quarta-feira, 31 de julho de 2019

12_Alice Vieira



12

até pode ser que nem gostes muito destas palavras
nem de mim agora que os meus gestos
são tão diferentes
agora que recordas tanta coisa que eu esqueci
e ainda bem ninguém pode viver
com o peso do que ficou para trás
agora que os livros as canções as laranjeiras
ficaram para sempre naquele cenário de primavera
que fazia de nós todos o garantiam
presas tão fáceis

pressinto que hás-de culpar-me sempre
pelos anos que perdemos por becos ruas avenidas
esquecendo à toa aquilo
que só um ao outro deveríamos ter ensinado

talvez até tenhas razão mas eu chegara
àquele lugar da vida onde só se pode
amar para sempre e sem remédio
e de um dia para o outro a minha boca

desaprendeu disciplinadamente o sabor da tua
e os teus passos a tua voz o céu de paris
a janela sobre os telhados os domingos de sol
atravessaram as mais arrastadas fronteiras
e estabeleceram os seus limites do lado de lá
de todas as madrugadas que eram nossas

houve mesmo um tempo desculpa em que esqueci
as cartas os cigarros as fugas os recados
as canções as camélias o jardim
onde me esperavas às nove da manhã
a velha que nos olhava abanando a cabeça
entre estátuas decepadas e gatos vadios

talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras

tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra

talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti

Autor : Alice Vieira
In Dois corpos tombando na água

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Amália Rodrigues - "Naufrágio" (Audio, 2019 Remastered)


letra/ musica

Naufrágio


Pus o meu sonho num navio
E o navio em cima do mar.
Depois abri o mar com as mãos
Para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
Do azul das ondas, entreabertas.
E a cor que escorre dos meus dedos
Colore as areias desertas.
O vento vem, vindo de longe,
A noite se curva de frio.
Debaixo d’água vai morrendo meu sonho,
Vai morrendo dentro do navio.
Chorarei quanto for preciso
Para fazer com que o mar cresça
E o meu navio chegue ao fundo
E o meu sonho desapareça.

Compositor: Cecília Meireles / Alain Oulman

......



domingo, 21 de julho de 2019

A borboleta_Mia Couto




Mia Couto
Escritor

Mapeador de Ilhas

19.07.2019 às 10h23

A borboleta 

Não sei se reparou, Marlene, que tratamos de Recursos Humanos. E sempre de olhos baixos, ironizou: Humanos, está a perceber? Borboletas, não são da nossa competência. E mandou que se pulverizasse a sala com um inseticida. Desses inodoros, acrescentou. Em pânico, Marlene fingiu acatar a ordem.

Ilustração: Susa Monteiro

No escritório da multinacional, num décimo quinto andar da capital, surgiu uma borboleta. Estava pousada no microfone da sala de reuniões. A secretária Marlene aproximou-se com infinita cautela, sentou-se numa das cadeiras da sala vazia e permaneceu imóvel durante longos minutos. Olhou em contraluz para as asas coloridas e achou que estava em presença de uma mensageira. Usou o seu telefone, fotografou o inseto, editou a imagem para realçar as cores e enviou-a para umas tantas amigas.

Procurou no Google o oculto sentido daquela aparição. Uma página da net fornecia uma longa lista dos significados espirituais das borboletas. Renovação, recomeço e anunciação eram os mais comuns. Uma outra página era mais apelativa: Você sabia que os Anjos se comunicam frequentemente connosco através das borboletas? Marlene filmou o eventual anjo que permanecia hirto no poleiro metálico. Procurou outra página e então, sim, encontrou algo que a deixou tão paralisada quanto a borboleta. Aquela criatura trazia o mais esperado dos recados: o da fertilidade. Há anos que Marlene esperava engravidar. E ali estava, na mais delicada criatura, o anúncio da boa nova há tantos anos esperado. Mais entusiasmada que Marlene apenas a Virgem Maria ante o Arcanjo Gabriel.

Por fim, a secretária fez o que dela profissionalmente se esperava: comunicou a aparição ao seu superior, o Diretor de Recursos Humanos. O marido de Marlene, o Osório, há meses desempregado, irrita-se sempre que ela lhe fala do seu local de trabalho. Recursos Humanos?, pergunta o marido. Prefiro o desemprego a ser tratado como “recurso”. Osório reage assim por despeito, pensa Marlene. Lá em casa ela era a chefe de família. E a raiva do marido cresce: um homem não foi feito para esperar pela mulher. E um casal não foi feito para desesperar por um filho.

O diretor não levantou os olhos do computador. E assim manteve Marlene na habitual invisibilidade. Não sei se reparou, Marlene, que tratamos de Recursos Humanos. E sempre de olhos baixos, ironizou: Humanos, está a perceber? Borboletas não são da nossa competência. E mandou que se pulverizasse a sala com um inseticida. Desses inodoros, acrescentou. Em pânico, Marlene fingiu acatar a ordem. E já fechava a porta quando o diretor se ergueu, atacado por súbita preocupação.

– Onde é que está a mariposa?
– É uma borboleta. Está na sala de reuniões.

Marlene acompanhou a acelerada marcha do chefe ao longo do corredor. As borboletas fecham as asas por cima do corpo, foi explicando enquanto caminhava. As mariposas deixam-nas ao lado do corpo, como um avião.

O diretor irrompeu ruidosamente pela sala de reuniões e espreitou de longe a impávida borboleta. Rodou pela mesa, tirou fotografias de diversos ângulos. Ligou-se à internet e procurou: “Doenças provocadas por borboletas”.

Em poucos segundos, sentenciou:

– Chame imediatamente a responsável do DHS.
– Quem?
– O Departamento de Health and Safety!!!

Marlene sabia: naquela empresa, em momentos decisivos, as pessoas eram designadas em inglês. Como se, em português, valessem menos.

– Vá chamá-la, agora.

Mesmo em português, a ordem era sumária e perentória. Suspeitando da gravidade do que se seguiria, Marlene ainda ousou contestar.

– O que passa, doutor? É uma simples borboleta.
– Pousada no microfone onde as pessoas falam?

Marlene foi para o seu gabinete e ligou para o DHS. Depois, reabriu a página que antes consultava no computador. Procurou “Os mais belos versos sobre borboletas”. E abriu um poema chamado “Jardim”. E leu em voz baixa:

Se eu tivesse jardim
seria para semear borboletas.


Limpou uma imaginária lágrima, ajustou o vestido ao ventre que já adivinhava em redondez lunar. De volta à sala de reuniões, encontrou a responsável de Saúde e Segurança, recebendo instruções do diretor de Recursos Humanos.

– Ouviu falar da epidermólise bolhosa, também chamada doença da borboleta?
– Nunca ouvi falar disso.
– Fica-se com a pele tão frágil como as asas de borboleta.
– Gostava de ter asas de borboleta. Amarelas como essa que aí está pousada.
– Não brinque com coisas sérias, doutora. Com essa doença, as pessoas deixam de poder usar sapatos, só podem usar roupas especiais. A pele rompe-se ao menor atrito. Morre-se antes dos trinta.
– Que horror!
– Proceda a uma avaliação de riscos. Consulte o procedimento A-34.
– Mas, diretor, a tal doença... tem a certeza de que é transmitida por borboletas?
– Foi o que vi no Google. É sua função confirmar isso, doutora.

Marlene entrou na sala acompanhada por uma empregada de limpeza. O que vão fazer, perguntou o diretor. Vamos abrir a janela e enxotá-la, respondeu a empregada de limpeza. Nada disso, argumentou o diretor. Vá é buscar o aspirador, e fazemo-la desaparecer enquanto o diabo esfrega um olho.

Marlene levou as mãos ao peito angustiada em imaginar o seu Arcanjo Gabriel a desaparecer no ventre escuro de um aspirador. Deu um safanão no microfone e a borboleta ergueu voo em direção às paredes de vidro da sala. Marlene entreabriu a janela envidraçada para que o bicho pudesse escapar. Mas a borboleta deu meia-volta e voou na direção oposta. Pousou num quadro na parede do lado oposto. O quadro chamava-se “O céu”. Havia naquela tela uma nesga de azul sobre prédios, antenas e fumos. Mas era um azul vindo de dentro, uma cor que apenas o pintor sabia existir. A borboleta tinha escolhido o seu pouso definitivo. O céu que restava lá fora era demasiado escasso para voar. E demasiado sujo para morrer.

Nesse final de tarde, Marlene regressou a casa sem peso, como se não houvesse chão. E caminhou como se tivesse asas. Talvez fosse a tempo de surpreender Osório acordado. Talvez o marido descobrisse nela o mesmo céu que a borboleta encontrara na tela.

