quarta-feira, 4 de novembro de 2020

“O nome da rosa” _Opinião



Opinião
Carmo Afonso








“O nome da rosa”

02.11.2020 às 9h53
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https://expresso.pt/opiniao/2020-11-02-O-nome-da-rosa
Tivemos os Capitães de Abril que nos salvaram do fascismo e hoje novos capitães são precisos. Há jornalistas de investigação a estudar o Chega. Serão eles os novos capitães, os “William de Baskerville” de que dependemos?

Um homem estava em alto mar a nadar exausto. Era noite e estava frio. Não sabemos como foi ali parar. Não há nenhuma embarcação à vista, só escuridão e o som do movimento das vagas. O homem não tinha fé mas sabia que estava perdido. Rezou como último recurso. Gritou: “Meu Deus, salva-me!”

De imediato aproximou-se uma pequena embarcação com dois pescadores que lhe atiraram uma bóia. Foi salvo.

O homem não se esqueceu do pedido que havia feito a Deus mas, em vez de agradecer, novamente gritou:

“Hey, obrigado! Afinal não é preciso.”

Isto não é sobre intervenção divina, é sobre inconsciência. A este homem aconteceu um milagre e ele não o reconheceu. O “Vincent Vega” (John Tavolta) fez o mesmo e não lhe correu bem. Não vou falar outra vez do Pulp Fiction. Seria a terceira vez e poderia ser interpretado como uma fixação.

Agora já está?


Tá bem.

Falar de inconsciência a propósito do reconhecimento de um milagre é um paradoxo mas deve ser feito. Deve partir-se do pressuposto que um milagre aconteceu mas fazê-lo como exercício sem nunca perder de vista que é de um exercício que se trata. É importante admitir possibilidades e cenários, quanto mais extravagantes melhor, desde que não nos percamos no processo. É uma boa maneira de consolidar o que é certo. Agitar excessivamente a embalagem para depois o seu conteúdo assentar melhor.

Quero falar-vos de inconsciência e de trevas.

A humanidade tem a característica de entrar num movimento autodestrutivo ciclicamente. Não é por mal. É mais complexo que isso. A história mostra-nos que os períodos de trevas se repetem e que só são possíveis porque uma larga maioria da pessoas age tão inconscientemente como inconsciente foi o homem, que nadava em alto mar, no momento em que foi salvo. Há também uma pequena minoria que está plenamente consciente do que está a acontecer e que o deseja. E existe outra pequena minoria que está plenamente consciente do que está a acontecer e que tudo quer fazer para o evitar. No decurso do processo autodestrutivo é esta pequena minoria que mais sofre pois é tão difícil deter a outra pequena minoria como despertar a larga maioria que está inconsciente. No final, e quando não se consegue interromper o processo, morrem muitas pessoas mas dá-se o colapso civilizacional de onde tudo renasce.

Há vários períodos de trevas na história. São todos interessantes depois de terem acontecido mas tortuosos e sanguíneos para quem lá esteve. Grandes exemplos são a Idade Média, o período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial e o do decurso da própria guerra e, em Portugal, o Estado Novo.

A este propósito lembro-me de um filme: “O nome da rosa”.


Hoje tinha de o fazer e, como uma peça no puzzle a que pertence, encaixa aqui.

Passa-se na Idade Média num mosteiro no norte de Itália. “William de Baskerville” (Sean Connery), é um monge franciscano e, com “Adso von Melk” (Christian Slater) - um noviço que o acompanha - visita o mosteiro com propósitos que se dissipam face à ocorrência de sucessivos assassinatos de monges. Sete monges em sete noites.

“William de Baskerville” repudia a teoria aceite e partilhada por todos os monges - a de que aqueles homicídios eram obra do Diabo – e dá início a um meticuloso processo de investigação. Acaba por desvendar a autoria dos homicídios: foi “Jorge de Burgos” (Feodor Chaliapin, Jr.), o monge mais velho do mosteiro. Desvenda também a causa: impedir a leitura da obra de Aristóteles que falava de comédia e de riso.

Apenas alguns monges tinham acesso à biblioteca. Os que se dedicaram a ler o livro de Aristóteles morreram envenenados porque humedeciam os dedos na língua para folhear páginas que continham veneno.

O autor dos crimes, na sua fuga, incendeia o mosteiro mas “William” e “Adso” conseguem salvar o livro.

Este foi o final feliz. Salvar o que estava criminosamente a ser censurado.


Fica o método racional, filosófico, lógico e detectivesco de “William”, que pôs em causa a interpretação dogmática e básica da realidade e fica também o seu humanismo, a compreensão da natureza humana, como mostrou a “Adso”, quando este se envolveu com uma rapariga pobre que se prostituía junto dos monges como contrapartida por uns pedaços de carne.

Há um outro aspecto magnífico no filme: é que todos os monges que morreram envenenados sabiam que estavam a transgredir quando liam o livro de Aristóteles e, mesmo assim, entregavam-se à tentação do conhecimento, à do riso e à da própria desobediência. Pecar numa biblioteca e não numa discoteca. A culpa vinha a seguir e o castigo afinal também veio. Pagaram um preço muito alto.

