quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Manuel Resende _ 1948-2020

Com a manhã chuvosa veio a notícia:
Ontem morreu o Poeta.
Abro a janela, fumo um cigarro e fico a pensar
que “ A poesia e’ muito rara para ser desperdiçada em porcarias”
Quase nada dele sabia. 
Hoje, o tempo alinhou-se com a vida. 
a poesia é também esta água do céu caída em gotas a escrever poemas de
nostálgica sinfonia. 
Descanse em Paz, Manuel Resende. - lm





MANUEL RESENDE

A poesia é muito rara para ser desperdiçada com porcarias

Uma vida poética em 250 páginas. Poesia Reunida, de Manuel Resende, é um livro raro de um poeta raro. Insubmisso, desalinhado, descomprometido – excepto com o mundo.
 

“Ósenhora... não estamos aqui a perder tempo?”, com o sotaque do Porto bem vincado, já com a conversa a meio. Manuel Resende fazia uma pausa ao falar da sua poesia. “A minha poesia é uma colagem. Tem as mais diversas influências. Desde o Sófocles ao Rui Veloso e ao Sérgio Godinho; tem os Beatles, André Gide, Breton, Cesariny, Jorge de Sena... As coisas mais díspares. E as formas poéticas são as mais desencontradas e aparentemente desconexas. Eu atiro aquilo para lá e de vez em quando começa a sair um soneto, compreende?” Segundo o poeta, esta é a génese dos seus poemas. Cabem todos em pouco mais de 250 páginas, volume que acaba de sair numa edição da Cotovia com o título Poesia Reunida. Nele são visíveis as influências. Aquelas já referidas, e outras: Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill, Rimbaud, Kaváfis, Aquilino Ribeiro, Manuel António Pina, Ruy Belo, Homero, Frei Bartolomeu de Las Casas, Walt Whitman, Adília Lopes. E ainda os dadaístas, os futuristas, os surrealistas, os concretistas. Tudo contido no total da obra poética de alguém que muito sumariamente se resume assim na sua relação com a poesia: “Começou muito cedo, mas não me entreguei completamente...” Porquê? “As condições do fabrico da poesia são muito más.”


Se há razão para Manuel Resende ter publicado tão pouco numa vida que acaba de fazer 70 anos, talvez seja esse descomprometimento com que encarou a sua poesia e a percepção, com o exemplo de António Maria Lisboa, da precariedade não apenas da produção como do lugar da poesia no mundo. Ele explicará mais adiante. Por agora fica essa dupla precariedade como justificação para terem sido apenas três livros numa vida, publicados entre 1983 e 2004: Natureza Morta com Desodorizante (1983), Em Qualquer Lugar (1988) e O Mundo Clamoroso, ainda (2004) a que se juntam agora alguns inéditos e dispersos.


Está sentado à mesa onde todos os dias lê e escreve. Uma superfície quadrada em que fica de costas para uma janela. À esquerda tem uma porta pela qual vai vigiando o cão a brincar no jardim. Não há sinal da sua poesia. Apenas um computador portátil aberto e um dicionário de grego sobre uma pilha de papéis à luz da tarde chuvosa que entra, filtrada. Quase em frente há o mar, mas não se vê dali. Separa-os a estrada e uma fila de casas. Manuel Resende cruza as mãos e, em silêncio, olha de frente com a timidez sem disfarce de quem não está habituado à atenção fixada em si. O seu nome costuma estar nos bastidores enquanto tradutor de poetas como Konstantinos Kaváfis, Odysséas Elytis, Kiki Dimoulá, escritores como Bertolt Brecht ou Franz Kafka. E é naturalmente pelos outros que começa a falar de si. “Aprendi grego a traduzir o Kaváfis”, afirma. E nem sequer era uma paixão. “Tenho respeito por ele, mas não é dos meus poetas preferidos. A tradução de poesia é diferente da do romance. A gente lê um poema e em cinco minutos está lido e aquilo fica ali e dá mais jeito para aprender a língua. Além do original, tinha a tradução do Jorge de Sena e outras e sabia aquilo. Fui percebendo a língua.” Foi em 1985, mais poetas gregos se seguiram. Mas, por essa altura, já publicara o seu primeiro livro. “Por mim, não tinha publicado. O Vasco Graça Moura, que estava na Imprensa Nacional [Casa da Moeda], queria fazer uma colecção de poesia e o Manuel António Pina sugeriu o meu nome.”
Se há razão para Manuel Resende ter publicado tão pouco numa vida de 70 anos — três livros, entre 1983 e 2004 — talvez seja o descomprometimento com que encarou a sua poesia e a percepção da precariedade do lugar da poesia no mundo.