(Crónica publicada na VISÃO 1375 de 11 de julho)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Alentejo_A Morte Anunciada >Mina da Lagoa Salgada





Milhares de sobreiros em risco? A mina que ainda não abriu e já está a assustar muita gente


Bruno Gonçalves
15/07/2019 20:04
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O projeto da Mina da Lagoa Salgada ainda está numa fase inicial, mas os agricultores da zona já estão preocupados com o impacto que poderá ter na região. Temem que os milhares de sobreiros existentes naqueles 10 mil hectares acabem por morrer. O i esteve no local para perceber o que está em causa.


São milhares de árvores protegidas por lei, um dos montados mais bonitos do concelho de Grândola e o sustento de várias famílias. Agora, vários agricultores temem que os seus sobreiros sejam destruídos pela Mina da Lagoa Salgada, um projeto que ainda aguarda aprovação mas já está a apoquentar várias povoações. Os agricultores já testemunharam um cenário parecido nas imediações, com a exploração de outras minas – o pior surgiu quando estes projetos foram encerrados e as pessoas foram deixadas desamparadas. Temem que não se tenha aprendido com os erros do passado e que a ganância se sobreponha às preocupações com o ambiente e com as populações.

O consórcio Redcorp e EDM – Empresa de Desenvolvimento Mineiro detém uma área concessionada pelo Estado para a prospeção e pesquisa de depósitos minerais como cobre, zinco, ouro e prata. Esta área, chamada Lagoa Salgada, tem 10 700 hectares, ou seja, o equivalente a dez mil campos de futebol, que se estendem pelos concelhos de Grândola, Alcácer do Sal e Ferreira do Alentejo. Dentro desta área existem muitas propriedades privadas, cheias de sobreiros e outras espécies.

Ora, pretende agora a Redcorp obter a concessão de exploração da Mina da Lagoa Salgada. Segundo a proposta de definição do âmbito, um documento que antecede um estudo de impacto ambiental, a empresa propõe-se abrir uma mina naquele local, o que implica também a instalação de um “estabelecimento industrial de tratamento do minério, denominado lavaria. Nesta unidade terá lugar a beneficiação do minério, composta por processos de concentração do minério, para a produção de concentrados de zinco, de chumbo e de cobre existentes no jazigo mineral”. O projeto incluirá ainda zonas de armazenamento, escritórios, instalações sociais e oficinas.



Este projeto está para avançar há anos, mas agora, com a partilha deste documento na plataforma da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), as pessoas que têm propriedades dentro da zona concessionada começam a temer que a abertura da mina esteja para breve. E que destrua o trabalho de várias gerações. “Estão aqui árvores centenárias, milhares de árvores que foram plantadas há dezenas de anos e que agora dão da melhor cortiça. Este projeto poderá colocar em causa o trabalho de várias gerações e destruir uma das zonas de montado mais bonitas do país”, disse ao i António Rocha, um dos proprietários de terrenos dentro da área concessionada.

E este medo aumentou com o que estava descrito na proposta de definição de âmbito: a Redcorp fala sobre os riscos para a qualidade da água e do ar e a possibilidade de existirem níveis elevados de ruído. Mas uma das questões que mais preocupam os agricultores da zona são os níveis freáticos. “Considera-se que não são negligenciáveis as necessidades hídricas do presente projeto, a eventual possibilidade de provocar rebaixamentos induzidos nos níveis freáticos envolventes e a possibilidade de poder afetar os cursos de água superficiais”, refere o documento, sem adiantar, no entanto, de que forma isto poderá acontecer, em que zonas e quais as formas de mitigar os danos. O rebaixamento dos níveis freáticos teria consequências muito graves nos sobreiros e nas restantes espécies daquela área – sem água no subsolo, as árvores não conseguiriam manter os níveis de humidade necessários à sua sobrevivência.

Aliás, o documento pouco ou nada fala sobre as consequências deste projeto nos milhares de sobreiros daquela zona. Ao contrário de, por exemplo, a Mina de Neves-Corvo, que era já uma zona com pouca vegetação, a Lagoa Salgada está repleta de árvores – basta passear um pouco pela zona para perceber que não existe uma área com uma dimensão considerável para instalar partes deste projeto sem arrancar árvores. “Em Neves-Corvo, as lagoas das lavarias têm 260 hectares. Estas áreas têm vários produtos químicos e reagentes, que são usados na extração [dos minerais]. Aqui não temos uma zona sem árvores com essa dimensão”, frisa António, com um tom grave na voz, de quem antevê o corte de muitos sobreiros.



Por agora, não foram arrancadas árvores, mas foram feitas dezenas de sondagens no local que estão já a afetar o terreno: equipas que se encontram no local 24 horas por dia realizam perfurações para recolher amostras do que está no subsolo. “Com a areia a acumular-se, sem a vegetação à volta, vamos ficar com uma zona árida, parecida com um deserto”, diz António ao i.

No terreno de Manuel Rocha, tio de António, as equipas continuam a perfurar o solo e a tirar barras brilhantes, com vestígios de ouro e prata. Aqueles cilindros valem muito para uns, mas para Manuel pouco interessam. “É uma tristeza o que estas pessoas estão a fazer. Eu não posso fazer uma série de coisas sem autorização [do Estado] e estes senhores chegam aqui e podem furar tudo. Estão a destruir o trabalho de uma vida”, diz o agricultor octogenário, sem conseguir conter as lágrimas.

No terreno de Luís Dias ainda não há furos, mas este agricultor teme que, com as consequências cada vez mais evidentes das alterações climáticas, este projeto venha piorar ainda mais a situação. “Neste momento há já no concelho muitas zonas com dificuldades em obter água. Parece haver um desprezo pelos impactos ambientais e os estudos feitos sobre isso parecem ser apenas uma mera formalidade. Há sempre interesses por trás destas coisas. Por muito aguerridos que possamos ser, somos muito pequeninos para lutar contra estas coisas”, disse ao i.

Nas mãos dos canadianos

Mas se estes são terrenos privados, como podem estar a ser feitos buracos sem autorização dos proprietários? A resposta é dada pelos próprios agricultores de uma forma muito simples: o Estado é dono de tudo o que está abaixo dos cinco metros de profundidade. “Os proprietários não têm direitos no subsolo. Normalmente, as empresas informam as pessoas que querem realizar sondagens nas suas propriedades. Mas se estes se mostrarem contra, julgo que o interesse do Estado se sobrepõe ao do privado”, confirmou o eng.o Augusto Pedroso.

Este especialista em engenharia de minas, conhecedor daquela área em particular, defende que é possível mitigar os impactos ambientais da abertura de uma mina, mas tudo depende de quanto se está disposto a gastar: “É difícil não haver impactos. Desde a contaminação de solos, de ar, o ruído, etc. Mas alguns impactos podem ser mitigados. Os processos já estão todos tão desenvolvidos que há sempre soluções, umas mais caras, outras menos caras. Está tudo relacionado com o jogo dos custos e dos interesses económicos”, diz ao i.



Quem está por trás deste projeto?

É preciso recuar alguns anos para perceber todos os negócios que já houve em torno destas terras. Em 1994, a área foi concessionada a uma empresa chamada Rio Tinto Zinc e à EDM, que é uma agência do Estado português. Foram realizadas várias perfurações para perceber se aquele vasto terreno tinha potencial. E tinha. Tanto que até despertou interesse no estrangeiro. Assim, em 2004, a propriedade é comprada pela Redcorp, que na altura era detida pela canadiana Redcorp Ventures. Em 2009, a empresa portuguesa é adquirida pela Portex, também ela uma empresa canadiana. Seis anos depois, a empresa de investimento suíça TH Crestgate GmbH adquire 100% da Redcorp. A última mudança acontece em junho de 2018, quando a empresa volta a ficar nas mãos dos canadianos: a firma suíça chegou a acordo com uma companhia chamada Ascendant Resources que é agora responsável por parte desta subsidiária portuguesa, que tem sede em Braga. Além disso, a Ascendant descreve no seu site que detém atualmente 25% da Redcorp, mas “tem a opção de chegar aos 80% após serem alcançados determinados objetivos”.

O i enviou questões à Redcorp para perceber como o projeto está a decorrer e se estão a ser acauteladas as questões ambientais mas, até ao fecho desta edição, não obteve respostas. O i questionou também a APA e o Ministério do Ambiente sobre este processo, que não reagiram. Também as autarquias foram questionadas sobre este projeto e apenas a Câmara Municipal de Alcácer do Sal respondeu, dizendo que o município “pronunciou-se nos termos legais aplicáveis, evidenciando um conjunto de preocupações que propôs serem consideradas no Estudo de Impacto Ambiental, na área abrangida pelo contrato de prospeção”. “Acima de tudo, o Município pretende, e já se pronunciou no sentido de que a pretensão dê cumprimento ao PDM de Alcácer do Sal, e que seja garantido que os impactos negativos respeitantes à implantação do projeto não agravem a situação social, económica e ambiental no concelho”, acrescenta.

