Um empate para a história e um jogador eterno
No The New York Times, Rory Smith conta como Portugal negou "um momento catártico" à vizinha Espanha. Tudo graças a um livre direto de Ronaldo. Prova de que "à 45.ª é de vez".
A única coisa que os adeptos espanhóis podiam fazer, depois de terminado, era aplaudir. Não fazia sentido abandonarem-se à desilusão, preocupados com o que tudo aquilo poderia significar. A Espanha teve a vitória arrebatada no último momento, viu negado um momento catártico pelo seu vizinho mais próximo mas, no entanto, não houve amargura nem tristeza: apenas admiração e espanto, às vezes não é a vitória, mas a participação.
Deve ter havido certamente um jogo melhor na fase de grupos do Campeonato do Mundo no passado do que o fascinante empate entre Espanha e Portugal na sexta-feira. Tem de ter havido um que tenha sido jogado com mais qualidade, mais rico em drama e mais absorvente. Esse jogo, onde e quando quer que tenha sido jogado, deve ter sido verdadeiramente notável.
Porque superar o que aconteceu na sexta-feira não é uma tarefa simples. Por duas vezes, Portugal liderou. Por duas vezes, a Espanha recuperou, antes de Nacho Fernández marcar o tipo de golo que supostamente está além da habilidade de um lateral direito. O golo deu à Espanha a liderança pela primeira vez na partida e colocou Fernando Hierro, o técnico espanhol, a caminho de uma imensa vitória com apenas um jogo e dois dias no cargo. E então Cristiano Ronaldo, mais uma vez, interveio.
Se os preparativos de Espanha para este jogo foram conturbados - com a demissão do seu técnico anterior, Julen Lopetegui, na véspera do início do Campeonato por não ter revelado que estava prestes a assumir o comando do Real Madrid -, os de Portugal também não foram muito melhores.
Vários membros da equipa, que venceu o Campeonato da Europa em 2016, estão prestes a rescindir os contratos com o seu clube, o Sporting Clube de Portugal, de Lisboa, devido à intimidação dos adeptos e a uma rutura na relação com o presidente do clube.
Entretanto, na manhã de sexta-feira, poucas horas antes do jogo, surgiu nos meios de comunicação espanhóis a notícia de que o próprio Ronaldo havia concordado em pagar às autoridades espanholas 21,8 milhões de dólares em impostos não pagos. Ele também recebeu uma sentença de dois anos de prisão com pena suspensa, segundo os jornais. Seria difícil de acreditar que esses acontecimentos não o perturbassem enquanto o jogo se aproximava.
Ainda assim, foi Ronaldo quem deu a liderança a Portugal, ganhando e convertendo uma grande penalidade com quatro minutos de jogo apenas. E foi Ronaldo quem recuperou a vantagem, com o pontapé que fez a bola passar sob o guarda-redes espanhol David De Gea, quando a primeira parte se aproximava do fim. E foi Ronaldo quem, faltando apenas alguns minutos para o fim da segunda parte, marcou um livre perto da grande área espanhola, com Portugal a perder por 3-2.
Ele havia marcado 44 livres nos Campeonatos do Mundo anteriores. Não marcou golo em nenhum deles. Contudo, como se costuma dizer: à 45ª é de vez.
É verdade que Ronaldo, aos 33 anos, já não é o jogador que era. Ele ainda está perfeitamente esculpido, é claro, uma capa da revista Men´s Health em pessoa, mas o ritmo elétrico abrandou um pouco; já não cobre tanto terreno (apenas um jogador, o defesa português José Fonte, correu menos que Ronaldo numa primeira parte em que um deles marcou duas vezes).
Mas é igualmente verdade que Ronaldo, mesmo no seu crepúsculo, brilha mais do que qualquer jogador com quem entra em contacto. Mais do que esmorecer como jogador, ele evoluiu para algo diferente. É enganador sugerir que se transformou num atacante, num predador da área da grande penalidade, porque ele não é realmente limitado por conceitos mortais como a geografia.
Em vez disso, ele atingiu um nível de eficiência tão devastadora que agora não exige realmente algo tão trivial quanto a bola. Ele não precisa de estar envolvido. Muitas vezes parece que não está a fazer nada ou algo bem próximo disso, como se fosse um mero passageiro. É uma ilusão. Ele está sempre no cockpit.
Isco, seu companheiro de equipa no Real Madrid, foi o jogador dominante no campo, aquele que esteve mais envolvido, que estimulou, sondou e espicaçou, e que vestia uma camisola da seleção espanhola. Ronaldo foi além da necessidade de ditar jogos. Ele preocupa-se apenas em defini-los.
O seu pontapé livre, é desnecessário dizer, elevou-se artisticamente, sem esforço, passou De Gea e entrou no canto da baliza espanhola, como Ronaldo, apesar de todas as evidências históricas em contrário, deve ter sabido que entraria.
Portugal que, como agora se vê, é uma nação que foi constituída em 1128 para que um dia pudesse produzir Cristiano Ronaldo, teria o seu empate. Mais importante, o Campeonato do Mundo de 2018 teve a sua centelha. O resplendor de um jogo como este pode durar pelo menos duas semanas. Nesta fase, ele pode ressoar pelo mundo.
A Espanha teria sido perdoada por se sentir como uma vítima. Foi a melhor equipa neste jogo, teve mais posse de bola, criou mais oportunidades, jogou o futebol mais inteligente, mais suave.
Parecia uma candidata ao título de Campeã do Mundo e não como se estivesse ainda em recuperação da saída de Lopetegui, abalada na sua essência por uma disputa entre os seus jogadores e os dirigentes da federação do país, tendo que se ajustar à vida sob um novo treinador que, até agora, tinha treinado apenas uma equipa da segunda divisão.
O facto de os jogadores espanhóis não terem permitido que nada disso os detivesse na sexta-feira, serve apenas para enfatizar a dimensão do desempenho de Ronaldo e a qualidade geral da partida.
E quando soprou o apito final, o estádio ficou de pé: não só os grupos de adeptos portugueses, não só os neutros e os russos, mas também os adeptos espanhóis, com aquelas camisolas vermelho-sangue. Eles aplaudiram a própria equipa, é claro; houve incentivo suficiente que permitiu ver o cenário completo, acreditar que o tumulto dos últimos dias pode não ser fatal para as suas esperanças.
Mas quando os jogadores de Espanha deixaram o campo, e Portugal ficou no círculo central, os adeptos espanhóis permaneceram de pé e continuaram a bater palmas enquanto todos os jogadores portugueses procuraram Ronaldo, para lhe apertar a mão, passar-lhe a mão pelo cabelo como se ao tocá-lo estivessem a tocar em algo sagrado.
Eles não se importam que ele atraia - exija, na realidade - toda a atenção. Eles não se importam de estar no elenco secundário, assim como os adeptos espanhóis não se importaram de fornecer o público para os três atos do espetáculo de um homem só. Às vezes, é um prazer estar simplesmente presente; às vezes, é um prazer recostar e assistir. E, no final, às vezes não há mais nada a fazer senão aplaudir.
in: jornal "DN"