Eram amigos. “Conhecemo-nos, porque eu ia muito ao Piolho [um café no Porto] e o Pina também. Nunca falávamos da nossa poesia, nem ele da dele, nem eu da minha. Havia muito em comum. Éramos de uma esquerda nova que não tinha nada que ver com o PC. Ele andava com as mais variadas pessoas, muitos católicos progressistas, e eu fui conhecendo muita gente. Gostava muito de falar com ele, aliás toda a gente gostava muito de falar com o Pina. Ele era um grande conversador e ficámos muito amigos. Foi ele quem me revelou os poetas americanos, da Beat Generation, por exemplo, ou Carl Sandburg. O [T. S.] Eliot, o Ezra Pound... Ele papava isso tudo, e isso distinguia-o porque naquela altura a cultura era a francesa. Era uma lufada de ar fresco. Imagine aqueles tipos da Beat Generation... diziam poemas para audiências, como na Grécia!”

Os dois tinham ainda em comum o mesmo nome, eram ambos Manuel António. Em Poesia Reunida, há um poema que Resende diz ter “roubado” à física moderna e, precisamente, a M. A. Pina. Chama-se Deve estar a brincar, senhor Feynman: “Onde estão as partículas elementares / Quando a gente não está a olhar? / A questão é de se pôr, só que elas estão, / Ou qualquer coisa, não sei o quê, em qualquer lugar.” Faz parte de Em Qualquer Lugar, o livro de 1998. Mas Pina não foi o único, esse roubo, esse contágio, melhor dizendo, é feito de uma enorme pluralidade que teve em Resende um filtro capaz de resultar numa marca singular. “Eu não tenho um estilo, ou o meu estilo é aceitar tudo”, refere, incluindo o que lhe veio da tradução. “Sim, isso tem que ver também com a tradução, porque acho que uma das coisas que me caracterizam é a aceitação das mais diversas correntes. Embora tenha uma filiação surrealista, não tenho uma filiação antagónica a ninguém. Aceito mais ou menos tudo. E, portanto, a tradução é uma das vertentes da minha experiência poética. É deixar falar em mim as outras vozes. Essencialmente foi isso que fiz na minha vida.”
Compromisso com o mundo


A poesia de Manuel Resende é comprometida com o mundo; mais do que isso, com a história do mundo, sublinha Osvaldo M. Silvestre no posfácio a esta Poesia Reunida. “Se algo define a poesia de Manuel Resende, é a forma como não evita as solicitações da História, que tende, aliás, a grafar com maiúscula, num gesto que se foi tornando raro no panorama da poesia portuguesa recente.” Confrontado com a afirmação, Manuel Resende encolhe os ombros. “Que acha?” E depois afirma: “Eu também escrevo sobre o quotidiano, mas nunca é um quantificado trivial e fútil. É sempre a pensar nas coisas, perdoe a presunção, nas coisas mais essenciais da vida.”

FotoDANIEL ROCHA
Há momentos mágicos em que o que está dentro de nós e o que está fora de nós se une; é o ‘acaso objectivo’, e esses momentos são preciosos na existência. Há pessoas que chamam a isto Deus. É lá com elas, respeito.

E que coisas são essas? Há nova pausa, breve. “A poesia é muita rara para ser desperdiçada com porcarias. Essas coisas são o amor, a liberdade...” Se houvesse um cigarro, como houve durante os muitos anos em que fumou, este seria o momento de uma baforada, e só depois continuaria. “É isso. E falo muito do tempo, porque o tempo é a natureza de que somos feitos. O ser humano é um animal muito delicado e frágil. Tem de aprender tudo, excepto mamar e fazer xixi e outras coisas que tais. Tem de ser ensinado, precisa de uma família, precisa de tempo, precisa de um lastro histórico. Senão, não existiríamos, nunca seríamos o que somos.”

É o momento para recuar bastante no tempo e tentar entender a ligação de Manuel Resende à poesia. Começou em casa. “O meu pai andava sempre a recitar poemas e eu li Fernando Pessoa muito novo, não tinha idade para aquilo, mas ia escrevendo umas coisas.” Começou a aperceber-se das vanguardas poéticas, e, entre futuristas, clubistas e expressionistas, escolheu a radicalização e reviu-se nos dadaístas. “O dadaísmo é uma reacção contra as condições de cultura e de literatura da sociedade. Uma reacção de rejeição de uma sociedade que, com tão elevada cultura, faz a II Guerra Mundial! Essa relação conflituosa com o mundo tal como ele é esteve sempre comigo.”