As árvores do pós-guerra Enquanto caminhamos pela propriedade, Manuel Rocha aponta para alguns dos sobreiros. “Veja como são bonitos e fortes. Vão destruir o que demorámos anos a construir”. E não há aqui hipérboles: um sobreiro demora cerca de 40 anos a entrar em fase de produção.

A primeira cortiça que é retirada, com uma tonalidade mais branca, tem de ter, na zona da planície de Grândola, entre 20 e 25 anos. Chama-se cortiça virgem e é usada ou para moer ou para elementos de decoração, vendidos principalmente nos Estados Unidos. Depois de esta ser retirada, é necessário esperar mais dez anos para extrair cortiça. Esta, chamada secundeira, é de má qualidade e só é usada para moer – a cortiça moída é usada depois para fazer alguns objetos, como sapatos. Após outra década começa a sair cortiça de melhor qualidade. Os sobreiros mais antigos, que continuam a produzir boa cortiça, são conhecidos como as árvores do pós-ii Guerra Mundial.

Passados pelo menos 40 anos começam a surgir os frutos de um trabalho difícil. Mas vale a pena esperar: a unidade da cortiça é vendida à arroba (15 quilos) e cada uma pode valer até 60 euros. Se for cortiça de boa qualidade, a quantidade que está na foto acima pode chegar aos 130 mil euros.

É um trabalho bem remunerado. Os agricultores passam oito horas no campo, a realizar tarefas duras, mas recebem, em média, 120 euros por dia. “Normalmente, quem faz este trabalho realiza outras tarefas no campo. Nesta altura do ano dedicam-se à cortiça, param em setembro e, mais tarde, dedicam-se à apanha da pinha-mansa. Depois, entre dezembro e março, fazem as limpezas das árvores. A partir de março fazem a tosquia das ovelhas, que dura até maio. Vão andando por estes trabalhos sazonais, duros, mas com uma remuneração muito acima da média. As pessoas deste projeto da Mina da Lagoa Salgada tentam aliciar com a criação de 300 postos de trabalho, mas esquecem-se que aqui não há desemprego. Só não trabalha quem não quer”, diz ao i António Rocha.



“A Chernobyl cá do sítio”

Não é de admirar que os proprietários de terrenos na zona da Lagoa Salgada estejam com medo do que aí vem. “Assim que isto perder o interesse, deixam tudo ao deus-dará”, dizem ao i.

Essa é, pelo menos, a realidade que testemunham numa aldeia que fica a apenas 40 quilómetros de distância, chamada Lousal. A mina de pirite ali aberta na década de 40 teve o seu momento áureo nos anos 60/70, mas a crise industrial do enxofre fez com que muitas explorações acabassem por ser encerradas. Foi o que aconteceu à mina do Lousal, em 1988.

“Na altura em que a mina funcionava, havia boas condições”, garante Maria Lucília Costa, assistente social que acompanhou os habitantes após o fecho da mina. Os trabalhadores viviam perto da exploração e tinham vários serviços ao seu dispor, como um hospital e uma farmácia.

Mas tudo mudou com o encerramento deste projeto: “Tudo girava à volta da mina. Com o seu encerramento, quase todas as pessoas ficaram desempregadas e os serviços foram todos encerrados. A população ficou entregue a ela própria”, explicou ao i.

O Estado já investiu milhões de euros a criar museus, centros de ciência e outros polos, mas de nada serviu: quem passa pela aldeia vê apenas uma ou duas pessoas na rua que olham para os forasteiros com ar de assustados, edifícios novos deixados ao abandono e casas destruídas, sem sinal de vida há vários anos.

“Houve um grande investimento no centro comunitário e na formação das pessoas, mas não havia emprego, pois não foram criadas empresas naquele sítio. E as pessoas, para irem trabalhar para Grândola, das duas uma: ou conseguiam bons empregos e ganhavam bem ou tinham de ter bons meios de transporte, pois a cidade ainda fica a 30 quilómetros de distância. Nada disto aconteceu”, diz a assistente social. Assim, a população do Lousal por ali foi ficando, entrando num estado de pobreza cada vez mais crítico. “Houve investimento no território físico, mas não houve uma aposta na qualidade de vida das pessoas. Não foram criadas respostas sustentáveis para aquela comunidade”, acrescenta Maria Lucília Costa.



E há ainda a questão da saúde: desde o encerramento da mina, em 88, que continuam a existir grandes reservatórios cheios de químicos. Quando vem o tempo do calor, a água seca e os reagentes acumulados ali há dezenas de anos ficam nos sedimentos. Quando chove, os reservatórios voltam a encher e a água que ali fica durante meses continua contaminada. E há ainda problemas no revestimento das casas – basta passar pelas primeiras ruas do Lousal para perceber que muitas habitações continuam a ter telhados feitos com as chamadas telhas de lusalite, associadas à presença de amianto.

O trabalho na mina, só por si, já traz consequências graves para a saúde, mas a presença de químicos na zona há mais de 30 anos também não deixa ninguém à vontade. Há mesmo quem diga que o Lousal é a “Chernobyl cá do sítio”, devido ao número de pessoas que desenvolveu problemas de saúde associados à exploração mineira, às ruas desertas e aos olhares vazios dos poucos que ali vão sobrevivendo. O i questionou também o Ministério do Ambiente e a APA sobre este problema mas, até ao fecho desta edição, não obteve resposta.

in: jornal i

domingo, 7 de julho de 2019

Joao Gilberto & Stan Getz - Full Album (1963)

João Gilberto Pereira de Oliveira

10 de junho de 1931- 6 de julho de 2019

Melhor que o silencio, a memória da sua música.

"Eu estou quase chegando lá..."- João Gilberto








Morreu João Gilberto, o autor da batida que deu o som à bossa nova


"João Gilberto, o pai da bossa nova, considerado um músico genial, morreu neste sábado no Rio de Janeiro, aos 88 anos. O artista estava isolado e sem dar concertos há anos.

Nuno Pacheco e PÚBLICO
6 de Julho de 2019, 21:09 actualizada às 10:58



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No mesmo dia em que, no Coliseu de Lisboa, o cantor brasileiro Pierre Aderne rendia homenagem a João Gilberto, cantando Uma Casa Portuguesa com o mesmo arranjo com que ele a cantara naquela sala, em 1984, o genial criador da batida que deu origem à bossa nova morria no Brasil, com 88 anos. A causa da morte não foi divulgada, segundo jornais como O Globo, mas a edição online da Época adiantava esta podia ter sucedido durante exames médicos, que teriam corrido mal.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, nascido em Juazeiro, no estado brasileiro da Bahia, a 10 de Junho de 1931, é considerado o fundador legítimo da bossa nova, já que a sua batida de violão, à data revolucionária e inconfundível, esteve na origem da eclosão do movimento. O mais curioso é que ele tenha sido convidado, em 1951 (numa altura em que cantava na Rádio Sociedade da Bahia) a substituir o vocalista dos Garotos da Lua, Jonas Silva, porque este “cantava baixinho”. João voou então da Bahia para o Rio, aonde nunca tinha ido, e aos 19 anos entrou no grupo. Nessa altura, João Gilberto admirava cantores como Lúcio Alves ou Orlando Silva, cuja voz chegou a imitar num disco obscuro, em que gravou Quando ela sai e Meia luz.

Ao mesmo tempo, arranjaram-lhe emprego como escriturário na Câmara de Deputados, mas a desatenção e a falta de assiduidade fizeram-no perder os dois empregos. Começou então, para João Gilberto, uma espécie de descida aos infernos: sem trabalho, sem dinheiro, passou fome, actuou em festas onde até teve de se vestir de palhaço para sobreviver e gravou jinglespublicitários. Só após um longo período, onde teve de enfrentar inúmeras adversidades, acabou por se recolher em Diamantina, onde tinha uma irmã mais velha, e aí permanecer oito meses como um monge. Foi de lá que, depois de insistentes ensaios onde se fechava horas a fio no quarto só com o seu violão, que um dia voltou a Juazeiro e depois ao Rio. E trazia a chave.

A chave era uma batida de violão como nunca ninguém ouvira. Deram-lhe uma morada, a de Roberto Menescal, João bateu, perguntou se não havia um violão por lá, mandaram-no entrar e então ele tocou duas canções que tinha escrito: Hô-bá-lá-lá e Bim bom. Foi um espanto. E a palavra espalhou-se. Sugeriram que ele gravasse. E disseram-lhe para procurar o maestro da Odeon, que não era outra senão Tom Jobim. Gravou então um single, Chega de saudade, em 1958.

