristeza


Daqui:



Fernando Tordo
DR

NOTÍCIAS
101 canções que marcaram Portugal #26: 'Adeus Tristeza', por Fernando Tordo - 07 JUNHO, 2020
‘Adeus Tristeza’ foi uma canção escrita a uma mão - e tanto que Fernando Tordo se acostumara à mão treinada do seu parceiro Ary dos Santos. É uma canção na ressaca da parceria mais fecunda da música portuguesa, uma canção-sinopse da sua vida, uma legenda da sua biografia. Esta é a 26ª de 101 canções que marcaram Portugal, uma rubrica que homenageia as cantigas que ficaram para a história da música portuguesa



JORGE CEREJEIRA



101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.


Em 1959, um pequeno monomotor Bonanza despenhava-se. A bordo seguiam Richie Vallens, J. P. Richardson e Buddy Holly, 3 dos grandes nomes a despontar no circuito rock and roll. Esse dia de tempestade ficou para a história como ‘o dia em que o rock morreu’. A última canção que Ary escreveu para a música de Fernando Tordo foi ‘O amigo que eu canto’, uma canção que, talvez não o soubessem, era uma canção de despedida.

Nesse dia de 1982, como na letra de ‘Tourada’, e à semelhança da data fatídica de 1959, acabaram-se as canções. Mais de 10 anos depois, mais de 600 canções depois, a dupla mais marcante da música portuguesa acabava aqui. O amigo que Ary cantava era Portugal na canção, mas poderia ser ele mesmo, como se pusesse na voz de Fernando Tordo os seus defeitos e qualidades, como que a redimir-se dos seus erros. Tem defeitos, é certo, como todos nós. É capaz de roubar, mas também sabe dar a camisa. Mas quando dentro dele a alma ganha a voz é tal como se fosse o som do nosso mar. E os versos vão por ali fora.

E este era o Ary. Era Ary a escrever uma canção a retratar-se – ainda que velando-se com o seu próprio país. Nesse dia, a canção seria escrita não na casa do poeta, como sempre acontecera, mas na casa de Tordo, no 1.º andar do prédio onde ambos viviam. A relação estava degradada. Estava no fim. O alcoolismo de Ary e o abismo à beira do qual estava Tordo não lhes permitia continuar. Nas veias das relações tumultuosas corre sangue vermelho. E esta relação, agora a branco e preto, fora feita da cor da amizade, das canções, das noitadas, das cumplicidades, dos risos, das conquistas, das consagrações, das ovações. Mas já não era a cores. E terminava ali, no ‘Amigo que eu canto’. Ary ficava órfão. Viveria mais 2 anos de degradação emocional e física, escrevendo sonetos de regresso à infância, como se as canções, como a sua infância, fossem já um passado longe.

Às 6 da madrugada de um dia de 1982, Tordo, triste, fechou o seu bar no Castelo, o Cantador Mor, e, em vez de rumar a casa, ali a 2 passos, seguiu para o aeroporto da Portela e apanhou um avião para os Açores, para o Faial. Aí ficaria quase 4 anos em reclusão. No bolso levava as cantigas que escrevera, amores fracassados e felizes, deixava Ary, deixava os gémeos João e Joana (João é um botão de cravo rubro/Joana é uma rosa cor de Abril/dois filhos que eu embalo e que descubro/que sendo só dois podem ser mil), deixava os amigos e os palcos, deixava os amores, deixava a Lisboa que amava. Mas levava o esboço de uma cantiga que escrevera sozinho no seu bar, letra e música, uma música que era a sinopse da sua vida. Uma cantiga a uma mão – ele que estava acostumado à mão treinada do seu parceiro.
.


'Adeus, Tristeza' era a sua legenda. A sua maioridade em nome só. Para se libertar de Ary, do vício de Ary, do génio de Ary. Para ser apenas Fernando Tordo e não um compère do maior escritor de canções, do maior poeta de canções em língua portuguesa. 'Adeus, Tristeza' é uma canção de revolta, uma canção que tenta escapar às emoções que o assolavam e tenta definir um rumo de futuro com base num passado.

Uma canção que resume a projeção de um futuro incerto, que o futuro iria ser o que Fernando Tordo quisesse. Uma anáfora da sua vida. Que tinha cantado de quase tudo e com quase todos, que tinha cantado em muitos palcos e para muita gente. Que tinha caído e se tinha levantado. Que tinha sido um cantor à solta. Que tinha tido amores, muitos, não compreendidos, que tinha tido beijos. Que tinha tido ilusões. Que tinha vivido enfim. E que a sua vida tinha valido a pena.

Agora, no Faial, mostrava que era capaz de seguir em frente, só. Que a gente boa e simples da ilha não merecia tristezas. Nem ele. Nem as cantigas. A imitar o que lhe revolvia o alento, deu o nome ao seu primeiro álbum desta sua nova vida ‘Anticiclone’. Tudo a condizer. Ainda teve tempo de ligar a Ary poucas horas antes da morte deste – uma conversa em forma de tatuagem de um passado comum demasiado cheio. Ainda teria tempo de regressar a Lisboa, rumo a uma nova vida. Ainda teria tempo de escrever as canções que ninguém tinha ainda ouvido.

Teria ainda tempo de ir a Díli cantar na praia da Areia Branca numa esplanada em frente ao mar de Timor. Teria ainda tempo de encher Coliseus. De mergulhar no mar do Algarve. De comover os outros com o seu olhar intenso de uma história onde cabem mil vidas. De homenagear poetas com canções que afinal ninguém ouviu. De se revoltar com a Troika, de acomodar a revolta na mala do inconformismo (que está sempre feita) e abalar para o Brasil.

Continua a ser, 50 anos depois, o nosso Fernando Tordo. O grande parceiro de Ary mas sobretudo o homem das letras, das cantigas, da voz aberta, da vida intensa. O homem que é da gente, que é da gente certa. Saravá, Fernando Tordo.

Na minha vida fui sempre um outro qualquer
Era tão fácil, bastava apenas escolher
Escolher-me a mim, pensei que isso era vaidade
Mas já passou, não sou melhor mas sou verdade.


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Verdes Anos", de Pedro Tamen

 

de julho de 2011

"Verdes Anos"




Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

(in Retábulo das Matérias (1956-2001))

sábado, 16 de outubro de 2021

As "Doce"_Difamação

Aqui:


Como Doce nunca foram ressarcidas pelo mal que lhes foi feito, lembra advogado



Uma recente estreia do filme Bem Bom, de Patrícia Sequeira, recuperou a memória de um dos grupos musicais mais populares de sempre em Portugal, como Doce. Mas também trouxe a memória amarga da campanha de difamação de que foram vítimas. O advogado delas, Agostinho Pereira de Miranda, conta ao DN como tudo aconteceu.

Maria joão martins




Teresa Miguel, Helena Coelho, Laura Diogo e Fátima Padinha: como Doce estavam no Canadá quando a história explodiu, em 1981.

Talvez tudo tenha começado com uma graçola boçal numa noite de copos. Ou com o vislumbre de uma cabeleira loura numa maca de hospital. Depois, tudo o que, em 1981, ainda subsistia de marialvismo na sociedade portuguesa deu lastro, um lastro tão grande que dura até hoje, precedilo que se transformaria numa das maiores campanhas de difamação do Portugal democrático. Os alvos? Laura Diogo, Helena Coelho, Fátima Padinha e Teresa Miguel, os quatro membros do grupo musical As Doce, essa popularidade entre filhos e graúdos não parava de aumentar, valendo discotecas de ouro, de platina, espetáculos cheios e um país inteiro a saber-lhes de cor como canções. Uma delas, dizia-se, teria sido violentamente sodomizada por um homem negro e atlético, a ponto de ter sido socorrida na urgência hospitalar. Depois de apresentar os nomes,

A história explodiu no princípio de dezembro de 1981, quando como Doce estavam em tournée no Canadá. A imprensa mais sensacionalista faz eco do suposto caso, como piadas fáceis são repetidas várias de vezes (mesmo em tempos tão anteriores às redes sociais) nos empregos, nos cafés, até nas escolas. Num instante, esqueceram-se como tribulações da vida política, os resultados da "bola", conforme peripécias da telenovela: só se falava nisto.


Ainda no Canadá, como Doce são informadas e passam, todas elas, uma procuração forense ao então jovem advogado Agostinho Pereira de Miranda para que represente em tudo o que se relacionasse com este caso.

Com pouco mais de 30 anos, Agostinho trabalhava no escritório do conhecido advogado anti-fascista Francisco Sousa Tavares e apresentava, no currículo, pelo menos dois casos de impacto mediático: em 1980, defendera o chamado "piratinha do ar", o adolescente, João Rodrigues de seu nome, que, nesse ano, ousara desviar um avião da TAP, mas também (em parceria com o advogado e jornalista, Miguel Sousa Tavares) Roberto Martelli, o membro das Brigadas Vermelhas que os serviços secretos italianos tinha surpreendido em Lisboa. Dando-se o caso de ser amigo de António Avelar de Pinho (autor de muitas letras das Doce, como de muitos outros artistas portugueses na época), tornar-se-ia a escolha natural dos quatro jovens postas em tal aflição.