Os períodos de trevas continuam a assentar na cegueira e na inconsciência da maioria. Essas são algumas das condições necessárias para quem quer fazer vingar ideologias inimigas da humanidade. É o seu nome. Deve ser usado.

Este fim de semana tem-se falado, e até ao momento em que escrevo não foi contraditado, num possível entendimento entre o PSD, o CDS e o PPM para a governação nos Açores. Esse entendimento deverá ser alargado à Iniciativa Liberal, ao PAN e ao Chega. A disponibilidade do PSD para este acordo parece ser total e, não sendo ainda claras as exigências da Iniciativa Liberal e do PAN, a grande dificuldade parece partir do Chega que apresenta exigências difíceis de satisfazer. Sim, aparentemente o que nos separa de assistirmos ao primeiro entendimento entre o PSD – partido de Sá Carneiro que o definia como sendo de esquerda não marxista – e o primeiro partido fascista português com assento parlamentar, são as exigências de André Ventura.

Já agora: Essas exigências passam pelo apoio do PSD à revisão constitucional e o Chega estará disposto a abdicar de questões como a castração química, cenas da Idade Média. Muito bem.

Rui Rio tenta mostrar-se distante das negociações. Segundo o Expresso a posição do partido é que “O PSD/Açores tem autonomia e competência para definir a política regional e os procedimentos a seguir. A constituição ou não de um Governo Regional é da sua exclusiva competência.”


O PSD não perdeu só a vergonha, a coragem também se foi. Rui Rio, o político que tinha separado as águas do futebol das da política, quando foi presidente da Câmara Municipal do Porto, perdeu o tino com os fascistas. O desespero da direita é mau conselheiro.

As pessoas sensatas do PSD deverão estar em isolamento e sem acesso à internet pois não se fazem ouvir.

Colunistas banalizam coligações com o Chega clarificando que, como qualquer partido com assento parlamentar, tem legitimidade para se coligar. Muito bem.

Há aqui o recurso ao velho argumento “eu até tenho um amigo homossexual” quando se pretende defender uma posição homofóbica que também é de assinalar. Funciona exactamente com a mesma lógica mas no sentido inverso. Diz-se por exemplo: o André Ventura “é um oportunista que acredita em muito pouca coisa para além do seu próprio sucesso político” para a seguir se defender a sua legitimação. Muito bem.

O que aparenta ser uma ameaça para a esquerda – falo de um modelo de entendimento à direita que poderá ser replicado em futuras eleições – é o fim da credibilidade da direita. Esta convicção não será partilhada pela direcção do PSD nem pela maior parte do seu eleitorado. Admito que assim seja.

Mais, essa convicção não será partilhada pelos portugueses que se dizem moderados e que, com base nesse posicionamento, classificam de extremistas alguns partidos à esquerda, como o PCP e o BE, e à direita o Chega. Daqui partem para o raciocínio seguinte: ora, se o PS pode chegar a entendimentos com o PCP e o BE porque não poderá o PSD fazer o mesmo?


A memória falha muito. A consciência também. A moderação resulta do medo – uma espécie de resignação ao menos mau e de receio de que as coisas fiquem muito piores - mas é ela que nos põe em perigo. Esta moderação não deseja mas consente a entrada do Chega. É uma inconsciência que não identifica propaganda inimiga e que não estranha o que se passa à volta daquele grupo. Na verdade, sendo perigosa e já tendo a história mostrado onde pode chegar, a ideologia fascista não é o mais preocupante. O Chega não é só uma questão política, é uma organização com ligações perigosas que precisam de ser investigadas.

Não é o Diabo que ali está, são mesmo crimes.

Tivemos os Capitães de Abril que nos salvaram do fascismo e hoje novos capitães são precisos. Há jornalistas de investigação a estudar o Chega. Serão eles os novos capitães, os “William de Baskerville” de que dependemos? A consciência pode chegar antes de uma catástrofe e só a denúncia de factos objectivos servirá esse propósito.

Será justo que quem está cego e, sem saber, em apuros, reconheça o momento em que é necessário acordar e agradecer a quem lutou contra isto. Seria, em tudo, o contrário do que fez o homem que nadava em alto mar, que se apercebeu do perigo mas não do milagre que constituiu o seu salvamento.

Uma coisa é certa: os comentadores do costume não conseguem acordar as pessoas e os novos também não. As pessoas são à prova de comentadores. Estão cheias de razão. Porque continuam a ser grandes comentadores figuras comprometidas com os aspectos negativos do sistema e que a ele estão associadas até ao pescoço? Porque alinha a comunicação social na perpetuação do poder destas pessoas? Também isto não ajuda. Descredibilizam os bons, impedem o aparecimento de vozes independentes e mantem-se aquela ideia de que “no fim todos se entendem.”

Adiante.


É fundamental que também aqui se salve um livro importante, o que defende todos os valores que se conquistaram em Abril. O nome da rosa é uma expressão usada na Idade Média e que significa o infinito poder das palavras. O nome da rosa é agora a própria Constituição da República Portuguesa. Lembrar aqui as palavras de “William de Baskerville”, talvez a melhor personagem de Sean Connery: “When we consider a book, we mustn't ask ourselves what it says but what it means.”

Será um final feliz.

Farewell, Sir : )

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