Mas antes foi chamado a participar num disco muito marcante para a época, Canção do Amor Demais, de Elizete Cardoso, com Vinicius e Tom a soprarem as brasas. O sucesso, porém, chegaria mais tarde: se o single de João vendera uns 15 mil exemplares, o seu primeiro álbum, também intitulado Chega de Saudade, vendeu 35 mil logo à cabeça. E o boom da bossa nova começou aí, com inúmeros músicos a dizerem-se influenciados por João Gilberto (ainda hoje, Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil o veneram, sem hesitar) e com uma horda de seguidores a darem o seu contributo pessoal ao novo som do Brasil. Com a marca de João.

“O samba-canção já produzira muitas canções que antecipavam a bossa nova. Só faltava a batida revolucionária do João”, resumiu recentemente à BBC o jornalista e escritor Nelson Motta. E ainda agora Zuza Homem de Mello, num depoimento para O Estado de S. Paulo, escreveu que “João Gilberto mostrou ao mundo uma nova bossa de cantar e de tocar o samba, o baião, a marchinha, a valsa, o samba-canção, o foxtrote, um hino, uma cantiga.” Foi, e disso ninguém hoje duvida, o génio providencial que mostrou ao mundo algo ainda por inventar.

Da obra de João Gilberto fazem parte os álbuns Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), ainda na fase ascendente e descendente da bossa nova (foi um movimento tão forte e revolucionário quanto pouco duradouro no seu tempo, já que nas décadas seguintes nunca deixou de ser lembrado), gravando depois ainda vários discos, como João, Voz & Violão, editado no início do ano 2000 com produção de Caetano Veloso, que viria a dar-lhe um segundo Grammy, como o melhor disco na categoria de world music. O primeiro, recebeu-o em 1964 pelo disco Getz/Gilberto (com ele, o saxofonista norte-americano Stan Getz e Tom Jobim) e atirou-o para um canto da casa. Não lhe deu valor. Não era a sua arte que homenageavam, segundo ele, mas o que dela o mercado retirara.

A bossa nova viveu, pois, bem para além de João Gilberto e do seu espírito visionário, que convivia com um comportamento difícil, sobre o qual se contaram muitas lendas e algumas verdades, nem todas fáceis de entender pelo comum dos mortais. Mas a sua obra perdura como a de alguém que deu à música um olhar novo, um caminho de que só ele soube o segredo.

Não foi pacífico o seu fim: em 2018, em pleno 60.º aniversário do movimento bossa nova, João Gilberto, foi obrigado a deixar o seu apartamento de sempre no Leblon, no Rio de Janeiro, por ter pagamentos em atraso nas rendas. E nos últimos anos, aos relatos públicos do seu crescente isolamento juntou-se à tentativa da filha, a cantora Bebel Gilberto, de o interditar judicialmente por considerar que não estava capaz de autonomia e gestão das suas finanças. Houve, depois disso, uma pacificação aparente. E houve, ainda, a morte da sua ex-mulher Miúcha, irmã de Chico Buarque, em Dezembro passado, que também o abalou. A morte, agora, deu-lhe o devido estatuto: a eternidade."

in: jornal "Publico"

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"O que é que João tem? João Gilberto

Alexandra Lucas Coelho, no Rio de Janeiro 30 de Outubro de 2011, 0:00


É o grande mito vivo da música brasileira. Inspirou meio mundo, da Bahia a Berlim, de Tóquio a Nova Iorque. Vive de noite, não sai de casa, passa 12 horas a tocar violão e nunca dá entrevistas. Mas foi pai aos 73 e agora, aos 80, vai fazer uma turné. A Pública falou com quem rodeou e rodeia João Gilberto. E de caminho tocou-lhe à campainha.

1. O homem invisível


Noite de neblina. Rio de Janeiro, sim, mas na viragem de domingo para segunda. O taxista quase dorme quando a repórter liga para a praça. Túnel Rebouças, Lagoa, Leblon: nem trânsito nem gente. Uma noite para nosferatus - não fosse o mar aqui à esquerda, respirem lá. Neblina mas com cheiro de mar. E quando o táxi entra na rua Carlos Góis, aquele oitavo andar está iluminado.

É João Gilberto, conclui a repórter, estacando no calçadão, já hipnotizada. João Gilberto talvez a treinar O pato pela 3786.ª vez ("O pa-to / vinha cantando alegremente / quéim, quéim..."). O mais perto que podemos chegar de João Gilberto é ouvi-lo na nossa cabeça.


A rua é esta, o número é este, um prédio do Leblon parecido com os fatos impessoais de João. Fato de vestir e não a palavra fato depois do acordo ortográfico. Os brasileiros não têm este problema porque chamam ternos aos fatos. Digamos então: o prédio de João é parecido com os ternos de João.

Mas será mesmo o prédio de João? A 10 de Junho, quando ele fez 80 anos, ainda era. E se mudou? Há que achar fontes in loco, embora, claro, o relógio na esquina marque 1h06. Boa hora para João, má hora para fontes. As quatro lojas da fachada estão de grades corridas: Enquadre - Loja de Gravuras; Cabeleireiro Pedro e Paula; Locadora Vídeo Nacional; roupas DatsKat. E as lojas da fachada lateral idem: um veterinário, uma depiladora, uma pizaria.

Correm muitas histórias extravagantes sobre João Gilberto. Que ele é visto em noites de chuva com um capote. Que quem lhe leva comida nunca lhe vê a cara. Que um vizinho gritou com ele por causa do cheiro a marijuana e ele gritou de volta (João gritou? Quem acredita nisto?).


Mas alguém podia também inventariar as extravagâncias dos fãs que estacam hipnotizados no calçadão de João à 1h06 da manhã a tentar extrair sentido do facto de que, durante o dia, enquanto ele dorme, apenas oito andares abaixo há quem arranje as unhas, vacine o gato ou coma uma piza com nozes e presunto.


A propósito, será essa que ele costuma pedir?

E eis que dos fundos da pizaria emergem quatro mulatas, com os seus shorts, os seus sacos de plástico, a caminho dos morros, finalmente a caminho de casa. O nome João Gilberto não faz acontecer nada na cara delas. "Um senhor que nunca sai de casa e mora aqui por cima...", tenta a repórter. Uma delas abre os olhos, vira-se para as outras: "Ah, aquele senhor..." Depois não diz mais nada. E as quatro desaparecem.

Resta o gradeamento na outra ponta do prédio. É aí que está a campainha para o porteiro. Os prédios típicos da Zona Sul do Rio têm grade e porteiro.

A repórter toca.

"Pois não", diz o porteiro.

"Boa noite, eu gostaria de saber se João Gilberto mora no oitavo ou no nono andar."

Pausa. "Não estou autorizado a informar."

"Mas ele mora aqui?"

"Mora, sim." Pausa. "Não estou autorizado a dar nenhuma informação."

Não porque sejam 1h06 da manhã (entretanto já será um pouco mais). Este porteiro tem o turno da noite, e o turno da noite é simplesmente o turno de João Gilberto. Estranho seria vir aqui de manhã ou à tarde. Ou querer confirmar alguma informação além desta: ele está aqui, é aqui que ele está (como no poema de Carlos Drummond de Andrade, "no meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho", e já agora Drummond é o poeta favorito de João).

Muito obrigada, senhor porteiro.

Para o resto, resta ouvir, e ouvir quem conheça João Gilberto, tomando como pretexto que daqui a dias ele inicia a turné 80 Anos. Uma Vida Bossa Nova. Imaginem: se normalmente já toca umas 12 horas seguidas de violão, agora deve estar a fazer horas extra naquele oitavo andar.

Como contará a sua ex-mulher e grande amiga Miúcha Buarque de Holanda, o que João continua a dizer sobre qualquer canção é: "Eu estou quase chegando lá..."



2. A turné

"Nada que vem de João me surpreende." Eis como o biógrafo, produtor e compositor Nelson Motta, ele mesmo parte da Bossa Nova, comenta à Pública a anunciada turné de João Gilberto. Não falam há quatro anos, mas perante os concertos anunciados - de São Paulo (5 de Novembro) a Salvador (9 de Dezembro), passando por Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre - Motta declara-se pronto: "Se puder, vou assistir a todos os cinco."

Já Ruy Castro, "o" biógrafo da Bossa Nova e aquele que mais páginas terá escrito sobre João Gilberto, não se lembra de ele ter feito uma turné semelhante, mas também não se surpreende. "Quando aceita fazer alguma coisa é porque a proposta é muito boa."