"A sensação que eu sempre tive", conta agora ao DN, Agostinho Pereira de Miranda, "é que o primeiro impulso delas foi contactar o advogado da sua editora, a Polygram, que terá dito que nada havia a fazer. A partir daí foram um bocado deixadas à sua sorte. Por sugestão do António Avelar de Pinho, constituíram-me como seu advogado ". De regresso a Portugal, Laura, Lena, Fátima e Teresa apresentam queixa na Polícia Judiciária contra os alegados autores do boato, João Duro e Guilherme Martins, membros do corpo clínico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e o advogado requer uma certidão negativa deste estabelecimento de saúde, certificando que nenhuma delas tinha sido ali atendida no período em que supostamente ocorrido os acontecimentos. “O caricato de tudo isto”, recorda Pereira de Miranda, “

Para o advogado, o boato prosperou porque "todas as instituições falharam: a Ordem dos Médicos, a RTP, o Sindicato dos Jornalistas e, antes de qualquer outra, a editora delas. No saldo final, foi esse comportamento irresponsável das instituições e que contribuiu para a sensação de falhanço que, de algum modo, se apoderou delas. "Ao longo do processo, testemunhou o efeito devastador que a situação causava nas suas involuntárias protagonistas: "A minha ideia era fazer uma conferência de imprensa mal elas chegassem ao aeroporto de Lisboa para que imediatamente se fizesse o contra-ataque. Mas percebi que era impossível já que estavam completamente arrasadas. " Ao longo do processo, Pereira de Miranda testemunha o desamparo dos artistas, todas muito jovens (Lena Coelho não tinha ainda 20 anos): "A mais forte era porventura a Teresa Miguel, que era também a mais velha. A Laura, então com 21 anos, era muito ingênua e tinha poucos instrumentos para lidar com todo aquele drama. " Como é visualizado no filme de Patrícia Sequeira, Laura Diogo, antiga manequim, namorava então com um estudante negro, que, não aguentando a pressão, a conseqüência do boato:

Bem Bom, filme de Patrícia Sequeira, recuperou a memória das Doce.

A queixa foi apresentada a 3 de dezembro de 1981 e como Doce prestaram declarações na PJ a 15 de janeiro seguinte, havendo mais tarde também uma participação à PSP de Belém. Durante quatro anos o caso e na justiça (primeiro com Pereira de Miranda como advogado e depois com o seu colega de escritório, Miguel Sousa Tavares) até ficar à espera de produção de melhor prova."O que choca em tudo isto", afirma o advogado, "é uma impunidade. Estes dois médicos desencadearam a campanha ao dizerem que alguém que eles conheciam (e que nunca identificaram) tinha cosido uma das cantoras das Doce, sem nunca especificar qual. Tanto quanto sei, eles nunca foram incomodados por tais declarações, tal como a RTP, então uma única televisão a operar em Portugal, alguma vez responsabilizou os seus profissionais que difundiram, para o ouvir público, piadas acerca do assunto. "

Como Doce alguma vez foram ressarcidas ou indemnizadas pelo mal que lhes foi feito? "Nada, zero. Esta é uma situação de exploração despudorada e criminosa porque infligiu um dano permanente a estas quatro mulheres", responde o advogado que hoje trabalha exclusivamente na associação por si formada, PróPublica - Direitos e Cidadania, onde lida com muitas questões relacionadas com violência doméstica e de gênero. "Antes de ser advogado", conta, "fui inspetor da PJ e lidei com um mundo de extrema agressividade mas nunca me habituei. Um caso como o das Doce é muito revoltante." E se em vez de 1981, a data dessas ocorrências acontecimento 2021, o que aconteceria? "Não creio que fosse muito diferente porque, nas suas camadas mais profundas, a sociedade portuguesa não mudou assim tanto."E conclui Agostinho Pereira de Miranda: "O trágico é que a nossa lei continua a ser demasiado branda quando a reputação de alguém é destruída para sempre."

dnot@dn.pt

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Ingratidão


"Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição


"Por ti, Portugal, eu juro!" - é um documentário / reportagem sobre ex-comandos africanos e traz memórias de horror para a história de uma "revolução sem sangue".
Valentina Marcelino29 Setembro 2021 — 00:21










1 / 6




Cerca de 600 homens integraram três companhias de comandos africanos na Guiné, uma tropa de elite única exclusivamente constituída por negros que serviu Portugal na Guerra do Ultramar. Com a independência, foram abandonados pelo Exército português, que os deixou para trás. Foram perseguidos, torturados e muitos fuzilados.


Cinquenta anos depois, as suas versões da história foram ouvidas e reunidas num projeto de tese de doutoramento e num documentário. Os poucos ainda sobreviventes reivindicam direitos que lhes tinham sido assegurados e nacionalidade portuguesa.

"O governo português pagará ainda as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tenham direito quaisquer cidadãos da República da Guiné-Bissau por motivos de serviços prestados às Forças Armadas portuguesas. [...] O governo português participará num plano de reintegração na vida civil dos cidadãos da República da Guiné-Bissau que prestem serviço militar nas Forças Armadas portuguesas e, em especial, dos graduados das companhias e comandos africanos."

Este foi o compromisso assumido no Acordo de Argel, que reconhece a independência da Guiné-Bissau, assinado a 26 de agosto de 1974 pelos então ministros dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, e da Coordenação Internacional, António de Almeida Santos.

Dos cerca de 400 mil africanos negros que, como portugueses que eram na altura, combateram do lado das Forças Armadas Portuguesas (FAP) contra os movimentos de libertação em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, o Ministério da Defesa Nacional assume apenas o reconhecimento de "direitos inerentes, consoante cada caso concreto", a "800 militares de origem africana, que combateram pelas Forças Armadas Portuguesas na Guerra do Ultramar, qualificados como deficientes militares". O Gabinete de João Gomes Cravinho não especifica ao DN nem o país de origem nem a que unidades pertenciam.

Uma das companhias de comandos africanos em desfile em Bissau

© Arquivo pessoal do Coronel Raul Folques



Julião Correia, Luís Sambu, Bubacar Djaló, Mário Sani, Lamine Camará, Paulo Rodrigues (fotos em cima, da esquerda para a direita) não estão entre eles. As suas vozes representam as de uma maioria de ex-combatentes portugueses (na altura era essa a sua nacionalidade) e trazem uma história que não é a dos vencedores, nem sequer a conveniente para as narrativas comuns sobre o papel desempenhado por estes homens, que integraram uma unidade de elite do Exército português promovida pelo general António de Spínola - a mesma a que pertenceu o mais conhecido comando africano na Guiné, Marcelino da Mata, falecido em Portugal no início deste ano. (Marcelino da Mata fez parte das companhias de comandos mistas antes de 1971 e, depois da Companhia de Operações Especiais, mas nenhuma delas parte do Batalhão de Comandos da Guiné).

Para a Guiné independente foram considerados traidores e não houve contemplações. Para os revolucionários de abril eram um incómodo e foram atirados para o lado sombrio da história.

Sorriso e sangue

Os testemunhos deste documentário fazem parte de um grupo de cerca de três dezenas de ex-comandos que foram ouvidos na Guiné-Bissau por Sofia da Palma Rodrigues, doutoranda em Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, no âmbito de um projeto de tese sobre este tema, e por Diogo Cardoso, ambos jornalistas da revista digital Divergente, onde será publicado um documentário completo nos meses de novembro, dezembro e janeiro (veja aqui a entrevista aos autores), um trabalho que contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e do CES.

"Por ti, Portugal, eu juro!" traz novas versões sangrentas e de horror, sem cravos, para a história de uma romântica "revolução sem sangue".


Os seus testemunhos são um murro no estômago e obrigam mesmo, a quem ainda não o tinha feito, a olhar de outra forma para este período da história, quando Spínola assumiu o cargo de governador-geral daquele país e comandante-chefe das FAP.

No seu plano, ""Por Uma Guiné Melhor", prometeu melhores condições de vida aos então portugueses negros daquele território, para que deixassem de aderir à causa do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).


COLONIALISMO"Estes homens ficaram fora da história, num limbo cinzento"

Na linha da frente deste projeto, a que Cabral chamou política de "sorriso e sangue", estavam os comandos africanos, combatentes escolhidos entre os mais fortes para as missões mais complexas de contrassubversão, como braço armado do desígnio de Spínola que promovia a imagem de uma nação integradora e multirracial.