Por outro lado, a consciência das condições da morte de António Maria Lisboa, em 1953, aos 25 anos, vítima de tuberculose, sublinhou a ideia de precariedade que sempre associou à poesia. Lisboa fora um dos mais brilhantes poetas da sua geração, um abjeccionista, insubmisso face a tudo o que eram regras criativas e avesso à pretensão de transformar o surrealismo numa escola. “Morreu em pleno voo”, refere Manuel Resende, que, como o pai, se inscreveu num curso de Engenharia, enquanto fazia traduções. O primeiro trabalho pago foi um ensaio sobre a Comuna de Paris da autoria de Jacques Rougerie. Gostava de traduzir, mas o dinheiro era incerto e, quando abriu um concurso para jornalistas no Jornal de Notícias, concorreu e reencontrou o amigo Pina e ficou durante seis anos ligado à Economia. Mas foi o gosto pelas línguas, e em particular pelo grego moderno, que o levou a Bruxelas e a aceitar o trabalho de tradutor na então CEE, ainda Portugal não era membro. Conta esse percurso e refere Alexandre O’Neill. Um e outro com questões diferentes com Portugal. Para Resende Portugal são as pessoas. Viver em Bruxelas deu-lhe essa consciência. Para O’Neill era outra coisa. Há um poema em que brinca com uma das expressões mais conhecidas do autor de Uma Coisa em Forma de Assim, e noutro escreve: “Os teus versos perseguem-me pelos corredores, agarram-se-me à depressão ou à suspeita alegria para-fora, como uma caspa / inconveniente, mas sempre fiel amiga.” O poema chama-se Alexandre, o Grande, e Alexandre, o Grande, não é outro senão O’Neill.

Tudo se cola ao que escreve, parece querer dizer com as histórias que conta com a ajuda de uma oralidade que também está na poesia. Tudo se cola, parece também soar quando se lê o que escreveu nesse e noutros poemas, como em Voltar para casa. “Mas porque tem a pessoa de voltar para casa / E seguir o rasto das árvores no chão, / Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos / E as mão nos bolsos como um apontamento antigo? / Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um, / E súbdita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca, / Pronta a saltar e a arder todo o corpo? / Mas porque tem a pessoa de voltar para casa, / Cabisbaixa?”

Há, pois, uma coisa com O’Neill. Confirma: “Tenho um verso também que tem uma coisa do O’Neill, mas não foi de propósito. Lembrei-me, é uma questão que tenho comigo.” Sorri. “A dele era com Portugal”, volta a sorrir. Já a questão de Resende parece ser com o mundo. “Nós somos fruto da História”, a tal do h grande. “Somos um resumo do que se passou; o eu é uma luta constante para sobressair do magma. Faz-se contra o outro, mas com os outros.” É a individualidade no meio da História da civilização, a que se constrói no quotidiano. “Estou sempre a pensar nisso”, salienta. Quando escreve sobre amor e guerra, sobre lugares massacrados e a relação com o que chama “a ralidade”.

FotoDANIEL ROCHA
Comecei por lhe dizer que a minha reacção é um bocado uma reacção contra o mundo, mas compreendendo que somos um produto do mundo. Mas sinto-me fora do mundo.

Escreve-a assim: “S’a ralidade não me chatiar, / Não vou eu chatiar a ralidade. / Porém, essa megera sem idade / não tem tempo e fronteiras, não tem lar.”

O que é ralidade? Resposta simples, coerente com o que sempre escreveu e sempre disse. “Comecei por lhe dizer que a minha reacção é uma reacção contra o mundo, mas compreendendo que somos um produto do mundo. Mas sinto-me fora do mundo.” É apenas um dos paradoxos. “Todos somos um poço de contradições. A realidade que conhecemos é rala e reles. As pessoas que não têm dinheiro para acabar o mês, os soldados na guerra... Parecendo que não, é um dado quotidiano. Há uma música de fundo, mas é uma música de guerra, de conquista, de luta pelos recursos do planeta. É essa a nossa ralidade. É nessa realidade que a gente vive e contra a qual temos de afirmar o nosso eu; temos de reagir. Isto é profundamente político. Mas ninguém conseguiria dirigir as massas com um discurso como o meu.” Ri, uma gargalhada rouca, arrastada, com vontade. Porque não?, indaga-se. “Porque é um discurso que parece um bocado disparatado; é um discurso que quer levar à interrogação. Sou de extrema-esquerda, sempre fui, e acho que vou morrer assim. Um dos poemas do livro é uma reflexão sobre Rosa Luxemburgo, que dizia que cada morto é irredimível, e a gente não pode deixar de pensar nisso. Não me quero pôr acima dos outros, como grande defensor da moral, porque, se estivesse numa situação extrema, não sei qual seria a minha reacção, assim como não sei qual seria a reacção de todos os justiceiros. Mas a minha concepção é a de uma pessoa que sabe que vive no mundo, que não está acima do mundo. É uma tragédia, a tragédia em que vivemos sempre.”