Mas esta proposta, segundo os organizadores, partiu de Claudia Faissol, a mulher que fez João Gilberto ser pai outra vez aos 73 anos (detalhes mais adiante) e faz parte do quotidiano dele (tal como Miúcha e o agente, Otávio Terceiro).

"No ano passado conheci a Claudia e ela me convidou para que pudéssemos fazer um projecto para os 80 anos de João", conta o produtor Maurício Pessoa, um baiano como João. "Eu falei: que João diga o que ele quer." Mas nunca falou com ele, nem por telefone. "A Claudia convive com João, cuida dele. Os contactos que fizemos todo o tempo foi através dela."

A primeira conversa aconteceu em Dezembro, o contrato foi assinado a 10 de Junho, aniversário de João. Abrange oito concertos, dos quais cinco serão este ano e os restantes, ainda sem data nem local, em 2012. "A novidade foi a hipótese de gravar DVD, porque ele não tem nenhum", explica Maurício. "Nós propusemos e ele acabou aceitando. Temos direito a fazer oito shows e gravar até dois DVD com ele."

E como será a turné? "Tudo vai ser feito como ele quer." Ele escolheu as cidades, a produtora propôs salas "a partir de premissas como a melhor acústica e o contacto com o público". Algumas eram velhas favoritas de João, como o Theatro Municipal do Rio ou o Teatro Castro Alves de Salvador. "Ele prefere teatros." Mas em São Paulo tocará num espaço novo, o Via Funchal (que pretende ser "a melhor casa de espectáculos do Brasil").

Outras exigências de João: "Som de altíssima qualidade, com dois técnicos vindos do Japão, um para o som, outro para a iluminação. Já vieram ao Brasil ver as salas e tiveram uma longa conversa com ele. Inclusive um deles é o guardião do banquinho." Em que João se senta para tocar e cantar. "João só faz show com aquele banquinho. Conheceu esses japoneses em 2003, em Tóquio e deu-se muito bem com eles." Os japoneses adoram João Gilberto.

Mais detalhes? "Ele quer ficar sete dias em cada cidade, para descansar, e o deslocamento é por jatinho. Alugámos um." A bordo deverão ir Claudia, a filha de ambos e o primo de João que é também seu médico." Em compensação, o recheio do camarim ficará em conta: "Ele só pediu água, café com leite e bolacha de água e sal."

O microfone será o AKG a que João está habituado. Mas em vez do seu violão Tarrega de boca ovalada deverá tocar um outro que lhe ofereceram recentemente, feito em 1967, remata Maurício.

O outro co-organizador da turné, Antônio Barretto Júnior, também é baiano, e de Juazeiro, a cidadezinha onde nasceu João, nas margens do rio São Francisco, embora, aos 43 anos, seja demasiado novo para se ter cruzado com ele lá. "As nossas famílias eram vizinhas", conta. "A minha mãe conheceu muito ele. Minha avó e meu avô, Lauro e Angélica Lustosa Aragão, eram amigos da família." E a família continuou sempre em contacto com Yulo Viana, o tal primo de João. "Foi médico de minha avó, de minha mãe e meu. Agora está com 80 anos, mas acompanha João sempre, tão lúcido e vigoroso quanto ele."

A prenda para Juazeiro vai ser um ecrã a transmitir o concerto de Salvador.

Entre jatinho, uma semana em cada cidade, os técnicos japoneses que vistoriaram as salas e vão acompanhar os concertos e um cachê que por contrato não pode ser revelado, a conta não sai barata. Além disso, não há patrocínio e as salas não são gigantes, o que encarece o aluguer. Tudo somado, ir ouvir João vai custar pelo menos um salário mínimo (200 euros a geral mais barata, 570 euros a plateia mais cara), o que causou revolta entre os fãs.

"Esta turné foi elaborada em torno de espaços acústicos com 2000 pessoas em média", justifica Barretto Júnior. "Considerando os convidados de João e da organização, uns 12 por cento são convites. Além disso no Brasil temos uma carga tributária de 20 a 30 por cento no lucro dos ingressos. E a gente não tem um patrocínio vigoroso." Quando fecharam contrato com João já os planos de mecenato para 2011 iam adiantados. "Fizemos um acordo com os Correios mas não é expressivo. Tem também a questão da meia entrada [para professores, estudantes e idosos, obrigatória em todos os espectáculos]. É um complicador muito grande."

Os fãs dirão que se não fosse a meia entrada é que só daria mesmo para ricos. Barretto Júnior resume: "O custo global da turné é de 4,5 milhões de reais [1,8 milhões de euros]."

Ainda assim, à hora de fecho desta edição, Rio e São Paulo já tinham vendido 90 por cento dos bilhetes e Brasília e Porto Alegre 70 e 75 por cento (Salvador ainda não estava à venda).

Cada concerto terá entre uma hora e meia e três horas, consoante o ânimo de João. Que vai ele tocar? "Não nos passou o repertório. Será uma surpresa muito agradável."



3. O biógrafo e os discos

"Não conheço essa moça, mas me parece que ela está sendo uma influência positiva nele", diz Ruy Castro sobre Claudia Faissol.

Estamos num apartamento de cobertura no Leblon que seria o paraíso de qualquer melómano (e alguns bibliófilos), ainda por cima meticulosamente organizado. Ruy Castro, que aos 63 anos se apresenta de calções e com um sorriso de mágico, é quase vizinho de João Giberto, mas há 21 anos que não fala com ele.

Biógrafo de Nelson Rodrigues, de Carmen Miranda, de Garrincha, e contínuo biógrafo do Rio de Janeiro, Castro estreou-se em livro apenas em 1990, depois de uma longa carreira como jornalista, (incluindo, entre 1973 e 1975 - olhem só as datas - ser editor das Selecções do Reader"s Digest em Lisboa, onde aliás tem uma filha e netos portugueses).

Mas a sua estreia como escritor foi retumbante: Chega de Saudade - A história e as histórias da Bossa Nova, múltiplas reedições, sendo que vale mesmo a pena ter a versão em formato original por causa das fotografias, como Ruy Castro fará a gentileza de mostrar, ao ver a amassada edição de bolso da repórter. Começa logo pelo facto de que na capa está João Gilberto, de pé, na praia, com violão.

Sim, Chega de Saudade é uma biografia da Bossa Nova. Mas se tem algum protagonista é João Gilberto, o único que o autor vai acompanhando desde a infância. De tal forma que em alguns momentos parece saber o que ele está a pensar.

O mais extraordinário é que Ruy Castro nunca viu João.

"Não quis pôr em risco aquela sequência de conversas por telefone que estavam correndo muito bem", conta, sentado num dos seus sofás, antes de passarmos aos discos. "Só precisava da cabeça e da voz dele."

E não foi difícil convencer João a falar?

"Facílimo. O [compositor de Bossa Nova Roberto] Menescal me perguntou: "Já falou com João Gilberto?" Eu disse: "Não, estou aprendendo tudo o que posso." Isso foi em 1989, já estava trabalhando havia um ano e meio no livro. Aí o Menescal disse: "Toma cuidado que ele vai-te hipnotizar." Eu disse: "Imagina!...""

Eram muitos anos de jornalismo, saberia resistir.

Então chegou o dia em que conseguiu o número de João. "Liguei, por volta de 23h, uma hora em que ele já devia ter tomado café-da-manhã... "João, boa noite, daqui quem fala é um escritor..." Não falei jornalista, achei que ele podia não gostar, e não falei em Bossa Nova, mas em música popular: "Eu não podia deixar de conversar com você, que é a personagem mais importante da história..." Ele ouvia, calado, do outro lado. Aí começou a falar..." Aveluda a voz para imitar João, sussurrante, lento: ""Que bom Ruy... Esse livro vai ficar ma-ra-vi-lho-so... Você é tão inteligente..." Ele ficou falando, falando. Aí quando ele se calou eu perguntei... [tão lento como João]: "Você acha mesmo, João...?" Eu já tinha sido hipnotizado!"

E depois, como avançou a conversa? "No começo eu evitava assuntos pessoais, era só música. Ele cantava [canções antigas], fazia todas as vozes, tem uma memória impressionante. Eu perguntava: "João, quem foi o acordeonista que influenciou tanto o [João] Donato?" Ele dizia: "o Ernie Felice." Eu nunca tinha ouvido falar, mas no dia seguinte saía em campo, e uma semana depois já tinha os discos de Ernie Felice. Quando ele falava o nome de um compositor do passado, nos dias seguintes eu me dedicava a aprender tudo o que podia."