"Sou português, em todos os sentidos sou português. Juro!", declara para a câmara Julião Correia, soldado da 1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné, de braço erguido. "Eu não jurei duas bandeiras, apenas uma", afirma Lamine Camará, da 2.ª Companhia, que não esconde a sua revolta: "Sinceramente, arrependo-me de não ter ido para a guerra de libertação. Virei-me contra a minha família, meus irmãos. E afinal por quem lutei? Lá no Ministério da Defesa puseram miúdos que nada fizeram pelo país. Eu fiz mais por Portugal do que aquela gente que está lá", afirma indignado.


"Abandonaram-nos. Sinceramente, abandonaram-nos completamente. Ficámos filhos, sem pai e sem mãe [...]. Portugal tem todos os nossos documentos [...]. Sou português para sempre. O meu sentido é português. Porque jurei a minha pátria, sou português", declara, de olhos embargados de lágrimas, Mário Sani, que foi perseguido depois de 1975 e esteve fugido durante mais de três décadas em vários países da África Ocidental.

"Encontrámo-nos com Mário Sani pela primeira vez em 2018. Regressara há pouco de uma fuga que durou mais de 40 anos, depois de ter sido perseguido e preso pelo PAIGC em 1975. O seu corpo magro e periclitante estava presente, mas a vida do homem fardado, jovem e forte, que nos fitava da fotografia pendurada na parede, parecia ter sido sugada", é contado na reportagem.
Sem escolha ideológica

Sani lembra-se bem do dia em que viu Spínola pela primeira vez. Segundo o trabalho de Sofia Palma Rodrigues e Diogo Cardoso, "tinha acabado de ser ferido numa perna quando o governador o foi visitar ao hospital. Disse-lhe para ter coragem, defender a terra, defender a bandeira, e até lhe apertou a mão - a mesma mão a que, anos mais tarde, seriam arrancadas as unhas como castigo pelo serviço prestado a Portugal".

Mário Sani contou-lhes que o general do monóculo "falava sempre muito bem. Dava-nos coragem durante a instrução militar. Não sabíamos que estávamos a ser enganados, que era mobilização. Quando nasces nas mãos de alguém, pensas que tudo o que essa pessoa te diz é verdade, ou não? Não conhecia a finalidade da guerra, achava só que o PAIGC era o agressor. Só depois da independência vim a perceber", recordou.

Sani, Julião Correia e Lamine Camará morreram já depois de terem dado o seu testemunho, antes de receberem, ou as suas famílias, qualquer apoio português.

"A maioria destas pessoas não fazia uma escolha ideológica. As pessoas eram empurradas para um lado ou para o outro. Ou porque viviam em Bissau e iam para as FAP, ou porque estavam no campo e iam para o lado do PAIGC. Não era uma escolha", assinala Sofia Palma Rodrigues.

Esta tarde, este trabalho vai ser apresentado numa sessão privada no Museu do Aljube ("porque tem uma bandeira da memória e este trabalho é sobre a memória") e vão estar presentes dois ex-comandos, Abdulai Djaló, 73 anos, e Juldé Jaguité, 71, das 1.ª e 2.ª Companhias, respetivamente. Ambos residentes atualmente em Portugal.

Abdulai Djalõ, 73 anos

© Diogo Cardoso / Divergente

"O pai de Abdulai era perseguido pela PIDE e ele entendeu que a melhor forma de defender a vida da família era ir para os comandos. Depois do 25 de Abril, quando conseguiu vir para Portugal e enquanto esperava a ajuda da Associação de Comandos, dormiu numa cadeira encostada a um prédio num bairro de Chelas. Depois foi viver para uma casa onde estavam outros antigos tropas. Passados dois ou três anos, a Associação de Comandos conseguiu-lhe um lugar como porteiro num parque de campismo, mandou vir a mulher e os filhos e viveram vários anos numa tenda. Hoje tem um grande orgulho de ter conseguido comprar uma casa", conta Sofia Palma Rodrigues.

Juldé Djanguité, 71 anos

© Diogo Cardoso / Divergente

Juldé era furriel e teve de fugir depois do 25 de Abril para o Senegal, onde esteve "bastantes anos" escondido", até que conseguiu que a embaixada portuguesa o autorizasse a vir para Lisboa. "É muito consciente dos seus direitos. Trabalhou cá e, com a ajuda da Associação de Comandos, num processo que demorou anos, tem uma reforma. Mas ainda assim é de soldado, e não de furriel, que era o posto dele, que não lhe foi reconhecido", assinala a autora.

Amanhã, dia 30, será feita uma apresentação pública do documentário no auditório do Padrão dos Descobrimentos, em Belém.

Contactada pelo DN, a Associação de Comandos recorda que em 1977 conseguiu resgatar "cerca de 90 militares africanos que tinham fugido para o Senegal para escapar aos fuzilamentos". O presidente José Lobo do Amaral assinala "as enormes dificuldades e sofrimento que estes homens passaram".

Sublinha que a Associação "foi dando algum apoio para a integração" destes militares em Portugal, mas que "só hã cerca de 12 anos conseguimos resolver o problema da nacionalidade a um número razoável deles".

Lobo do Amaral defende que "todos estes combatentes" recebam "os seus direitos, principalmente no que diz respeito ao apoio na doença que, com a idade já avançada e as mazelas da guerra, será o mais urgente"

O coronel Raul Folques comandante do Batalhão de Comandos da Guiné, que integrava as três companhias de comandos africanos. "É urgente ouvir estas pessoas e fazer justiça", afiançou ao DN. Este oficial foi destituído do seu posto logo após o 25 de Abril e entende que "as reivindicações de todos estes comandos são válidas. Foi feita uma grande injustiça a estes militares, que se consideravam e consideram ainda portugueses. Foram humilhados, ostracizados, muito maltratados a todos os níveis. Roubaram-lhes a nacionalidade, e esse é um direito que nunca lhes devia ter sido retirado", assevera.

Nos últimos anos, a Associação dos Filhos e Viúvas dos Antigos Combatentes Portugueses da Guiné tem organizado manifestações à porta da Embaixada de Portugal em Bissau a reivindicar o pagamento de pensões de sangue e invalidez.

É tarde demais para estas pessoas? "Não é. Elas não sentem que seja tarde demais. Enquanto estiverem vivas, se forem reconhecidas já é bom", diz Sofia Rodrigues."

in: "DN"

valentina.marcelino@dn.pt

domingo, 1 de agosto de 2021

Otelo e a Revolução_ O Lado A

  

(a Otelo) - 25.4.74/25.7.21

não foi a morte que te matou
hoje
foi a vida, esta, que da revolução 
seus filhos devorou:

sonho
que um dia teve asas e voou.

a cada passo teu
fica a certeza de - muitos - não te terem perdoado o fim do fascismo.
(fascismo que nas suas mentes perdurou)

lmc

........



DAQUI: Otelo Saraiva de Carvalho

"Se isto não é um herói..."

Paulo Moura in: Jornal "Público", 

24 de Abril de 2009


"Ele não escolheu o protagonismo. A revolução era urgente, mas ninguém a fazia. Quando era preciso agir, mas, por medo, inépcia ou calculismo, ninguém agia, ele foi herói. Depois continuou a desempenhar o seu papel, sem perceber que o pano já tinha caído. Eis os factos, segundo uma longa entrevista com Otelo Saraiva de Carvalho.

* Paulo Moura
24 de Abril de 2009, 9:09


Otelo: "Comecei a tomar decisões. Podem ter sido as piores, mas alguém tinha de tomar decisões" ADRIANO MIRANDA

Nevoeiro cerrado, Lisboa, rotunda da Encarnação, 6h30 da manhã de 16 de Março de 1974. Otelo está no meio da praça a ver se a Revolução acontece sozinha. Vai a uma cabine fazer um telefonema, sai e dá alguns passos perscrutadores no terreiro vazio. Tem uma camisola de lã castanha por cima do uniforme e uma pistola 6.65 no coldre, carregada. Olha em redor. Estacionado na berma está um Ford Capri cor bordeaux, de capota negra. Um tipo de gabardina e chapéu fuma um cigarro, de pé, junto à porta aberta do carro.

Quem era?

“Pide, claro”, diz Otelo, identificando um agente da polícia política.

O inimigo já sabia de tudo. Mais do que o próprio Movimento. Fora alertado e ia reagir. Mas contra quê? Uma coluna militar vinda das Caldas da Rainha devia estar a chegar à rotunda, mas todas as outras iniciativas tinham falhado. Que iria acontecer?

“O pide estava ali parado em posição estratégica”, conta hoje Otelo Saraiva de Carvalho, 73 anos, no seu apartamento de Carnaxide. “E eu vi logo que se preparava um grande granel.”

Otelo, 37 anos, um homem bonito, atlético, determinado e corajoso, um líder nato, no auge da sua vitalidade, não é mais do que um fantasma no meio da praça. Ainda não experimentou a sua força. Está à espera que as coisas aconteçam. Perdeu o controlo da situação. Está à espera que o regime caia com um sopro. Está a espera de um banho de sangue. Está à espera de ser preso. De que está ele à espera?