Na poesia de Manuel Resende há a tragédia pessoal e a de quem esteve em Sarajevo, Auschwitz, num gueto de Varsóvia ou em Dubrovnik. Valem todas as existências que contam essa relação com o real, que fazem a História, que levam a pensar como será ser o Outro no contexto mais doméstico ou colectivo. Ser o soldado, a mulher, a vítima, o excluído. Por isso há tantas vozes na sua poesia, personagens com uma tremenda profundidade psicológica e filosófica. Algumas têm nomes, por vezes reconhecidos, mas a maioria são anónimas. “Às vezes falo como se fosse uma mulher. O Kaváfis tem isso, tem muitas vozes lá dentro. Mas muitas vezes tento pôr a voz feminina. Há uma coisa curiosa, à sombra do feminismo apareceu o movimento de libertação dos costumes sexuais e isso trouxe tanta coisa na minha geração.” O pensamento parece ir para longe e regressa logo depois. “Quero pôr em questão ideias feitas. Tentar entrar na pele do diferente para tentar chegar a uma unidade. É assim no amor, no sexo. Essa é a grande força do amor, a aspiração a uma ideia completa de vida. Ser uno com o outro.” A pele sensual que pode, mais uma vez, encerrar a tragédia. “Os seios dos poemas também são os seios que podem ter cancro e só a mulher vive isso, esse medo.” Quer tentar chegar perto desse sentimento. Por isso tanto ficciona como deixa entrar pessoas reais. “A maior parte das pessoas que estão nos meus poemas existe. Fantasio um bocado, depois elas entram. Digo-lhes: ‘Entra aí, rapaz, entra, rapariga.’

E depois há também outras personagens que são mais do que isso. Ou outra coisa, uma “coisa esquisita”, uma paródia ao Pessoa. “Eu estava a engendrar uma maneira de publicar poemas sem ser em meu nome e então inventei um.” Chamou-lhe Mika Ahtisaari. É finlandês, nascido em Tempere em 1960. São-lhe atribuídos os poemas finais deste Poesia Reunida. Ele terá vindo para Portugal no final da adolescência e é apresentado como “esquivo em contactos mundanos”, alguém que “tratava da sua horta biológica”, aspectos comuns a Resende, também ele fora da rede de contactos literários, de uma independência pouco comum nas letras, irónico como ele. “Pediu a M.R. que lhe arredondasse o português perro dos poemas que ia produzindo e, no final, teve esta frase: ‘São teus.’” Eis aqui os temas de Mika Ahtisaari por Manuel Resende. “Como uma cereja e, / Comendo a cereja, o meu corpo / Pede as cerejas todas do mundo, / Mas não posso comer as cerejas todas do mundo, / Pois faltam-me as cerejas que comeram / Sócrates, Hipasos de Metaponto / E os velhos camponeses da Gália, / Ou até os escravos de Roma. / Assim, como uma cereja / e deixo o gosto de a comer / Ficar em mim pelo gosto / De todas as cerejas que possa haver. / Uma cereja como todas as cerejas, / uma cereja por todas as cerejas.”

O heterónimo finlandês

Vê esta sua fase, a última publicada, como um regresso a Aberto Caeiro, que, no seu caso, é finlandês. Mas também como um modo de fugir. A quê? “Todos os meus livros acabam com uma despedida, um adeus até mais ver; praticamente todos dizem que não escrevo mais. Estava a fazer uma reflexão profunda sobre tudo isto, sobre a linguagem, sobre a filosofia, comecei a estudar os pré-socráticos e outras coisas engraçadas como a matemática babilónica... e o Mika Ahtisaari apareceu como uma maneira de escapar pela lateral e começar a escrever outro tipo de poesia, menos palavrosa.” Ainda não sabe bem o que é, nem se haverá mais. Sabe apenas que ao fazer um poema está “a afirmar uma aspiração que às vezes não é humana por excelência e a dizer: ‘Tomem lá disto e não me chateiem, eu não vos faço mal nenhum, não me aborreçam agora.’” “É uma afirmação de vida essencial para mim. É um acto de resistência contra toda a iniquidade que existe e não sei se é entendido como isso.” É um acto de resistência? “Para mim é um acto de resistência, sim.”

Contra a tal precariedade, ou apesar da tal precariedade de que falava no início da conversa. “A poesia não é uma coisa garantida. Não sei se vai morrer ou não, mas não há nada que a favoreça neste momento. Mas vale a pena lutar por isso.” Nem que não escreva nem mais um poema, porque depois deste livro não voltou a escrever poesia. “Tenho o projecto de traduzir o Heráclito e está a dar-me água pela barba. Está praticamente traduzido, o problema é a introdução. Tenho medo. Quando o Heráclito fala do logos, para mim é logos, é linguagem apenas.” Uma leitura recente consubstanciou essa sua convicção. Foi sobre o papiro mais antigo escrito na Grécia que apareceu recentemente. “Os papiros gregos desapareceram todos, porque, ao contrário do Egipto, a Grécia tem Inverno e chuva e aquilo estraga-se. Esse papiro, que é de 400 anos antes de Cristo, é curioso. Anda a ser estudado e tem uma coisa engraçada, uma citação do Heráclito que não aparecia nos Fragmentos [sobre a Natureza]. Tem uma linguagem que não se pode dizer que seja do Heráclito, mas os temas são semelhantes. Como dizer que a linguagem é comum, mas o vulgo, as pessoas, os muitos, não a percebe — ou seja, são poucos os que sabem a verdade. E há outra coisa: a crítica à linguagem. Ele põe as coisas assim: agora o Zeus comeu o pénis do Cronos?! Não pode ser, isso é simbólico, tem de se perceber que isso é simbólico. Zeus assenhorou-se do poder, porque o phalos é o poder, portanto assenhorou-se do poder divino do Cronos. Temos de compreender o que a linguagem quer dizer e não o que está lá escrito... Está a ver, é isto que me anda a ocupar.”

