OPINIÃO
15.02.2018 às 9h00
Como se pode estar cheio de paixão e não conseguir transmiti-la? E não sou má pessoa, palavra. Quer dizer: acho que não sou má pessoa. Depois hoje fiquei sem metade do corpo. A que sobra irá desaparecer por seu turno, é uma questão de tempo. Continuarei sozinho dentro de mim
O meu ouvido esquerdo morreu hoje, dia 3 de Janeiro de 2018, por volta da uma hora da tarde. Esperava que durasse ainda mais algum tempo, uns anos, uns meses. Estava enganado: metade de mim desapareceu num estalar de dedos, para sempre. Não é trágico: é só horrível. E isso a gente aguenta. A otoesclerose é um problema hereditário: recebi-o da minha mãe, do meu avô, por aí fora. Dos Almeida Lima, porque sou Almeida Lima, de que tanto gosto. Não me lembro de ver o meu avô Almeida Lima sorrir. Quase não falava, também. Uma ocasião, em criança, perguntei ao meu pai se gostava dele. Respondeu
– Quem é que não gosta dele?
Morreu novo, tinha eu treze anos
(não, doze)
sou o filho mais velho de dois filhos mais velhos e foi a única vez que vi o meu pai chorar apesar dos óculos escuros, ele que nunca usava óculos escuros. A frase
– Quem é que não gostava dele?
nunca se apagou em mim. Era uma pessoa silenciosa e discreta, de grande beleza física. Demorei anos a perceber que sofria muito.
A minha mãe, também surda, adorava-o. Passou
pela vida sem nunca incomodar ninguém.
Herdei-lhe a surdez: infelizmente não lhe herdei a bondade. Nunca o vi zangado, nunca o vi ralhar fosse com quem fosse. A minha mãe
– O teu pai gosta mais da minha família que da dele
e era verdade. Ele, que quase nunca saía, passava sempre o mês de Setembro em Nelas, na casa dos Almeida Lima, na varanda para a serra. Quando
o nosso pai morreu o meu irmão Joãozinho, que é como continuo a tratá-lo dentro de mim, estava em Bragança, numa dessas comemorações do
10 de Junho, e veio logo para Lisboa mas pela Beira Alta, claro, em homenagem ao pai, e quando chegou e nos abraçámos agradeci-lhe tê-lo feito, respondeu-me
(nunca esquecerei a sua cara)
– Os teus direitos de primogenitura
ele que tinha muito mais qualidades de primogénito do que eu, que vivo num mundo que nem sei bem
qual é. Adiante. Anda-me lá com isto, Almeida Lima.
Por volta dos quinze anos, a minha mãe começou
a ensurdecer. Os meus avós levaram-na ao médico. Contava ela que lhe disseram
– Não caia na asneira de ter filhos para não lhes transmitir esta doença.
Perguntei
– O que fez a mãe?
Respondeu-me
– Chorei uma semana e depois arranjei seis rapazes.
Acrescentou
– Desafio qualquer mulher
no mundo a ter filhos tão bonitos
e tão inteligentes como os meus
num movimento orgulhoso e tranquilo. Apesar de fisicamente frágil era dura como aço. O meu pai, quase no fim da vida
num movimento orgulhoso e tranquilo. Apesar de fisicamente frágil era dura como aço. O meu pai, quase no fim da vida
– A tua mãe é uma pessoa extraordinária
sempre sem uma queixa, uma pieguice. Quando o Pedro morreu fomos os cinco a casa dela. Disse apenas duas frases. A primeira foi
– Tenham misericórdia de mim
e a segunda
– Uma mãe não tem o direito
de estar viva com um filho morto.
E foi logo ter com ele, resoluta, sem uma queixa, sem uma lágrima, sem um sobressalto sequer. Pegámos no seu caixão na igreja e levámo-
-lo aos ombros. Fui uma besta de incompreensão e violência para com ela quando lhe disse anos antes
– Quis fazer de nós uns aleijados, não foi?
E ficou calada a olhar-me. Assim, que tempos
a olhar-me em silêncio. Eu era o grande problema dela: indisciplinado, desobediente, mau aluno, cercado pelo mimo todo da família. A minha mãe, entrevistada num livro espanhol, acerca de mim:
– Foi sempre recebido por todos como um deus na terra.
Era verdade: tratavam-me tão bem. E eu insaciável, esquisito, parvo, com uma ferida enorme cá dentro que não entendia, fechado num mundo de angústia, contraditório, violento, a tremer de um amor que me consumia e não era capaz de comunicar a ninguém. Depois melhorei ao começar a escrever. Como se pode estar cheio de paixão e não conseguir transmiti-la?
E não sou má pessoa, palavra. Quer dizer: acho que não sou má pessoa. Depois hoje fiquei sem metade
do corpo. A que sobra irá desaparecer por seu turno,
é uma questão de tempo. Continuarei sozinho dentro de mim. Como o meu avô. Como o meu avô mas sem a sua bondade, a sorrir vagamente num canto da varanda para a serra, fechado na redoma de silêncio que me deixou. Lembro-me do seu sorriso. Herdei-o: é meu agora. Pode ser-se feliz assim. Pode ser-se feliz assim? Que pena não conseguir perguntar-lhe. Como se sentem os senhores como você, porque foi sempre um senhor, e os palermas como eu nunca lhe chegarão aos calcanhares? Queria tanto vê-lo agora na vindima, de casaco de linho entre os cachos de vinho branco. Por mais moucos que estejamos os dois e por muito pouco que falássemos havíamos, palavra de honra, de conversar todo o tempo: une-nos
a menina dos olhos da sua filha, que o avô plantou com paixão neste mundo enquanto eu sou apenas
o produto mais rebelde dela. Mas por acaso vi-lhe o rosto quando foi da história do meu cancro. Olhe, não se aborreça comigo mas nunca dei por tanto amor num rosto de mulher. Agora multiplique isto por seis e junte-os ao pai deles.
A primeira vez, depois da partida do meu pai, que entrei na sua casa, disse
– Isto sem o pai fica vazio.
Ele que estava sempre fechado no escritório. A mãe respondeu, de mansinho
– É que o teu pai tinha uma presença muito forte.
E agora, avô, diga-me lá como se vai aguentar com tantos rivais ao mesmo tempo?
Lembra-se do verde dos olhos dela? Lembra-se que até os seus pés eram perfeitos? Mãe, mãe, não nos deixe nunca. Posso não mostrar porém amo-a tanto. Desculpe lá a mariquice eu que uma ou duas vezes
(talvez três)
a sentei ao meu colo. Não imagina como me senti feliz.
(Crónica publicada na VISÃO 1301, de 8 de fevereiro de 2018)
António Lobo Antunes é um grande escritor.
ResponderEliminarUma boa semana, meu Amigo.
Um beijo.