Moçambique, anos 40. Cumprindo ordens da mãe, Otelo leva o empregado doméstico da família à administração do concelho. Ao lavar a loiça, o rapaz partiu um copo, e portanto tem de ir ao sipaio levar umas palmatoadas nas mãos.

“Não vais nada. Eu não te levo lá”, diz, pelo caminho, Otelo ao criado, que é mais velho do que ele.

“Mas eu tenho de aparecer com as mãos inchadas.”


Foto ADRIANO MIRANDA  “Ó pá, sei lá, esfrega-as com urtigas.”

Otelo é amigo do criado, bem como dos outros miúdos negros do bairro onde vive, em Lourenço Marques, e com quem costuma jogar futebol. Mas se o criado se desleixa no trabalho, ou bebe uns copos a mais, é submetido a formidáveis sessões de pancada do pai de Otelo.

“De repente, aquela fraternidade que existia num jogo de futebol de rua transformava-se num distanciamento, quando o preto tinha de levar uns tabefes, ou um arraial de batatada”, recorda Otelo. E quando punha em causa o racismo vigente, respondiam-lhe que na África do Sul ainda era pior. Para o confirmar, meteu-se num comboio e viajou, durante 18 horas, até Joanesburgo. Tinha 17 anos. “Era chocante. Havia filas para europeus e para não-europeus. Em Moçambique o racismo era semelhante, embora mais encapotado.”

Otelo tornou-se rebelde. Só pensava em fugir, em libertar-se. No liceu, admirava um grupo de colegas mais velhos, de que faziam parte os irmãos Fernando e José Gil, Eugénio Lisboa, Hélder Macedo, Rui Knopfli, Rui Guerra. Eram brilhantes, gostavam de classificar o liceu Salazar como “o maior centro intelectual comunista da África Austral”, e costumavam reunir-se em casa do Fernando Gil, para discutir política. Por essa razão, começaram a ser presos e interrogados pela PIDE, que rondava o liceu. Otelo não se conformava. Adolescente, tentou visitar os amigos na prisão. Mas não o deixaram entrar.

“Eu só pensava em conhecer o mundo, abrir horizontes. Queria ser actor, para poder desempenhar uma multiplicidade de papéis. Estudar em Nova Iorque, no Actor's Studio, onde estavam o Marlon Brando, o Montgomery Cliff, o Paul Newman.”

O avô Otelo
O avô paterno de Otelo foi actor. Era um homem baixinho e gordo, e por isso nunca conseguiu representar outros papéis que não fossem os de mordomo. E no entanto formou-se com 20 valores no conservatório de arte dramática. Otelo Augusto Fernandes de Carvalho tornou-se empresário de teatro. Criou a sua própria companhia, e actuou no Salão Foz, em Lisboa. Mas em 1930 foi em tournée para Angola, onde, aos 44 anos, morreu subitamente de um AVC. Deixou em situação económica precária a mulher e três filhos. O mais velho, que sonhava vir a ser oficial da Marinha, foi obrigado, aos 17 anos, a trabalhar para sustentar a mãe e os irmãos. Escreveu a um tio que era inspector superior dos Correios, Telégrafos e Telefones de Lourenço Marques, e ele conseguiu-lhe um emprego como aspirante dos correios.

Nunca recuperou da frustração e foi talvez por isso que quando o filho Otelo quis seguir a carreira dos palcos, como o avô Otelo, se recusou a ajudá-lo ("de mim, não levas um centavo!"), o que levou o jovem actor em potência a optar pela carreira militar, a conselho do avô materno.

Este fora um homem bem-sucedido. Assentou praça como soldado e ofereceu-se como voluntário para a Índia. Foi lá que casou e teve duas filhas. Fez a sua carreira no chamado Exército Ultramarino, foi colocado em Moçambique. Com 16 anos, a filha mais velha conheceu o pai de Otelo, de 21, funcionário dos Correios, casou com ele, em Julho de 1934, e deixou de estudar. Otelo nasceu em Lourenço Marques em 1936, “fruto das andanças do Império”.

Quando, em 1955, terminou o liceu, candidatou-se à Escola do Exército, porque o avô materno o entusiasmou com os valores da vida militar: a coragem, a frontalidade, a camaradagem, a lealdade.

“Filho, escolhe a vida militar, porque vais sentir-te bem. É uma vida disciplinada, mas tu vais adaptar-te. Porque, cá fora, a vida civil é uma selva de competição, de invejas, com cada um a querer passar à frente do outro”, explicou o avô.

Otelo acreditou, e ingressou na vida militar, apesar de, um ano antes, ter chumbado na milícia da Mocidade Portuguesa. “Não possui a mínima vocação militar”, fora a apreciação final.

“Há em mim uma série de contradições imensas”, confessa Otelo. Em alternativa ao teatro, escolheu as Forças Armadas, como meio de libertação. “Eu tive na altura a noção de que só ali poderia fazer alguma coisa para combater o poder. Porque era ali que estavam as armas. E só com armas seria possível fazer alguma coisa.”

O professor preso
Na Escola do Exército, organizou um núcleo de teatro, como já tinha feito no Liceu Salazar, em Lourenço Marques. Foi aluno excelente nas áreas de comando, regular nas disciplinas teóricas.

Numa prova oral de Matemática, o mestre-examinador major Alcides Oliveira chama o aluno Otelo ao estrado. Este, que desde que começou a namorar colocou os livros completamente de lado e já reprovou um ano, faz uma prova miserável.

“Bem, Saraiva de Carvalho, vamos considerar a coisa assim: eu sei que você faz para aí umas imitações, entre as quais a minha. Pois vou conceder-lhe uma última oportunidade. Você vai imitar-me. Se eu gostar da imitação, dou-lhe 10. Se não gostar, você chumba.”

Quando Otelo termina, Alcides Oliveira aplaude. “Está perfeito. Tem 10. Passou.”

Foi com outro professor, o major Augusto Pastor Fernandes, que percebeu que as tentativas dos militares para derrubar o regime já tinham começado.

11 de Março de 1959. Vai realizar-se o jogo de basquete da equipa da Academia Militar (a que Otelo pertence) contra a do Instituto Superior Técnico, a contar para o Campeonato Universitário. Para a manhã seguinte está marcado um teste da disciplina de Tiro de Artilharia e não vai haver tempo para estudar. O jogo, obviamente, é mais importante e Otelo pede ao chefe de curso que telefone ao professor, implorando pelo adiamento do ponto.

Pastor Fernandes atende o telefone.

“Adiar? Com certeza. O ponto fica adiado, obrigatoriamente, sine die. Isto porque, neste momento, estão aqui em minha casa dois agentes da PIDE que me vão levar preso para Caxias, ou para a Trafaria, ainda não sei bem.” Pastor Fernandes, que participou na chamada Intentona da Sé, será “deportado” para Timor, e depois passará à reserva.

“Nós gostávamos muito dele. Era um homem de grande envergadura moral e intelectual. Foi um choque para mim.” No ano anterior, Humberto Delgado fizera a sua campanha e Otelo, aproveitando a boleia, num Citroën 2 cv, de duas francesas amigas da namorada, viajou até Paris. A viagem demorou uma semana, apesar da pressa que Solange e Michelle tinham em chegar, para votarem a favor da autodeterminação da Argélia no referendo organizado por De Gaulle. As conversas versaram quase sempre sobre isso, sobre a democracia dos países europeus e sobre o regime ditatorial português. Otelo sentiu-se humilhado por ser estudante militar num país de regime fascizante.

“Os militares são a principal base de apoio do regime”, diz uma.

“Isso não é bem assim. Nós, os militares, não estamos assim tão submissos ao regime”, responde Otelo.

“Mas como, se vocês são o derradeiro bastião da ditadura?”, argumenta a outra. E Otelo contra-ataca:

“É dentro da instituição militar que eu tenho a possibilidade de derrubar a ditadura.”

“Isso nunca vai acontecer, porque vocês são a última defesa que o regime tem, face a uma insurreição que possa surgir.”

“Não”, insiste Otelo, tentando convencer, ao mesmo tempo, as raparigas e a si próprio. “Eu vou ser militar para derrubar a ditadura.” Três anos depois será enviado para Angola, para defender a pátria dos terroristas.

E é lá que, pela primeira vez, toma contacto com o Portugal autêntico. “As condições terríveis em que vivíamos levavam a criar laços de estreita proximidade com os soldados, que eram gente do povo. Camponeses, operários. Comandando o meu pelotão, tinha, por vezes, de acampar a céu aberto, com uma parelha de combate, um soldado. Estávamos ali a olhar para as estrelas e falávamos da vida.

‘Eu sou trabalhador numa fábrica’

‘Sim? E como é? Quanto ganhas?’

‘Eh pá, a gente ganha muito mal. Mal dá para a família. A minha mulher trabalha nas limpezas e lá vamos conseguindo...’