São interrogações como esta que também leva para a sua poesia. Ela não está a salvo de nada. Percorrer as páginas do volume que agora permite estar diante de toda a obra de Resende é perceber essa capacidade de englobar uma visão do mundo que não exclui — nem temas, nem formas, nem ritmos. “Experimentei vários ritmos num soneto, porque com a mesma métrica pode-se fazer ritmos muito diferentes.” E cita exemplos, lê alto a partir do ecrã do computador. Há muito tempo que não escreve à mão e nem a ler poesia se refugia no papel. E, na sua voz, ouvimos o erudito, o calão, o sarcasmo e a ironia, a voz da rua e a do filósofo. Parece haver cantigas pelo meio. “A ironia é para manter uma certa distância em relação à minha pessoa, à poesia, deixar-me contaminar. Estou sempre de pé atrás.” Há outra gargalhada, e para explicar o riso convoca à conversa um cantor francês, George Brassens. “Ele era um sujeito com uma cultura de língua muito profunda, capaz de misturar linguagem clássica, da Idade Média com a linguagem do dia-a-dia. É uma coisa saborosa, porque há indivíduos que fazem isso e parecem novos-ricos. Nele era autêntico. E contribui para dar sentido. Acho que — gaba-te, cesta — também consigo. E é então que regressa a Aquilino e a outra paródia que faz ao que também chama “mestre”. “Ele faz parte da minha poesia. Sabe qual é o poema?” Abre na página 41, pede que leia, alto, um poema a que deu o título Libertino Belisário em seu Jardim... e segue cada palavra em mais um texto onde se nota outra proximidade: a da paisagem. “Quando vivia em Santarém, gostava de muito de dar uma volta de carro pelo campo. Via o vale ao fundo, os prados, os campos... Olhava para tantas horas, tanto trabalho ali ao longo de décadas, séculos. Porque a paisagem não foi posta por Deus ali; o que vemos é a natureza humana, a natureza trabalhada pelo homem. É como se o tempo estivesse cristalizado em espaço.”

FotoDANIEL ROCHA

E, acrescente-se, como se cada um dos seus poemas fosse uma montagem de toda a multiplicidade de elementos até ela ganhar o sentido, transmitir a ideia. Como num filme. “É mesmo, vejo o poema quase como a montagem de um filme. Primeiro andamos às voltas e depois é preciso juntar aquilo tudo. Ou como fazer um bolo — é preciso seguir uma certa receita para a massa ficar leve.” Cozinha? “Cozinho sim, e estava agora a lembrar-me que tenho de arranjar uma solução para os falafel. Comecei a fazer há pouco tempo, porque como cada vez menos carne. Há um problema — se a massa tiver um bocadinho de água, quando se deita na frigideira, desfaz-se. É preciso escoar a água toda do grão de bico, mas isso pode resultar numa coisa muito seca. Há uma ciência, não é só misturar. A sabedoria, a mão do cozinheiro é que conta.”

Isso também vale para a poesia? “Não sei, acho que sim. Para mim, a poesia é uma espontaneidade muito bem estudada. Para se ser espontâneo é preciso um bocado de treino.”

E volta-se aos gregos, ao que falta ler. A Odisseia e a Ilíada no original, por exemplo. “Nunca li o Kalevala [poema épico finlandês]. Não li o Gilgamesh! É o primeiro poema! Gostava de ler essas coisas. Há outro livro de que gosto muito e leio aos pedaços, O Homem sem Qualidades, do Musil. Mas penso sempre que posso não ter tempo. Passei a pensar nisso, desde que recentemente passei por uma experiência de quase morte. Sempre que penso em começar um projecto, tenho medo de não ter tempo.”

in: Jornal "PUBLICO"

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Luanda_a cidade serpente



REPORTAGEM

"Luanda: para lá do fim onde tudo começa

Rui Ramos

3 de Agosto, 2019

Luanda não tem princípio nem fim. Sou do tempo da fronteira do asfalto que marcava a exclusão, do tempo das separações “raciais”, do tempo da prisão indígena no Zé Pirão, do tempo das rusgas do Poeira, do tempo do ataque do 4 de Fevereiro, do 15 de Março e da repressão sangrenta que se seguiu. Sou do tempo do 25 de Abril, dos massacres perpetrados pelos colonos mais reaccionários contra a população negra, sou do tempo da guerra de Luanda que marcou todo o ano de 1975.Fotografia: DR