Ou seja, Ruy Castro não só aprendeu João com João, mas um pouco de tudo com João. "Tínhamos uma conversa a cada 10 dias, umas cinco horas de cada vez, até às três da manhã. Foram umas oito conversas, ao longo de três meses." Tomava notas, não gravava. "E enquanto isso, ia conversando com outras pessoas. Um pesquisador que era de Juazeiro me deu nomes de lá. João se lembrava de histórias em Juazeiro e contava. Aí as pessoas de lá corroboravam. Consegui armar uma rede de informantes que tiveram uma participação intensa em várias épocas da vida dele, incluindo a irmã, com quem tive várias conversas ao telefone, longas."

Esta irmã, Dadainha, entrou directamente para a história da música porque foi na casa de banho dela, em Diamantina, Minas Gerais, que João "achou" a batida da Bossa Nova. Há muitas casas-de-banho na vida de João, muitas horas de violão sentado na retrete. As casas-de-banho são pequenas, solitárias e têm azulejos que ampliam cada "plim" numa corda de nylon. Também levam a voz a baixar.

Para além disso, na fase em que João ficou em casa da irmã, ela tinha acabado de ser mãe. Se a voz de João nunca foi de se projectar, menos ainda com um bebé por perto.

"Ele ficava no berço e João ia de meias lá tocar", conta Ruy Castro. "Como vou ter essa informação senão por ela? E a parte do banheiro, do que se passou na cabeça dele, vem do que ele contou para muita gente quando voltou ao Rio, e eu conversei com todos eles. Conversar com o maior número de pessoas, esse é o segredo de uma biografia. Não é ter a pretensão de se meter na cabeça dele, mas eu tinha muitos relatos e todos diziam a mesma coisa."

Depois, claro, havia a música. Os discos oficiais, os raros e aquelas gravações de concertos que nunca foram discos. Ruy Castro levanta-se, caminha até ao canto da sala onde tem a aparelhagem, incluindo dois pick ups. Houve um tempo em que se desfez dos vinis para comprar CD. "Agora estou a comprar os vinis de volta..." Mas este CD-R, por exemplo, contém algo nunca impresso em vinil. Ruy Castro sorri como um Houdini prestes a fazer uma magia e carrega no play.

Um piano, Tom Jobim. Uma voz, João Gilberto: "Tom e se você fizesse agora uma canção / Que possa nos dizer / Contar o que é o amor?" A resposta de Tom: "Olha Joãozinho, eu não saberia / Sem Vinicius pra fazer a poesia..." Entra Vinicius de Moraes: "Para essa canção se realizar / Quem dera o João para cantar..." E João remata: "Ah, mas quem sou eu? / Eu sou mais vocês / Melhor se nós cantássemos os três..." E então - leitor, agora não respire - os três cantam, pela primeira vez na história: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça..."

É noite no Leblon, certamente o mar continua a bater no posto 12 e os morros acenderam como pirilampos mas cá em cima estamos a ouvir a estreia mundial de Garota de Ipanema.

Foi em Agosto de 1962, na mítica temporada de concertos do Au Bon Gourmet, organizada pelo melómano Flávio Ramos, "provavelmente o maior momento da Bossa Nova no Brasil", escreve Ruy Castro em Chega de Saudade.

E faz questão de dizer "no Brasil" porque fora do Brasil, em Novembro desse mesmo ano, houve o mítico concerto do Carnegie Hall. Quase toda a Bossa Nova embarcou para Nova Iorque e alguns, como Tom Jobim ou João Gilberto aproveitaram para lá ficar.

Houdini troca de CD. Tcham, eis Tom Jobim a meter os pés pelas mãos na letra do Samba de Uma Nota Só nessa noite toda atrapalhada do Carnegie Hall, com Miles Davis, Dizzy Gillespie ou Peggy Lee na plateia. Era o começo da rendição americana à Bossa Nova. Só faltava Frank "The Voice" Sinatra ligar para o boteco de Tom um dia. Veio o dia. E nasceram discos.

"I"m very happy to be with you", diz o sempre charmoso Tom lá no Carnegie Hall. "Só duas pessoas sabiam o que estavam fazendo nessa noite", explica Ruy Castro. "Tom e João. De tal maneira que não precisavam mais um do outro. Porque eles não se gostavam. Houve um grande afastamento a partir daí."

Apesar de ambos terem vivido muito tempo na América.

Terá João voltado com alguma saudade patriótica? Reparem só nisto: "Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heróico o brado retumbante / E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos / Brilhou no céu da Pátria nesse instante..." Sim, é o hino do Brasil, e a voz, ó incrédulos, é de João Gilberto.

João Gilberto a cantar o hino do Brasil como se cantasse uma canção dele. Poucas canções, na verdade, são dele, mas qualquer canção se torna de João.

O anfitrião ri radiante. Onde é que isto foi gravado? "Talvez em casa dele..." Prenda de Nelson Motta.

Não saiam já. Há mais este inédito: "Na beira da lagoa/Foram ensaiar/ Para começar/ O tico-tico no fubá..." João Gilberto cantando O pato. Mas ouçam a próxima estrofe: "A voz do crooner /Era mesmo um desacato..." Crooner em vez de pato? E as onomatopeias que aí vêm? "Coisas de grupo vocal...", sorri Ruy Castro.

Porque foi assim que João se estreou no Rio de Janeiro, crooner do grupo vocal Garotos da Lua, recém-chegado da Bahia.



4. As histórias

João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira era um dos vários filhos de seu Juvenino e dona Patu, lá em Juazeiro, cidadezinha de 10 mil habitantes com ruas de terra, demasiado calor e enchentes regulares do rio São Francisco, conta o livro de Ruy Castro.

A voz do esplêndido Orlando Silva soava três vezes ao dia num altifalante de rua, entre anúncios e Duke Ellington, missa e Carmen Miranda. João não era aluno por aí além, gostava de futebol (até hoje gosta) e aos 14 anos deram-lhe um violão. O centro da cidade era o tamarineiro de grande copa na Praça da Matriz, e ali ficava ele, tocando. Sempre que via mais um musical de Fred Astaire pensava em sapateado. Queria ir longe, e aos 18 anos partiu para Salvador.

Nesse tempo, a capital do Brasil era mesmo o Rio, e esse tempo era o dos clubes de fãs de Dick Farney e Frank Sinatra. Uma das bandas-promessa, Os Garotos da Lua, tinha despedido o seu crooner por cantar baixinho, e alguém que tinha ido a Salvador falou de um rapaz que "cantava feito a peste". Difícil imaginar João a cantar feito a peste, mas João ainda não era João.

Os Garotos da Lula mandaram um telegrama a convidá-lo para entrar como crooner. João apanhou um avião para o Rio e instalou-se em casa de um deles até arranjar casa.

Isto foi em 1950. Acabou por arranjar casa, mas em 1960. Pelo meio simplesmente saltou de amigo em amigo, da Tijuca para Copacabana, de Botafogo para o Humaitá, exasperando um a um por não fazer limpezas, não ajudar nas contas, dormir de dia e demorar umas duas horas na casa-de-banho.

No começo da sua vida carioca, um tio deputado arranjara-lhe um emprego de funcionário que João nem fingiu exercer. Acabou demitido tanto do emprego como dos Garotos da Lua, por faltar a ensaios e concertos. Isto, na fase em que namorava a futura diva Sylvinha Telles, e o pai dela impediu o casamento. Como se já não bastasse, o seu primeiro disco, em que cantava como os seus heróis Orlando Silva e Lúcio Alves, não fez sucesso. João descobriu a marijuana nos becos da Lapa, e a descoberta dura até hoje.

A sua namorada seguinte foi Marisa, outra cantora. Ele conseguiu que ela cantasse no Golden Room do Copacabana Palace, enquanto para ele sobrava o nada glamoroso bar do Hotel Plaza. A falta de liquidez levou-o mesmo a entrar num musical vestido de fuzileiro naval e palhaço, numa boate da Urca. O Rio era a Urca, Copa, Botafogo, o Centro, o começo de Ipanema. A praia do Leblon era tão deserta, conta Ruy Castro, que se ia para lá ter sexo.

Além de Sylvinha, as musas chamavam-se Dolores Duran e Maysa, uma espécie de furacão antes do furacão Elis Regina. E depois havia a franja de Nara Leão, menina rica num apartamentão da Avenida Atlântica, com uns pais que deviam ter recebido uma medalha pelo muito que facilitaram a vida da futura Bossa Nova, incluindo o namorado de Nara, o compositor Ronaldo Bôscoli, ir usando as roupas do pai de Nara.