Uns trabalhavam no campo, de sol a sol, outros tinham de sustentar os pais, eram um mundo de gente miserável, com que eu nunca tinha contactado. Tive pela primeira vez uma perspectiva do que era o povo e da animosidade surda em que ele vivia, em relação ao regime. Os soldados contavam-me que se na fábrica onde trabalhavam faziam um ligeiro protesto contra os salários miseráveis, o patrão telefonava à GNR local, que ia lá obrigá-los a trabalhar à cacetada.

‘Ó meu alferes, vocês é que podiam fazer qualquer coisa em nosso favor... Vocês é que têm as armas’, diziam-me eles. E eu pensava: sim, é verdade, nós temos essa obrigação para com este povo.”

A consciência de que a vida no país era injusta precedeu em vários anos a da própria injustiça da guerra colonial. “Quando fomos enviados para ‘Angola rapidamente e em força’, como disse o Salazar, estávamos convencidos de ir proteger as populações portuguesas indefesas, e restabelecer a paz. Só com o tempo começámos a tomar consciência do que se passava.”

Admiração pelo Velho
Foi um processo lento. Nas reuniões do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas, já em 1973, muitos militares ainda recusavam terminantemente a ideia de pôr fim à guerra. Mas foi ganhando terreno a noção de que era preciso resolver o conflito de outra forma. Até entre alguns oficiais superiores que se notabilizaram pela fidelidade ao regime, como era o caso de António de Spínola.

Como começasse a ver a carreira a fugir-lhe, aos 52 anos, o ambicioso e então ainda tenente-coronel Spínola ofereceu-se como voluntário para comandar um batalhão em Angola. Já não era um jovem, usava monóculo, luvas brancas de pelica, camuflado e pingalim, mas ia para o mato com a sua tropa, dormindo em tendas, atravessando rios a pé, o que lhe valeu um imenso prestígio nas Forças Armadas. Foi nomeado para o conselho de administração da indústria de siderurgia de Champalimaud, o que lhe permitia encomendar, para o seu batalhão, jipes e camiões blindados com chapa de ferro, helicópteros e toda uma panóplia de equipamento com que as outras unidades em África apenas sonhavam.

“Fez uma guerra de luxo, era um grande combatente, foi idolatrado e subiu rapidamente na carreira”, conta Otelo, sem esconder a admiração pelo “Velho”, como era conhecido. Em 1968 já é oficial general na Guiné, e pouco depois governador da província, onde se rodeia de um escol notável de oficiais, como Rafael Durão, Almeida Bruno ou Manuel Monge.

É nessa altura, e por influência desses oficiais, que a sua perspectiva em relação à guerra se altera, até chegar à conclusão de que a solução teria de ser, não militar, mas política. Ele, de quem circulavam lendas de façanhas sanguinárias contra as populações autóctones, toma agora a iniciativa de organizar os congressos da Guiné, uma experiência de democracia directa que Otelo nunca mais esquecerá.

Durante três dias, representantes das tabancas da Guiné (das zonas controladas pelas forças portuguesas, obviamente) vinham a Bissau e reuniam-se numa sala de espectáculos para discutir os problemas das suas regiões. Os oficiais tiravam notas das intervenções dos representantes do povo e depois tomavam as providências necessárias. Alguns dos líderes indígenas, nas suas vestes de cerimónia, imaculadas, louvavam as obras dos militares colonizadores. Mas outros criticavam duramente os abusos e maus-tratos por parte dos administradores locais, sem qualquer receio.

Spínola queria conquistar a confiança das populações, e Otelo ajudou-o, nas funções que desempenhou nas subsecções de Imprensa e Acção Psicológica, e depois como verdadeiro Relações Públicas do general. Produzia e coreografava festas e cerimónias, recebia jornalistas nacionais e estrangeiros. E ainda conseguiu reunir um grupo de teatro e uma banda, com o Fernando Girão, que fez uma tournée à volta da Guiné. Mas foi nessa altura que o Chefe de Estado, Américo Tomás, promulgou o decreto-lei 353/73, o início do rastilho que levaria à revolução.

Segundo o diploma, os oficiais oriundos de milicianos poderiam entrar para o Quadro Permanente, através da frequência de cursos intensivos na Academia Militar. A medida destinava-se a incentivar a entrada para os quadros das Forças Armadas de jovens que provinham de cursos civis, para prover às necessidades da guerra. Mas desagradava aos oficiais do Quadro Permanente, principalmente os capitães, que precisaram de vários anos de estudo na Academia Militar para chegar à sua patente.

Os protestos começaram logo. Na Guiné e no Continente, houve reuniões, abaixo-assinados, manifestos. Mais tarde Marcelo Caetano revogaria o decreto, aumentaria os salários dos capitães, mas o Movimento já estava em marcha e era imparável. 

O regresso à metrópole
A comissão de Otelo na Guiné termina e ele regressa à metrópole, onde é colocado como professor adjunto de Táctica de Artilharia na Academia Militar. Mas mete uma licença, porque tem outros afazeres.

Após uma reunião, em Outubro de 1973, no apartamento do capitão Diniz de Almeida, no Bairro do Rego, o capitão Vasco Lourenço dá boleia a Otelo, cujo carro ainda não chegou da Guiné. Têm um furo, na Avenida de Berna.

“Eu não sei o que é que tu pensas, Vasco, mas ultrapassada esta parte da luta do Movimento dos Capitães, que praticamente já ganhámos, acho que podemos ir muito mais longe, e criarmos condições para derrubarmos o Governo. Que é que tu achas?”, diz Otelo, enquanto mudam o pneu.

“Eu penso exactamente como tu”, responde Vasco Lourenço.

“Então vamos para a frente. Mas com calma, para não chocar os camaradas.”

Numa das últimas reuniões ainda na Guiné, a 25 de Agosto, na sala do Agrupamento de Transmissões, para aprovar um documento de protesto contra o decreto, um capitão engenheiro, Jorge Golias, toma a palavra e declara, exaltado:

“Estamos a perder demasiado tempo a pensar e discutir sobre o conteúdo do documento, quando devíamos era preparar-nos para a revolução armada, pois o que interessa é abater o regime, e isso só se consegue à porrada.”

É o pânico na sala, e a maior parte dos participantes quer abandonar a reunião.

“Não, nisso eu não alinho”, dizem. E o Golias, isolado, acaba por calar-se.

Sábado, 24 de Novembro de 1973. A reunião realiza-se num armazém nas traseiras da Colónia Balnear Infantil de O Século, em São Pedro do Estoril. Estão presentes os elementos das comissões coordenadora e consultiva e oficiais de patente mais elevada. Ao todo, 80 camaradas. O objectivo é a eleição de uma Comissão Coordenadora efectiva, que represente o Movimento. Quando ninguém espera, o tenente-coronel Luís Banazol faz um discurso, com voz rouca: “A única via possível para a reconquista do prestígio há muito perdido pelas Forças Armadas é o derrube pela força do Governo marcelista através de um golpe militar e o fim da ignominiosa guerra colonial...”

Burburinho na sala.

“Meus senhores, sejamos realistas!”, grita o major Vítor Alves. E acaba por se aprovar a continuidade da guerra, exigindo embora melhor armamento.

“Naquele momento, o nosso objectivo já era o derrube do Governo”, explica Otelo. “Mas precisávamos de generais, para constituirmos um directório militar que assumisse o poder depois da queda do Governo, credibilizando a revolução. Não vamos aparecer, nós os capitães, e dizer: o poder é nosso.”

Em Janeiro, Spínola, regressado da Guiné, é nomeado vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Otelo e Vasco Lourenço vão falar com ele. Informam-no de que o Movimento o elegeu, juntamente com Costa Gomes (os dois generais mais prestigiados do país), para constituírem o directório militar pós-revolução.

“Ok, tomo conhecimento e fico à espera”, diz Spínola. “Mas tomem cuidado.”

Em Fevereiro, Spínola tem pronto o livro que anda há meses a escrever, Portugal e o Futuro, em que advoga uma solução política para o problema das colónias. Otelo vai a descer a Rua do Telhal e um Mercedes pára no semáforo vermelho. Uma buzinadela fá-lo voltar-se. Vê o vidro traseiro abrir-se e uma luva de pelica a chamá-lo.

“Olá Otelo, está bom?”, diz Spínola. “Quer saber de uma coisa? O Marcelo Caetano não me deixa publicar o meu livro.”

“Ó meu general, mas o livro que está a escrever não é sobre a política colonial?”, pergunta Otelo.

“É esse mesmo. O Marcelo não mo deixa publicar. Entreguei-lhe um exemplar e ele diz que não posso publicar, porque advoga uma política completamente oposta à do Governo.”

“E qual é a posição do general Costa Gomes?”

“O Chico está comigo. Já deu luz verde para a publicação. O Marcelo é que diz que se demite se eu publicar.”

“Ó meu general, mas é isso mesmo que nós queremos. Se o livro provocar a demissão do Governo, óptimo. Meu general, publique o livro, mesmo contrariando o Marcelo Caetano. Nós apoiamos”, diz Otelo, assumindo já, individualmente, as decisões fundamentais do Movimento.