Mas também sou do tempo presente de Luanda e em nenhum outro local do mundo me sinto tão bem. Luanda é o íman que atrai tudo e todos, apaixonada e indiferente, sedutora, sensual, louca.
Luanda não tem princípio nem fim, como o mundo. Antigamente, acabava na Circunvalação, que ninguém hoje sabe o que é, depois chamaram-lhe “retunda” e hoje é um viaduto que liga a Boavista-Sambizanga aos bairros a Norte, Comarca e por aí fora, passando pelo bairro da Sonangol, Uíge, Sucanor, Vidrul...
Não conheço todos os becos, só alguns, porque ninguém conhece Luanda; Luanda é uma cobra que se move sempre, não tem forma e ninguém a controla senão os habitantes dos “guetos”.
Por todo o lado a população é muito jovem e as famílias muito extensas. As mulheres têm o papel social mais relevante, parideiras, não abandonam nunca os filhos, se bem que os desmamem precocemente, por questões culturais e por necessidade de trabalhar. Mas a mulher, apesar do seu papel social, é dominada pelo homem, apoiada pela própria família dela, que toma quase sempre a defesa masculina.
Luanda tem muitas almas, mistura de todas as gentes de toda a Angola e de um pouco de África. Tem a sua própria maneira de viver, autónoma, independente do poder do Estado, o habitante de Luanda não gosta de ouvir falar de “Estado”, tem alergia ao poder, porque o poder é do soba ou do soma, o irmão mais velho da mãe, e mais nada. Por todo o lado, começando já perto de Caxito e vindo para Cacuaco, Vidrul, Cerâmica, Ngoma, Sonangol, Belo Monte, Boa Esperança, Kalwenda, Catanas, Paraíso, Kikolo, Kwanzas, Boavista, Sambizanga, Rangel, Marçal, a infindáveis Viana, os Zangos intermináveis e enigmáticos, Luanda Sul, Cassenda II, Calemba, Samba, Bairro Azul, Rocha Pinto, Vila Flor, Morro Bento, Benfica, Palanca, Chicala I, Chicala II, Grafanil, Katinton, Congolenses, Dangereux, Catambor, Shabá, Prenda, Morro dos Veados e ainda há mais para lá… a paisagem é a mesma, parecem fotocópias desbotadas espalhando-se com a brisa morna, húmida e salgada da Ilha, hoje completamente descaracterizada.

Amontoados desde 1974

Toda a gente começou a amontoar-se a partir de 1974, quando a população do interior fugiu de Luanda via estação do Bungo em intermináveis filas e começou a aparecer uma outra população, estranha, com novos hábitos, que ocupou Luanda, os “regressados” do Zaíre, que iniciaram as vendas no chão dos passeios.
Nessa altura, o Kikolo ainda era uma zona verde, o Paraíso de Luanda, ainda recordo a linda e frondosa floresta do Kikolo, com rabos de junco e ratos de palmeira, que a tropa portuguesa destruiu para impedir a penetração de “terroristas”.
Foram sobretudo as guerras, as cruéis e sanguinárias guerras puseram tudo de pernas para o ar, nos anos 1980, as populações fugiam em massa do Planalto Central e vinham para os armazéns abandonados do Porto de Luanda, depois acomodaram-se no Kikolo.
Do Norte vinham populações inteiras fixar-se na Sucanor (Sucata do Norte) e no bairro Uíge. Sem controlo. Sem qualquer plano urbanístico. Sem saneamento básico. De repente, de quinhentos mil, a grande metrópole passou para cinco milhões de pessoas amontoadas, dez milhões… um imenso contentor incontrolável.
Os velhos extinguiram-se, não existem mais. Em seu lugar, milhões de jovens levantam-se da terra vermelha, movendo-se como areia solta. Jovens com mães e jovens órfãos de pais falecidos ou vivos. Seres sem amor, sem um vislumbre de luz, correm para a cidade de asfalto para comerem a fome, que não se adia. A grande “cidade” é na verdade um extenso e esconso “musseque”, em todos os quintais há casebres e todos pagam renda, em todos os espaços as zungueiras guardam as suas mercadorias e pagam pela ocupação. Nas ruas dos ricos, milhares de rapazes controlam os espaços públicos, de rosto imóvel, subtraindo água de furos cirurgicamente feitos na rede da Epal.
Não há piedade nem solidariedade ou amor, há laços de necessidade porque a vida é muito dura, aqui tudo se paga, tudo tem um preço, nada se oferece. As crianças desmamadas entram no mundo adulto do funje de bombó ou de milho com folhas e muito sal e gatinham sozinhas, desde cedo muito sozinhas, na mente as primeiras palavras da mãe, “vou te batê”, homens e mulheres em miniatura fazem-se a si próprios não esperando ajuda de ninguém.
Os pais das crianças, dizem as mães, “viajaram”, isto é, fugiram, não educam nem cuidam dos filhos, é geral. Os homens são predadores sexuais, não dão prazer às mulheres, fecundam-nas, apenas, e as mulheres, sem medida de comparação, aceitam essa situação humilhante e degradante de submissão total.
Ir à escola é a maior ambição da criança de Luanda. Os pais vieram das províncias, fugidos da fome e da miséria, e querem, em especial as mães, dar uma vida melhor aos filhos. Mas em quase todos os bairros de Luanda escasseiam as escolas públicas. Há colégios privados e escolas comparticipadas às quais se devem pagar propinas e no dia 11 de cada mês os professores “xotam” os miúdos que não pagam.
Os becos, por todo o lado, os becos ladeados de casebres feitos de qualquer coisa, de tudo, panos, chapas, cartão, blocos, por todo o lado pedras a amparar os telhados de chapa, aqui vive gente, escondida, imóvel, espreitando o mundo. Nos becos não se circula de noite, os pobres assaltam os pobres, ninguém confia na Polícia. Quando um parente é preso, a família “cai” na esquadra indagando o preço da soltura e, em desespero, pede, pede, pede e quantas vezes consegue libertar um familiar assassino ou ladrão que volta ao bairro para continuar os seus ilícitos.