Mas a Bossa Nova só aconteceria com João, e João ainda não acontecera. Aliás, no começo de 1955 estava falido e deprimido. O seu fã Luís Telles, um gaúcho generoso, arrancou-o para uma temporada terapêutica em Porto Alegre. João passou sete meses num bom hotel, hipnotizando cozinheiros de bons petiscos e toda uma plateia para o seu violão. Mas ainda não era aquilo. Então foi para Diamantina, os tais oito meses em casa da irmã que foram a grande revelação. A casa hoje é uma imobiliária, mas tornou-se ponto de peregrinação, incluindo fotografias da casa de banho nos jornais nacionais. Ali sentado é que João decantou aquela batida, aquela respiração, aquela forma de cantar "como se cada sílaba estivesse sendo tirada de dentro de um envelope", na exacta formulação de Ruy Castro.

Ao voltar ao Rio, em 1957, tinha Bim-bom e Hô-bá-lá-lá, as suas primeiras canções. E quando as cantou e tocou para Ronaldo Bôscoli daquela maneira que encontrara em Diamantina, ele levou-o a casa de Nara e a partir daí o Rio - aquele Rio - parou para ver João tocar, sendo que nos intervalos ele ainda falava de Drummond, de Rilke e de técnicas de iôga.

Então estamos na fase em que João Gilberto dá ideias a Tom Jobim, e Jobim vai supervisionar a gravação do seu primeiro disco a entrar para a história, Chega de Saudade. Uma tortura para músicos, técnicos e o próprio Jobim, com João, senhor de um ouvido absoluto, ouvindo erros que mais ninguém ouvia.

Não pensem que foi a glória. Cantor resfriado, merda e discos partidos: as reacções desceram a isso. Depois em São Paulo subiram, e São Paulo arrastou o Rio.

João estava agora acampado em casa de Bôscoli, o que significa que as roupas do pai de Nara acabavam nele. Em casa de Nara conheceu uma pespineta chamada Astrud e teimou até casar com ela em 1960, com Jorge Amado como padrinho.

Foi quando finalmente arranjou casa. E por casa se deixava, mesmo que Jorge Amado telefonasse a dizer que tinha com ele Sartre e Beauvoir: não queria João aparecer? João dizia que sim e nunca aparecia.

Mas chegou a ser apresentador de um programana TV Tupi.

E era capaz de passar seis horas ao telefone com alguém (até hoje é). As festas disputavam-no. O adolescente Roberto Carlos tentava (em vão) cantar como ele. Ele era a Bossa Nova e nem gostava do nome, Bossa Nova. Ruy Castro conta que continuava a faltar concertos e a agir por impulso: no fim de 1961 deu com o violão na cabeça de um músico que o mandou calar nos bastidores.

Mas Flávio Ramos, o melómano organizador da temporada do Bon Gourmet em que se estreou a Garota de Ipanema, não tem uma queixa quanto a João. "Era uma pessoa adorável", diz à Pública. "Retraída mas muito simpática, espirituosa. Muito caprichoso com o violão, acordes, harmonia. Ele se atrasava um pouco nos shows mas como eu tinha um carro mandava buscá-lo. Cumpriu o contrato religiosamente. Super, hiperprofissional. Apenas foi responsável por eu gastar um bocado mais de dinheiro, porque primeiro queria mais um baterista, depois mais um contrabaixo, depois mais [o grupo vocal] Os Cariocas. Quando era para ser só ele, Tom e Vinicius! Mas eu sou tão alucinado por música que todos os pedidos dele faziam sentido."

Eis o sempre gentil Flávio Ramos aos 85 anos. Há 50 que não fala com João. "É um génio, sem dúvida nenhuma. Dificilmente vai aparecer uma pessoa com aquele cuidado, com aquele som, o bom gosto, a sonoridade. Foi e será a grande figura da nossa música."

No concerto do Carnegie Hall de 1962, por pouco não tocava por causa do vinco da calça, que faria a calça oscilar, quebrando a concentração.

Seguiu-se o disco com Stan Getz, e na gravação - de acordo com o que contaram a Ruy Castro - João dizia a Tom em português para dizer a Stan em inglês que ele era burro. Então Tom dizia a Stan como João sempre sonhara gravar com ele. E Stan respondia que a cara de João não parecia dizer isso.

Foi quando Astrud resolveu cantar a Garota de Ipanema no estúdio. A canção fez tudo pela carreira dela na América, e ela ainda lá está (embora já ninguém se lembre).

Entretanto no Brasil a ditadura acabou com a leveza da Bossa, que se dividiu entre os que não queriam misturar música com política e os que achavam que música era política. Nara andou de um lado para o outro, depois Elis varreu tudo. Então vieram Chico, Gil, Bethânia, Caetano.

Ainda antes de os militares tomarem o poder, João conhecera em Paris uma irmã de Chico, Miúcha Buarque de Holanda. Em 1964 ela foi ter com ele a Nova Iorque. Alugaram um apartamento em Central Park e casaram-se nas Nações Unidas. João não se americanizou: dava negas à Life Magazine e abandonava concertos em Washington. Dos Estados Unidos mudaram para o México, umas semanas que se transformaram em dois anos.

Já separado, ele só voltou ao Rio em 1980. Foi morar para um aparthotelno Leblon. De vez em quando saía à noite no seu Monza para ir até a Pedra de Guaratiba, um lugar do litoral, a uma hora do Rio. Também gostava de ir ao miradouro Vista Chinesa, na floresta da Tijuca.

Mas sobretudo ficava em casa, de pijama apesar de todos os seus fatos - os seus ternos - Yves Saint Laurent. A ver televisão, a tocar violão, e a tocar violão para a televisão. Além, claro, dos telefones, vários.

Já tinha mais de 70 anos quando uma fã se aproximou dele. Ela queria fazer um documentário. Era filha de um dentista das elites cariocas, famosa nas revistas, mais nova que a filha que João teve com Miúcha (Bebel) e muito bonita. Chamava-se Claudia Faissol. Tiveram juntos Luísa (Lulu), hoje com seis anos.



5. Quase chegando lá

Difícil é não ser fã de João. Ele hipnotiza à distância. Veja-se o caso de Marc Fischer, jornalista, escritor e músico alemão, de Berlim. Um dia um amigo japonês pô-lo a ouvir o vinil com a primeira gravação de Hô-bá-lá-lá. O elixir entrou directo no sangue de Marc. Basicamente João tornou-se uma obsessão.

E aos 40 anos, no fim de 2010, Marc veio para o Brasil em busca do mistério de João Gilberto. O resultado é um livro tão divertido como comovente, Hô-bá-lá-lá (que a Companhia das Letras só lança em Dezembro no Brasil, mas que a Pública já leu). Marc esperou até à última que João falasse com ele, João não falou, e no entanto está lá, através de toda a gente que Marc captou, e do que Marc soube captar no Brasil, mesmo não falando uma palavra de português.

Há um amor em Berlim ao longo do livro. Quando ele voltou a Berlim esse amor acabou. Em Abril, depois de entregar o texto ao seu editor alemão, Marc Fischer matou-se.

Miúcha Buarque de Holanda, uma das pessoas com quem falara, ficou em choque. Ainda não conhece o livro, mas leu quatro capítulos pré-publicados na revista Serrote.

"Achei deslumbrante", conta à Pública. "Não tinha a menor ideia de que por trás daquele homem frágil, meio disfarçado, de óculos, estivesse aquilo. E na hora liguei para João. Falei: "João, estou lendo a coisa mais genial. Ele pega você por outro lado!" Miúcha já tinha falado a João em Marc quando ele estava no Rio a fazer a sua pesquisa. Mas João, ao saber que por exemplo Marc fora falar com um seu imitador, achara que Marc "estava completamente perdido", e não falara com ele. Então quando Miúcha ligou depois de ler os capítulos, foi uma surpresa. "Ele ficou tão espantado com o meu entusiasmo. Depois eu falei: "O cara pulou da janela..."" Como reagiu João? "Silêncio mortal. Ele ficou chocado."

Miúcha combinou levar-lhe a revista, e depois o livro. João vai ler o que Marc Fischer escreveu. É isso que falta.

Só questão de deixar passar a turné.

"Ele fica muito tomado pelos shows", diz Miúcha. Não que no resto do tempo esteja de férias. "Passa a vida ensaiando. Estica a mão e o violão está lá. Ele jorra música, está o tempo todo treinando, como se repetir a mesma música esgotasse todas as possibilidades rítmicas e harmónicas. Depois na hora escolhe a versão."

A saúde tem ajudado. "O sertanejo é antes de tudo um forte. Ele está muito bem. E conseguiu levar a vida de uma maneira que eu tenho inveja. Só vê quem quer, na hora que quer, tem sempre gente que pode resolver comida, banco..." Não é uma solidão? "Solidão total. Mas ele é muito feliz no sentido em que consegue ter um controle do tempo. Tem um rigor absurdo dentro daquele loucura toda. Uma capacidade de concentração absolutamente incrível. Acreditou que podia sempre melhorar. Diz: "Eu estou quase chegando lá..." É uma coisa que ele diz faz 200 anos. Um cara de 80 anos tem uma mão de 80 anos, mas você não vê nenhum sotaque de velhice na mão. Ele está tocando mais que antes, melhor. E isso é uma coisa quase milagrosa."