“Vocês estão comigo? Apoiam?”

“É evidente meu general.”

Dias depois, Portugal e o Futuro está nas livrarias. Vende 100 mil exemplares numa semana. Marcelo cumpre o prometido e apresenta a demissão a Américo Tomás, mas este não a aceita. Antes ordena a Marcelo que exonere Spínola e Costa Gomes. Para haver um pretexto para o fazer, organiza-se a chamada Brigada do Reumático. Chefes militares, comandantes das forças militarizadas, da Legião Portuguesa e da PIDE, em conjunto com os ministros, vão ao Palácio de S. Bento, a 14 de Março, manifestar a sua lealdade a Marcelo.

Três dias antes, Otelo recebe um telefonema do ajudante de campo de Spínola, António Ramos, que, muito nervoso, o convida para almoçar.

“O nosso general está numa posição tramada”, começa ele. “Já viste, está anunciada esta manifestação de generais...”

“Pois está, mas eles não representam nada”, diz Otelo.

“Pois, mas eles vão apresentar a sua fidelidade ao Marcelo e pedir a continuidade da guerra, e o nosso general e o general Costa Gomes vão ser exonerados.”

“Pois, isto não deu o resultado que esperávamos. Mas qual é a alternativa? O nosso general propõe alguma coisa?”

“O nosso general propõe que os oficiais do Movimento se fardem com o uniforme número 1, com faixa, espada, luvas brancas e condecorações, e vão para a frente do Ministério do Exército exigir que não se realize a manifestação dos generais e que o ministro se demita.”

Otelo não concorda. “Diz ao general que nós não vamos fazer nada disso. Não estás a ver os oficiais do Movimento, que têm estado em semiclandestinidade, a aparecerem em frente ao ministério numa manifestação. A PIDE iria tirar fotografias de todo o pessoal, e o Movimento morre.”

Dia 16
Entretanto regressam da Guiné o Manuel Monge e o Casanova Ferreira, que tinha sido instrutor da maior parte dos actuais capitães do Movimento.

Otelo põe-os a par da proposta de Spínola. Casanova responde logo:

“Nem pensar nisso. O nosso general está louco. Não é ele que nos vai dizer o que fazer. Consegues marcar uma reunião com os militares das escolas práticas, que são as unidades mais fortes? Eu tenho uma vivenda em Algueirão, marca a reunião para lá.”

Otelo convocou tenentes e capitães das escolas práticas e a comissão executiva do Movimento.

“Eh pá, vamos fazer uma acção, rapidamente, para evitar a Brigada do Reumático”, diz Casanova na reunião. E todos aplaudem. À tarde, numa outra reunião mais restrita, Casanova apresenta uma Ordem de Operações, que traz esboçada num papelinho: “A acção começa com o lançamento, por via aérea, de uma bomba de 250 quilos na Assembleia Nacional”, diz ele.

“Eh pá, ó Casanova, aí é que estamos tramados”, responde Otelo. “A Força Aérea não está connosco, e nem sei se há em paiol bombas de 250 quilos.”

“Eh pá, mas isso é que era giro, rebentar com aquilo tudo. Mas não faz mal. Aqui está a ordem de operações.” E começa a distribuir papelinhos com as várias funções. A Escola Prática de Cavalaria manda uma coluna para Lisboa e fica na rotunda da Encarnação à espera de ordens. Vem uma bateria de Cavalaria da Escola Prática de Vendas Novas. Uma coluna motorizada com morteiros de Mafra.

Otelo tenta objectar: “Eh pá, ó Casanova, mas isso não é uma operação militar com pés e cabeça...”

“Isto cai logo pá. Isto está podre.”

“Olha que é capaz de não ser bem assim. Mas está bem. O que determinas que eu faça?”

“Vais amanhã de manhã à Escola Prática de Cavalaria, que é a mais renitente, e convences a malta a sair para a rua, na noite de 13 para 14.”

Dia 13 de manhã, Otelo parte para Santarém. Mal acaba de ler a descrição da missão, levanta-se um capitão, homem respeitador da hierarquia: “Meu major, desculpe, essa ordem de operações vem assinada pelo nosso general Spínola?”

“Não. Ele nem sonha que estamos a fazer isto.”

“Então nós não alinhamos nessa aventura.”

“Ok, mas posso falar com os pára-quedistas?”

“Sim, vou chamar um representante deles a Tancos.”

Otelo reúne-se com três pára-quedistas no seu carro. Convoca-os para uma reunião no Dafundo, às 6 da tarde. Aí, o representante dos pára-quedistas recusa-se a colaborar na operação, mas promete elaborar um plano no prazo de dez dias (o que nunca fará).

“Vocês são quantos?”, pergunta o Casanova.

“Uma força de 800 homens, perfeitamente disciplinada.”

“Óptimo. Com isso já se faz uma revolução. Esperamos então pela vossa Ordem de Operações”, diz o Casanova aos oficiais presentes, entre os quais alguns da Escola Prática das Caldas da Rainha. “Ficam portanto canceladas todas as acções para amanhã.”

Nesse mesmo dia, todos assistem pela televisão ao espectáculo da Brigada do Reumático. No dia seguinte, é anunciada a exoneração de Spínola e Costa Gomes. Otelo e Casanova decidem passar em Miraflores, por casa do Manuel Monge, spinolista convicto, para o consolar. Quando estão lá, tocam à campainha. É um capitão, Marques Ramos, que diz estar em contacto com as Caldas da Rainha.

“Tenho notícia de que aquilo nas Caldas está em polvorosa. A malta parece disposta a pegar em armas e a vir por aí abaixo.”

“Eh pá, não vamos cometer nenhuma loucura”, diz Otelo. “As acções estão canceladas.”

Toca o telefone. É o capitão Manuel Ferreira da Silva, colocado no Centro de Instrução de Operações Especiais de Lamego.

“Lamego está em pé de guerra. Está a organizar uma coluna e vai marchar sobre Lisboa”, diz o Ferreira da Silva. E acrescenta que já contactaram Viseu para fazerem o mesmo. O Monge fica fora de si:

“Eh pá, Ferreira da Silva, ganda Manel, pá, tu nunca me enganaste! É assim mesmo, vamos embora! Tá a andar!” Pousa o telefone e diz: “Lamego vai sair!”

Agora é o Casanova que fica eufórico. “Ainda tens aí o papelinho das operações?”, vira-se para Otelo. “Dá cá isso. Telefona já para Vendas Novas. Manda vir de lá uma bateria de artilharia. Vais a Mafra e trazes de lá uma coluna de infantaria, com morteiros e essa coisa toda. Eu vou a Santarém e trago uma coluna de blindados. Monge, tu ficas aqui agarrado ao telefone, para receberes as comunicações. Marques Ramos, vai já para as Caldas, diz ao pessoal para se preparar para avançar para Lisboa.”

“Isto vai dar um buraco desgraçado”, ainda resmunga Otelo.

“Não vai nada. Quatro ou cinco colunas nas estradas e o Governo cai já.”

Otelo telefona para Vendas Novas e atende o cantor Duarte Mendes.

“Meu major, anteontem disse que estava tudo cancelado, a malta foi toda de fim-de-semana. Só aqui estou eu e os sentinelas. É impossível mandar uma bateria para Lisboa.”

Segunda missão: Mafra. Otelo chega lá às 3 da manhã, sob um nevoeiro cerrado. A resposta é a mesma: está tudo de fim-de-semana.

Regressa a Miraflores. O Monge deve saber o que se passa. Quando chega, às 5h30 da manhã, um carro estaciona 50 metros à sua frente. As portas abrem-se e saem cinco homens de gabardina e chapéu, apontando para o andar do Monge. É a PIDE. Otelo acelera o Morris 1100. Ruma à rotunda da Encarnação, para onde, segundo a Ordem de Operações, a coluna das Caldas se deveria dirigir, para esperar instruções. Telefona para casa do Monge e atende a mulher a chorar. A PIDE esteve lá. Revistaram tudo. Mas o Monge já tinha saído, não sabe para onde.

São 6h30 da manhã. Otelo caminha pela rotunda da Encarnação, que está vazia, sob o nevoeiro. O silêncio só é cortado pelo walkie-talkie de um pide, de pé junto à porta aberta de um Ford Capri bordeaux com capota negra.

Otelo não sabe que o Monge, quando o Casanova chega de Santarém também sem a missão cumprida, vai com ele a casa de Spínola, tentando convencê-lo a assumir a liderança da revolução. Sem êxito. O general, respeitador da hierarquia, diz que nunca poderá pegar em armas contra o seu Governo. A seguir, Casanova e Monge correm na direcção das Caldas. Encontram a coluna às 4 da manhã, já perto de Lisboa, e fazem-na dar meia volta. Assumem a sua liderança e entrincheiram-se no RI5 das Caldas da Rainha, até serem cercados e presos.