Nos bairros, tudo desarrumado

No “Quarenta” há lavras, a compra de terrenos é um problema, há sempre burladores por todo o lado que convencem os inocentes de que tudo está legal, mentem, a mentira em Luanda é uma escola e uma necessidade vital.
Nos “bairros”, a que ninguém chama “distrito urbano”, não há árvores, não há produção agrícola, não há indústria, tirando oficinas de reparação de tudo, oficinas de mobílias, até de robustos cadeirões.
Para lá de Cacuaco, na mais antiga Luanda, até para lá do Morro dos Veados, as casas não têm número de Polícia, apenas número da água e da luz, o controlo pertence a quem cobra facturas e não a quem deve garantir a segurança.
No Paraíso, penso que é lá, a ponte inacabada “Kavukila” está ali, feita e sem uso, porque não tem acessos, e ao lado crianças quase nuas e descalças brincam na lixeira, os pais inexistem.
Por todo o lado as crianças brincam com brinquedos de esgoto, de restos, com cães vadios cheios de pulgas e carraças que lhes mordem, meninos arranhando a coceira da pele seca do corpo com feridas, meninas com furúnculos por má nutrição. Já grávidas à saída dos dez. Neste universo que vou descobrindo, nenhum político se atreveu sequer a entrar muito menos a contactar, é outro povo, ali não se quer estar, suja, e os comités do partido estão tristes, só se reconhecem pela bandeira e pelas cores e em muitos lados as pessoas dizem-me tio não se vê presença de políticos, não vêm sujar seus sapatos nem respirar esta poeira, não lhes conhecemos. Os administradores raramente saem dos seus gabinetes climatizados. Os outros, as oposições, tem quem me diga, “estão aí escondidos, a gente fica só a ver no nosso silêncio”.

Festas, porque tristezas não pagam kilapis

Mas como tristezas não pagam kilapis, o povo gosta de festas, o povo não poupa valores, hoje é sempre hoje, o amanhã é só avante! Então, esta cultura única recomenda que óbito seja sete dias com cerveja sempre a deslizar, vêm pessoas dos quilómetros, dos municípios, render homenagem ao falecido que nunca viram, muitos faltam aos empregos e justificam, os chefes compreendem, também estão nos óbitos. Tem de se conseguir dinheiro para o funeral, para o caixão, pede-se aqui e ali e ali, o morto não pode ficar desembrulhado.
As festas de apresentação do namorado à família da menina estão presentes por todo o lado, com tios vindos dos municípios e toda a vizinhança, pretexto para o consumo de largas dezenas de grades de cerveja. Mas não se fica por aí, filha é capital de investimento, se começa a namorar o rapaz tem de cumprir os “deveres”, Pedido, é imperativo, pode chegar a um milhão, o “noivo” se desfaz em pedidos de valores a tios e mais tios, a família da donzela escolhe as marcas da cerveja, vinho e até exige bombons. Em Luanda, os pobres e os ricos estão sempre a festejar algo. Mas os pobres abusam, pois não vivem à custa do OGE. Os casamentos são sempre dois dias, aluga-se salão para continuação e é pretexto para mais uma ostentação do que não se tem.
As famílias estão sempre reunidas, com cerveja, pinchos e “conchas” de frango, para falarem da gravidez das sobrinhas, da violência doméstica e quase sempre o homem sai por cima e a menina é “posta na ordem” pela própria família que, se a “vendeu”, lhe exige submissão ao malandro.
Neste emaranhado de vidas vindas de todo o lado, a dieta-base é a fome. Ninguém come, se pergunto aqui e ali o que comeram, respondem-me “chá” e algumas vezes “arroz branco com mais nada”. Fubas de bombó ou de milho parecem ser cada vez mais estranhas a este povo que se despersonalizou também na gastronomia e já nem sabe a diferença entre lambula e paieta.