O nascimento da filha Lulu alterou algo? "Ele é louco pela filha, gosta de criança, mas não vejo mudanças no quotidiano, nos horários. Agora, João é um grande sedutor. Uma criança está na mão dele, os bichos. Ele se dá muito bem com gatos. E é por um canal outro. A música tem outro canal e esse é o canal dele. Você vai chegar para ele e vai contar a coisa mais íntima da sua vida. É um sedutor genial."

Quando viviam no México, numa casa em estilo japonês à saída da capital, João ficava ouvindo o galo, vendo o mato. "Ele dizia que era uma parada para preparar ele chegando no Brasil. Tenho músicas de João tocando violão e quase o galo lá longe."

Então João precisava do Brasil? Miúcha ri. "João não precisa de nada." Mas voltou para viver no Rio. "O Rio é um monte de lembranças. Acho que ele não podia morar na Bahia, ia ficar reclamando o tempo todo. O Rio é a praia, a boémia, aqueles músicos, essas coisas estão misturadas. O cheiro bem forte do mar. Acho que tem uma Copacabana imaginária ali. E ele tem uma memória fulminante, lembra de tudo."

O musicólogo Lorenzo Mammí, professor na Universidade de São Paulo, escreveu dois longos artigos sobre o mistério de João. "Como é que uma pessoa tão esquiva se torna a personalidade mais representativa da cultura brasileira?", resume à Pública. "Ele tinha tudo para desaparecer. Acho que isso revela muito sobre a cultura brasileira, baseada nas relações informais, não assertiva, com génio. João representa essa outra modernidade. O que é elevado à perfeição é a conversa entre amigos, o cantar para si mesmo, todo um trabalho de privilegiar o lado afectivo, elevar os aspectos que são dificilmente quantificáveis, como a dicção. Aquilo que na tradição do jazz são restos."

Os Estados Unidos da América eram eficácia e produtividade. João não é isso, talvez por isso tivesse que voltar. Não lê uma nota de música, é a própria música, como na bela canção de Caetano, seu discípulo, que depois de homenagear Nara, Tim Maia, Bethânia, Djavan, Chico, Paulinho, Gal, Elis, Elba, Sílvio, Elisete, Carmen, Gilberto, Cauby, Milton, Roberto, Bosco, Dalva, Marisa, Aracy, Amélia, Max, Nora, Dolores, nos diz que "Melhor do que isso só mesmo o silêncio/ Melhor do que o silêncio só João."

Talvez por isso também, como diz Ruy Castro, João use aqueles fatos, aqueles ternos. Para que quando olhamos para ele, ele desapareça e fique só a música."

in: jornal "Publico"

alc.atlanticosul@gmail.com
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"10 canções de João Gilberto que ficam na história


07.07.2019 às 13h13

Para lembrar sempre a música do músico que apresentou a bossa nova ao mundo

Em seis décadas de carreira, João Gilberto deixou um legado notável, editando dezenas de discos (entre álbum de estúdio, ao vivo e em colaboração com outros músicos) e compondo canções que entraram para a história não só da bossa nova como da música no seu todo.

Gilberto ficou conhecido não só pelas suas composições originais, mas também pelas suas versões das composições de outros artistas.

Como 'Aquarela do Brasil', samba escrito em 1939 que foi imortalizado pela Disney em "Saludos Amigos", e que obteve o tratamento bossa nova por parte do guitarrista em 1977:

Com Stan Getz, ajudou à "febre" da bossa nova nos Estados Unidos, lançando o álbum "Getz/Gilberto" em 1963, onde se inclui esta versão de 'Pra Machucar Meu Coração':
A ginga do samba nunca saiu do corpo de Gilberto - ou dos outros autores da bossa nova -, e esta versão de 'Eu QUero Um Samba', editada em 1973, espelha-o bem:
A bossa nova não é conhecida por ser uma música com uma forte componente crítica da sociedade, mas 'Pra Quê Discutir Com Madame?' é uma dessas raras exceções, tendo sido interpretada por João Gilberto no Festival de Montreux, em 1985:
Uma das grandes canções da bossa nova, 'Corcovado' ganha toda uma outra cor quando entoada por Gilberto, que a gravou em 1960:
Novamente o samba: 'Saudade Fez Um Samba', também de 1960, mostra o músico no seu lado mais dançável.
A canção que criou a bossa nova, e que a definiu, juntamente com uma tal 'Garota de Ipanema'. 'Chega de Saudade', em 1959, provocou uma revolução:
João Gilberto não tinha a melhor das vozes, mas isso não o impedia de cantar algumas das canções mais belas da história do Brasil. Até porque "no peito de um desafinado também bate um coração". De 1960:
Quem precisa do rock n' roll quando se tem a bossa nova? Foi isso que João Gilberto cantou em Montreux, em 1985:
A bossa nova era a luz, todas as cores do Rio de Janeiro expostas em canção. Mas, por vezes, duas apenas chegavam. 'Retrato em Branco e Preto' é daquelas versões que, ao escutá-las, nunca mais nos lembramos de quem as cantou originalmente. De Montreux, 1985:








    in: BLITZ

quarta-feira, 3 de julho de 2019

daniel norgren_ wooh dang




"De guitarra a balançar entre o blues e o rock psicadélico, melancólico quanto baste, suficientemente aguerrido para lembrar uma versão tranquila e low-fi dos Black Keys, capaz de fazer lembrar as velhas canções da folk irlandesa, Norgren apresenta-se. À guitarra, ao piano, acordeão ou harmónica, em Woo Dang sobram canções que, sem nunca soar a velho, transparecem a familiaridade que nos fazem sentir em casa. Música que acaba com as mais pessimistas dúvidas. Há mesmo semanas de sorte."
in:Expresso Curto

bedouine_ bird songs of a killjoy



"Filha de arménios, nascida em Aleppo (Síria) e a viver em Los Angeles depois de uma passagem com os pais pela Arábia Saudita, Azniv Korkejia ainda mal se apresentou. No currículo tem apenas as dez canções do homónimo disco de estreia em 2010.

Agora lança Bird Songs of a Killjoy, um disco de folk tranquila, com a guitarra típica das melhores baladas e uma delicadeza que convida a prestar atenção aos detalhes. Bonitas canções e uma das boas descobertas do ano."

in: Expresso Curto

terça-feira, 2 de julho de 2019

Roberta Sá - Fogo de Palha e Jonathan Silva_Samba da Uopia

letra

Se é fogo de palha Ou vai virar paixão Não me deixe só agora Segure a minha mão Que a sanfona tá chorando E a lua clareando a nossa união Se a paixão não pega É o amor que pega sim Mesmo que “cê” vá embora O xodó nunca tem fim Sempre há de chegar a hora De ver você de novo aqui no meu jardim É assim com todo mundo Com nós dois também será Quando o amor é verdadeiro Quando o afeto é bem sincero Não há como se livrar Mesmo se é fogo de palha O bicho quando se espalha Tudo em volta vai queimar.

Roberta Sá – voz e vocal Gilberto Gil - violão Bem Gil - guitarra Alberto Continentino - baixo Domenico Lancellotti - bateria e percussão Milton Guedes - flauta e assovio Banda Giro – arranjo de base produção do CD "Giro": Bem Gil
(Gilberto Gil - Roberta Sá)



SAMBA DA UTOPIA (Jonathan Silva)

letra

Se o mundo ficar pesado Eu vou pedir emprestado A palavra POESIA Se o mundo emburrecer Eu vou rezar pra chover Palavra SABEDORIA Se o mundo andar pra trás Vou escrever num cartaz A palavra REBELDIA Se a gente desanimar Eu vou colher no pomar A palavra TEIMOSIA Se acontecer afinal De entrar em nosso quintal A palavra tirania Pegue o tambor e o ganza Vamos pra rua gritar A palavra UTOPIA 

Jonathan Silva: voz Ceumar Coelho - participação encantada: voz Filpo Ribeiro: viola dinâmica Lucas Brogiolo: percussão Marcos Coin: violão Coro: Karen Menatti, Lilian de Lima, Eva Figueiredo, Cris Raséc, Luciana Rizzo, Dinho Lima Flor, William Guedes, Rodrigo Mercadante e Lucas Vedovoto. Gravado no Juá Estúdio Vídeo: BRUTA FLOR FILMES