Otelo não sabe nada disto. Ignora se a coluna revoltosa das Caldas vai entrar na rotunda.

Mas as forças do regime, essas, chegam em força, de repente e com apavorado espalhafato. De boina e uniforme negro, armados até aos dentes, surge o corpo de intervenção da Legião Portuguesa. A seguir, a GNR, Regimento de Cavalaria 7, com autometralhadoras Panhard, Batalhão de Caçadores 5, blindados M 47, jipes e Berliets. Uma multidão de soldados, polícias, pides, alguns dos quais muito jovens, de cabelo comprido, hippies que Otelo nunca imaginou que a polícia política pudesse ter ao seu serviço. Ouvem-se os walkie-talkies, os apitos da PSP tentando controlar os veículos que parecem cruzar a praça de forma completamente descoordenada.

“Então é isto!”, pensa Otelo.

“Então era aquilo a força de reacção do regime! Eles têm conhecimento de que uma coluna militar vem pela estrada fora a caminho de Lisboa, desde as Caldas da Rainha, e aquele dispositivo todo era por causa disso.”

“Se os gajos ficam todos em palpos de aranha por uma coluna que vem aí, se forem cinco colunas, em vários pontos do país, não terão capacidade de reagir.”

E nessa madrugada de 16 de Março, estoirado, cheio de sono, mas de súbito iluminado por uma compulsiva evidência, Otelo planeou o 25 de Abril. 

Otelo sozinho
A seguir à tentativa de golpe, 23 camaradas foram presos, o que, a acrescer ao facto de Vasco Lourenço ter sido colocado nos Açores, deixava Otelo sozinho na direcção do Movimento. Além disso, não se sabia o que poderia acontecer aos detidos. “Talvez fossem parar a um Tarrafal qualquer.” E nessa altura, sentindo-se sacrificados e abandonados pelo movimento, era provável que começassem a denunciar os companheiros.

“Eu tenho enormes responsabilidades, agora. Fundamentalmente, chegámos a um ponto crítico, em que é preciso actuar”, disse Otelo numa reunião em Oeiras. E começou a planear tudo, sozinho. Era como se a revolução estivesse à espera de ser feita, mas precisasse, ainda assim, de alguém que a fizesse.

“Sem a tentativa das Caldas, o golpe poderia ter ficado adiado eternamente. Mas agora era preciso agir rapidamente.” Dia 18, encontrou-se com Melo Antunes num café da Praça de Londres. Dissuadiu-o de abandonar o Movimento, como ele queria, e encomendou-lhe um programa político para o Movimento das Forças Armadas.

“Eu vou fazer uma operação militar, elaborar uma Ordem de Operações, à minha responsabilidade”, disse Otelo. “O Vítor Alves vai constituir o grupo político e tu o programa.”

O golpe teria de ser feito na última semana do mês, para aproveitar o facto de a PIDE estar ocupada a prender os agitadores políticos do PCP e do MRPP que enchiam as paredes de graffiti no 1.º de Maio.

Em três semanas, Otelo preparou tudo. Sozinho? “Sim, foi um trabalho solitário. Elaborei uma ordem de operações, sem ajuda de ninguém. Eu sabia quais eram as unidades com que podia contar. E essas eram suficientes. Só não conhecia as forças inimigas. A GNR, a PIDE, a Legião. Esse era o grande problema. Foi o maior risco que tive de correr.”

Como obter as informações? Lembrou-se de que tinha um primo que era comandante da GNR, no quartel do Carmo. E que um antigo colega, o Rosa Garoupa, estava colocado no Estado-Maior do Exército. Nenhum deles era simpatizante do Movimento. Mas tinha de arriscar.

“Eh, Fernando. Aqui é o Otelo. Gostava imenso de te ver, pá”, cumprimentou, pelo telefone, o primo, que não via há anos. Foi a sua casa em Alfragide e disse-lhe: “Fernando, é o seguinte: eu vou fazer uma operação militar, uma revolução, e preciso da tua ajuda.”

“Eh pá, estás a brincar comigo.”

“Não, é a sério, pá. E vou confiar totalmente em ti. Eu preciso de saber informações sobre a GNR. Efectivos, armamento, viaturas, patrulhas, que postos de observação têm, que objectivos têm em Lisboa para defender, etc. Tens de me dar isso tudo, pá, e não me vais denunciar.”

“Eu não posso fazer isso...”

“Podes, e vais fazer, a bem da nação. Rapidamente.”

Alguns dias depois, o primo telefonou.

“Já tenho tudo.”

A mesma coisa com o Rosa Garoupa. “Eh pá, há quantos anos a gente não se vê...”

“Eh pá, estás bom? Dá cá um abraço. Senta aí, queres tomar alguma coisa? Então que contas?”

“Eh pá, vou fazer uma revolução e preciso da tua ajuda.”

“Estás a gozar, pá.”

“Eu explico: preciso de elementos sobre a Legião, a PIDE, a polícia. É isso que eu te peço.”

E, tal como o primo da GNR, não demorou a reunir toda a informação. Por que o fizeram? “Por camaradagem, lealdade militar. Não por afinidade ideológica.”

Faltava a prisão de Caxias. “Fui lá fazer um reconhecimento com o meu carrito, mas não podia demorar, para não levantar suspeitas. Havia um grande portão verde, e eu pensei: como uma bazucada, deito isto abaixo. A tropa entra por aqui, tomamos isto de surpresa. Mas o que está para lá do portão? Pode haver uma fogachada, a GNR dá para aqui uns tiros, pode morrer alguém, é uma chatice. Então lembrei-me de telefonar ao Silva Graça, que esteve preso.”

O militante do PCP estivera preso, embora não em Caxias. Mas contactou um companheiro que, desgraçadamente, conhecia bem o forte por dentro e que, dias depois, enviou um croquis. Só depois do 25 de Abril Otelo soube que se tratava de Jorge Sampaio.

No dia 15 de Abril, a Ordem de Operações estava pronta. O anexo de transmissões, encomendado a Amadeu Garcia dos Santos, ficou concluído pouco depois. Uma linha telefónica directa foi montada da Escola Prática de Transmissões até ao Posto de Comando, instalado no regimento de Engenharia da Pontinha. Otelo combinou com jornalistas do Rádio Clube Português e da Renascença as canções-senha que dariam o sinal para o início das operações. Entre 16 e 19 de Abril, distribuiu as missões aos líderes das várias unidades.

Oeiras, na casa de Otelo. “Vou fazer-te a leitura da Ordem de Operações. Tu vais ouvir com atenção, sem tirar notas. No fim, fazes as perguntas que quiseres”, diz Otelo ao capitão Salgueiro Maia, que comandará a força da Escola Prática de Santarém.

“Ok. Estou a ouvir-te.”

Otelo explica a manobra, a situação, as forças amigas e inimigas, a logística, as transmissões, as rações de combate, tudo. “Então, Salgueiro? Tens perguntas?”

“Duas. Primeira: temos base de sustentação política, para o caso de sermos bem-sucedidos na operação militar?”

“Temos, sim senhor. O Vítor Alves formou o grupo político e o Melo Antunes deu-nos as bases programáticas.”

“Segunda pergunta: temos generais no posto de comando?” Otelo pensou rapidamente: se lhe digo que não, ele, respeitador da hierarquia como é, recusa-se a entrar na operação. Mentiu:

“Temos, sim senhor. É evidente. Generais não faltam.”

E Salgueiro Maia só vem a saber que Spínola e Costa Gomes não estão no posto de comando pela boca do próprio Marcelo Caetano, momentos antes de se render.


Foto ADRIANO MIRANDA

Quartel do Carmo, 25 de Abril. Cumprindo ordens de “Óscar”, o nome de código de Otelo no posto de comando, as forças de Salgueiro Maia, vindas do Terreiro do Paço, cercam o edifício, onde se refugiou o presidente do Conselho. Salgueiro é levado até ele.

“Entre, sr. Capitão”, diz Marcelo. Salgueiro Maia faz continência e fica parado no meio da sala. Marcelo continua:

“Pode informar-me do que pretende?”

“Recebi ordens do posto de comando do Movimento para formular um ultimato. Ou V. Excia. se entrega, ou terei de mandar arrasar o quartel a tiros de armas pesadas.”

“E quem comanda o Movimento?”

“O general Spínola!”

“O quê? É o general Spínola que está no posto de comando? Olhe que não é. Acabo de falar ao telefone com o general Spínola. Ele está em casa e diz que não chefia a revolução. Mas pedi-lhe para vir cá, para eu lhe entregar o poder.”

Salgueiro Maia fica estarrecido. Depois de garantir a Marcelo que nunca pegaria em armas contra o seu Governo, Spínola telefonou para o posto de comando.

“Acaba de me ligar o presidente do Conselho, pedindo que eu vá ao Carmo receber o poder. Eu disse-lhe que não tinha nada a ver com o Movimento, mas poderia contactá-lo. Qual é a sua ideia, Otelo? Vai lá você, ou aceita que vá eu?”