Comércio

O comércio é o Deus dos guetos, está por todo o lado, quem manda são os estrangeiros eritreus, oeste-africanos, donos dos armazéns por grosso, vimo-los no Rocha Pinto, Morro Bento, Dangereux, Benfica, Congolenses, vendem de tudo, tudo importado, Angola não produz nada, até leite “Bom Dia” já se importa, ninguém sabe de onde vem e a nossa galinha rija também é importada congelada.
À roda dos armazéns dezenas de milhares de rapazes imóveis oferecem o seu serviço. Vieram de Benguela, do Huambo, daqui e dali, muito jovens, sozinhos mas vivendo em grupo e dormindo em capoeiras, inteligentíssimos, se perdendo para a vida, carregam sacos, carregam tudo, menos os livros que deviam.
O miúdo Paizinho nos olha, vistas turvas, sem além, vindo de Benguela, sozinho na selva de poeira, como rato roendo o futuro. Muitos milhares de outros abundam, de rosto imóvel, indormidos, nas vias principais, por entre os carros, tentando vender qualquer coisa importada que adquiriram nos armazéns.
Lá longe estão as centralidades e os condomínios fechados, ficção mental, alucinação, grito que ficou por gritar; uma Angola proibida, onde outras alucinações acontecem, uma mentira para a qual o povo só olha.

Como um avultado de mortos-vivos

Não há produção, como se reproduz a vida económica? Com comércio de importação, de “frescos” congelados, de sacos de fuba importada, de bebidas importadas, de bolachas importadas de Portugal, de peças de carro importadas, importar é a palavra de ordem em Luanda.
Onde mora esta gente? Ninguém sabe, é segredo. Mas levaram-me a ver o interior desses “palácios do povo”. Os meus olhos choraram. Como é possível? Muitas galinhas vivem melhor. Tudo desarrumado e amontoado, como as vidas, colchões no chão, chapas, cartões, panos, isto não é habitação, isto é desumanidade, raparigas lindas, lindas, bem compostas, bem alisadas, vivem em compartimentos exíguos sem janelas, sem chão de cimento, com mãe, irmãos, primos, tios, tias. Num metro quadrado cabem 20 vidas, como se chegou a isto?
Em Cacuaco, vimos, a prostituição começa muito cedo, há zonas de influência, as mais novas ficam no Banco X, as mais adultas no Banco Y, à espera, vendendo-se por escassas centenas de kwanzas, que podem ser pagos no dia seguinte, porque não há empregos, não há caminhos nem rumos e a moral se desequilibrou, as raparigas aceitam tudo, dançar nuas em festas, "passa a patrulha", por copos de cerveja, cada vez mais jovens abraçando a vida do inaceitável, a depressão escondida e inexplicável instala-se... os suicídios...
Energia? O negócio dos generais, dizem-me, das Falas e das Faplas, têm o negócio dos petês com a Ende, nem sabem me explicar, eles é que fornecem a luz, rende milhões sem factura, dez mil em cada casebre, chega às 18h a luz murcha, fica metade, quando fica.
A água é outro grande negócio dos guetos e dos becos. Não há água. As mulheres acarretam na cabeça pesadas banheiras, sortudas porque o chafariz ainda deita e não estão a cobrar, ou compra-se água de qualidade duvidosa aos kaleluias, cem cada bidão e ainda se agradece o incómodo.
Para entrar nos bairros ou vamos de carro voando nos buracos, na lama e nos esgotos a céu aberto, ou vamos de moto-táxi, em alguns casos de candongueiro, mas os hiaces muitas vezes não aceitam entrar nos bairros, ficam-se pelas estradas. As viaturas não são eternas e as peças são muito caras. Não há transportes públicos dignos desse nome nos bairros de Luanda, o povo é como um amontoado de vivos-mortos, arrastando-se em todas as direcções, como respondendo a chamamentos, mas não, apenas tenta tratar da vida e conseguir valores para comer arroz, apanhar um "táxi", pagar a propina nos colégios ou nas faculdades ou o soro aplicado no centro de saúde para tratar a malária."

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

RTAngola_ 'rir da miséria'

Na televisão pública angolana foi emitido o concurso 'quem quer ser milionário'.

De algumas edições fizeram, no YouTube, um condensado com vários concorrentes, que por lá passaram.

O que para muitos parecia ser uma paródia, chacota ou motivo de riso, tornou-se para mim um momento triste e deprimente.

Naqueles olhos havia a inocente transparência, na angústia de quem enfrenta perguntas - para outros, simples - totalmente desconhecidas.

Exemplos: instrumento de cordas - (violino) "; crawl - (estilo de natação);
ou, morcego - (mamífero).

As respostas foram erradas como seria de esperar.
As pessoas não tiveram oportunidade de saber o que é um concerto musical, praticarem desporto ou saber da vida e a sua evolução.

Errado é a televisão pública importar e difundir formatos inadequados à cultura dum povo. Não apostarem seriamente em programas didácticos. 

E se Angola é rica em tradições...

Pôr de parte este tipo de concursos de pastel, que nada acrescentam e não passam dum novo-riquismo sujeitos ao ridículo, é o primeiro passo para contribuir para uma melhor educação e cultura. 

Nesse sentido, um verdadeiro serviço público deve relevar os valores seculares dos vários povos que compõem a nação e não o espectáculo redutor, que só serve para gáuleo duma minoria dita de élite.