“Meu general, considere-se mandatado pelo Movimento das Forças Armadas para ir ao Quartel do Carmo receber o poder das mãos do presidente do Conselho.”

Spínola partiu. Marcelo rendeu-se-lhe e foi entregue a Salgueiro Maia, que o levou numa chaimite até ao posto de comando. Daí, seria transportado num DC-6 para o Funchal, e depois para o Brasil. Quando chegou à Pontinha, Spínola abriu um sorriso que nunca ninguém lhe vira. “Olha o Otelo!”, disse o “Velho”. “Dê cá um abraço, homem! Isto foi uma coisa extraordinária!” Logo a seguir, assumia a presidência da Junta de Salvação Nacional, e depois a Presidência da República. Otelo voltou para casa.

“No dia 28 apresentei-me na Academia Militar, como se nada tivesse acontecido.” Pensou que a sua missão estava concluída. Mas mal tinha começado.

O chefe da revolução
A Junta anunciou o Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), formaram-se os primeiros governos provisórios, libertaram-se os presos políticos, regressaram os exilados, surgiram os partidos. O golpe transformou-se em Revolução, o poder caiu realmente na rua, e três meses depois de Abril foi criado o Comando Operacional do Continente (Copcon). Tinha sob o seu mando nada menos que todas as forças regulares do país e também todas as forças especiais. Foi criado para reagir a uma eventual reacção dos fascistas, mas, na prática, o Copcon tinha poder absoluto. Para o liderar, o chefe da revolução: Otelo.

“Confinado à missão puramente militar que lhe foi atribuída, o Copcon teria levado uma vida tranquilíssima”, admite ele. Mas não foi o caso. “Começaram a aparecer no Copcon os problemas mais diversos e mais disparatados, trazidos por gente que não tinha nada a ver com militares, gente pobre, trabalhadores, camponeses, que não sabiam a quem se dirigir”, conta Otelo.

As estruturas existentes foram destruídas, era preciso reinventar tudo, e as pessoas colocadas nas várias funções de poder não tomavam decisões, por incompetência, ou puro medo de um reviralho. Esta é a explicação de Otelo. Desorientados, mandavam todos para o Copcon. “O Otelo que resolva”, diziam. “Ele é que fez a revolução.”

Quando, por exemplo, a administração de uma empresa desaparecia, os trabalhadores iam ao Copcon perguntar o que fazer. Quem não tinha casa ia ao Copcon, quem não tinha trabalho ia ao Copcon.

“Fiquei numa situação difícil. Das duas uma: ou corria com toda aquela gente, mandando o sentinela dar uns tiros para o ar, para os afugentar, ou tinha de resolver os problemas”, explica Otelo. E eram cada vez mais pessoas. E queriam ser recebidas pelo Otelo, pessoalmente. Prometeram-lhes a revolução, e o Otelo era a revolução. Ninguém previra que isto ia acontecer. “Fizemos o 25 de Abril para termos uma democracia burguesa, não isto”, diz Otelo. Mas agora uma força colossal, incontrolável, tinha-se soltado no país. Desconhecida e imprevisível. Ninguém a queria ou conseguia segurar. Otelo ficou sozinho com a revolução nas mãos.

“Comecei a tomar decisões. Podem ter sido as piores, mas alguém tinha de tomar decisões.” Passou a receber as pessoas numa sala.

“Vamos lá a ver isso. Os patrões fugiram? Muito bem. Vocês têm matéria-prima?”

“Sim, está lá no armazém. Mas agora quem é que nos diz o que temos de fazer?”

“Eh pá, quem é o mais antigo na fábrica? Ficas chefe da comissão de trabalhadores. Continuem a trabalhar. Vamos depois tentar vender os produtos que fabricarem.”

Para acompanhar as situações, Otelo nomeava um capitão, que supervisionava cada caso. Mas começaram a surgir outros problemas. O programa do MFA dizia que todos têm direito a uma casa.

“Sim, senhor, vamos resolver isso.” Otelo chama um capitão da Força Aérea. “Tu ficas encarregado desta questão da ocupação de casas. O princípio é este: estes camaradas vêm dizer que há uma batelada de andares vagos ali perto do Casal Ventoso. Vamos ocupá-los, mas com disciplina. Nomeias uma comissão, para coordenar as ocupações. É preciso fazer um levantamento dos andares e ver quais são as famílias mais necessitadas.”

Depois, a partir de Fevereiro de 1975, vieram as ocupações de terras, no Alentejo. Um grupo de trabalhadores vai dizer a Otelo que ouviu falar de uma reforma agrária. Não sabem bem o que isso é, mas sabem que, em consequência dos rumores e dos graffiti a dizer “a terra a quem a trabalha”, os latifundiários já começaram a fugir para o estrangeiro, e a levar com eles o gado, as máquinas e as alfaias agrícolas.

“Quando as terras chegarem a ser distribuídas, não teremos nada para as podermos trabalhar”, explicam os camponeses.

“Bem, para já, ocupem as terras”, diz Otelo. “E não deixem sair nem mais uma cabeça de gado.”

“Já podíamos ter feito isso. Mas não temos armas.”

“Vocês não têm caçadeiras?”

“Temos, mas a GNR vai lá expulsar-nos, com metralhadoras G3.”

“Bom, amanhã às 9 da manhã tenho um briefing com o capitão que comanda a GNR, e vou-lhe dar ordem para, a partir de amanhã, não actuar contra as ocupações de terras no Alentejo. Portanto vocês vão para lá, com as caçadeiras, defendam a terra e não deixem sair mais nada.”

Em pouco mais de um mês, um milhão e 200 mil hectares de terras foram ocupados no Alentejo, por vezes com a ajuda de soldados armados do Copcon. O Partido Comunista, que estava bem implantado na região, assumiu depois a organização da Reforma Agrária, criando unidades colectivas de produção. Mas quem possibilitou as ocupações de terras foi Otelo.

“Cá está mais um caso em que alguém tinha de tomar uma atitude. O ministro da Agricultura dizia: calma, está em preparação uma reforma agrária. Mas era preciso agir rapidamente.

Assumindo um verdadeiro poder paralelo, o Copcon dirigiu de facto uma revolução socialista. De forma tão precipitada e unilateral, que acabou por dividir rapidamente o país em dois.

“Eu agi em benefício de gente que nunca tinha tido nada, e que, entusiasmada com as promessas do MFA, começava a exigir condições de vida básicas. Mas isso criou contra mim ódios terríveis”, admite Otelo. “E contribuiu largamente para a bipolarização do país. Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Hoje reconheço que não havia condições para dar esse salto enorme. Precisávamos da ajuda dos países ocidentais, e a solução socialista não era possível. Se me tivessem explicado essa realidade, eu teria agido de forma diferente. Mas na altura, com toda a minha inexperiência política, não vi outra alternativa. E também ninguém me apresentou nenhuma.” 

As prisões
A 25 de Novembro de 1975, o país estava à beira da guerra civil. Uma tentativa de golpe dos esquerdistas, cuja ponta visível foi a ocupação das bases aéreas por parte das forças pára-quedistas, foi o pretexto para o golpe dos moderados, chefiados por Ramalho Eanes. Mas, dizem os historiadores, quem deu a ordem fatal aos “páras” foi o próprio Otelo, ou alguém por ele. O comandante do Copcon diz que não, embora tenha confessado que sim a Vasco Lourenço, alegadamente para ilibar os seus subordinados, que tinham sido presos. Por causa dessa confissão, foi ele próprio preso, por 44 dias. “Eh pá, a minha candura e ingenuidade têm-me feito enfiar cada barrete, pá.”

Pouco depois de ser libertado participou num comício na Aula Magna, em Lisboa. À saída, um grupo de apoiantes abordou-o pedindo-lhe que se candidatasse à Presidência da República. Apesar de não ser apoiado por nenhum grande partido, obteria 18 por cento dos votos nas eleições de 1976.

Essa força, que representava um projecto de poder popular, de democracia directa, sem partidos, que Otelo defendia desde 1975, acabou por implodir. Mas, segundo Otelo, foi o pretexto para a criação, entre 1978 e 1979, de um movimento designado por Projecto Global, que incluía uma face legal e duas clandestinas, armadas. O objectivo era ambíguo: defender o país de um eventual regresso do fascismo, ou usurpar o poder burguês por via violenta. Essa ambiguidade levaria Otelo de novo à prisão, condenado por chefiar as FP-25, um grupo extremista que cometeu vários crimes nos anos 80 e que, segundo o tribunal de Monsanto, não era mais do que uma das secções do Projecto Global.

Otelo cumpriu cinco anos. O país não conseguia manter preso o homem que lhe ofereceu a liberdade, e que, afinal, diz que “foi o 25 de Novembro que restituiu ao país a pureza dos ideais do 25 de Abril”."

https://www.publico.pt/2009/04/24/sociedade/noticia/se-isto-nao-e-um-heroi-1376370