quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Aldina Duarte_Entrevista_Novo disco

"O que fazer quando se ama loucamente? A resposta da fadista Aldina Duarte é simples e apenas uma: viver. O novo álbum, que nasceu de um luto difícil, sai no próximo dia 13 de outubro.


Pedro Esteves

27.setembro.2017
27 Setembro 2017
O desafio começou com uma letra de Manel Cruz (esse mesmo, o homem dos Ornatos Violeta, dos Pluto, de Foge Foge bandido e do que mais houver) oferecida à fadista Aldina Duarte, escrito para ela e apresentado no tom da cantora. Só faltava acrescentar-lhe a voz. Um convite destes seria para aceitar à primeira, mas a vida não é assim tão simples.
Aldina estava no escuro, a viver o luto da paixão, “que é o pior luto porque ainda não há nada, sobretudo nada de mau, ainda está tudo por acontecer e não acontece”. Mas o fado escrito por Manel Cruz acabou por ser a primeira pedra de Quando Se Ama Loucamente, o novo disco de Aldina Duarte, que estará à venda no dia 13 de outubro. A artista descreve-o como uma “autoficção”, o retrato direto de um momento difícil.
Cruzamento de várias artes, Quando Se Ama Loucamentetransformou-se num tributo a Maria Gabriela Llansol, a escritora que foi capaz, como poucos, de escrever “o invisível”, as pequenas/grandes coisas que mais ninguém vê mas que todos sentimos, de uma maneira ou de outra, e que fazem de nós gente.
Encontrámos Aldina Duarte durante as gravações de um mini documentário sobre o novo disco, no reservatório da Mãe d’Água das Amoreiras, em Lisboa. Foi nos túneis e nas galerias (secas) do Aqueduto que foram filmadas as canções, ilustradas no disco pelas fotografias de Isabel Pinto, que colocam a fadista no elemento com que mais se identifica: a água.
A conversa seguiu-se ali ao lado, no jardim, onde nos contou a história destes novos fados, as influências, dúvidas e hesitações. Ora entre risos e exclamações, ora com a voz e o olhar embargados, Aldina Duarte em entrevista ao Observador.

A capa do novo “Quando se ama loucamente”
Que vídeo foi este que esteve a gravar?
Foi um especial de 20 minutos, um especial que fazemos em cada disco, que consiste em seis temas. Um é o videoclipe propriamente dito mas na realidade estamos a fazer seis videoclipes. Uma espécie de minidoc. A RTP 2 e a SIC têm um espaço para estes especiais. Tendo em conta as características do meu trabalho não há muito espaço para ir falar à televisão.
Porquê?O ambiente televisivo para cantar o meu repertório é bizarro, não dá, não me consigo concentrar. Como é que vou cantar estes poemas? Não é a minha praia, não é bom para o programa nem é bom para mim. Se a televisão tivesse formatos que permitissem estarmos a li a ter uma boa conversa e depois passassem o vídeo, não me incomodava. Canto em direto porque cantar em playback dá-me vontade de rir. Parece que estou a brincar.
Quem é que participa neste especial?Entro eu, o Pedro Gonçalves dos Dead Combo, que é o meu produtor musical e o Manel Cruz, que fez um tema a pensar em mim e que um dia me fez pensar “porque não agarrar neste tema e fazer uma autoficção?”.
"Lido muito mal com o vazio, nunca aprendi, até hoje. É pior que a tristeza, que a melancolia, que a raiva. Não sei o que fazer no vazio, tenho terror."
Aldina Duarte
E como é que surgiu esse encontro?Conheci o Manel Cruz pessoalmente quando os Ornatos Violeta fizeram o último concerto no Coliseu. E temos um grande amigo comum que sabia da minha admiração por ele e que fez questão que nos conhecêssemos. Sempre fui fã dele e ele disse-me que era meu fã. Achei que ele estava a ser simpático porque nunca acho que esta malta de fora dos fados conheça fado. Se calhar é um erro meu, um preconceito. Já tinha cometido esse erro com o Pedro Gonçalves, que afinal ia aos meus concertos todos. Disse ao Manel “um dia ainda vamos fazer qualquer coisa juntos”, meio a brincar, “mas primeiro tens de conhecer o que eu faço”. “Mas eu conheço”, disse ele. Isto até há dois anos.
O que aconteceu há dois anos?Recebi um email que dizia “fiz a pensar em ti”, uma canção feita no meu tom, com o Manel a cantar o tema “Quando Se Ama Loucamente”, só com um tecladozinho. “Se achares que não tem nada a ver diz-me porque eu queria muito compor para ti”. Afinal era tudo verdade. É preciso ter uma sensibilidade artística e criativa que me comoveu. Mas eu não estava numa de fazer discos, estava num luto de uma paixão, que é o pior luto porque ainda não há nada, sobretudo nada de mau, ainda está tudo por acontecer e não acontece. E então desliguei. Agradeci e disse-lhe que não sabia o que ia fazer.
E o que fez com o tema?Mandei-o para o Pedro Gonçalves. Ele disse que era espantoso, disse “vamos fazer um disco composto por mim e pelo Manel, todo escrito por ti”. Disse-lhe que não tinha capacidade. Aquilo germinou. Ao mesmo tempo fiz o primeiro capítulo de um livro para crianças. Foi meio terapêutico, porque a música é o meu trabalho. Não sou escritora mas tenho jeito. E funcionava como uma espécie de ginástica. E as minhas letras estão cheias de um subtexto emocional que toca a toda a gente. Estou sempre a apaixonar-me, e não falo de pessoas. Os amigos, os livros, os fados, os gatos, a vista que já vi da janela vezes incontáveis… a música é diferente.
Porque a música também implica esforço.Porque me dá um prazer tão grande e absorve-me tanto que, em vez de me fazer bem, faz-me mal. Das duas uma, ou me anestesia ou então a intensidade do trabalho anula a vida, e quando volto para ela tenho tendência a entrar em negação. E eu lido muito mal com o vazio, nunca aprendi, até hoje. É pior que a tristeza, que a melancolia, que a raiva. Não sei o que fazer no vazio, tenho terror.
Mas isso complica a vida de quem é músico.Pode complicar sim, porque muitas vezes obriga a abrir mais a ferida, mas não para a tratar. É para escarafunchar. E eu andava à procura do que me pudesse afastar desse vazio. E quando dei por mim, ainda a “sangrar”, achei que já não estava no ponto de não saber o que fazer e precisava de sair a ganhar. E fiquei com a parte boa da história, com plena consciência da tragédia, que foi o final da relação. E virei-me para o trabalho. Canto com o que sou mas não sou de me cantar a mim. Desta vez juntei as duas coisas e quando dei por mim achei que estava a cantar algo que era de nós todos.
É por isso que se trata de uma autoficção?É. É uma história concreta, sei com quem estou a falar, sei de quem estou a falar, do quê, mas a lógica, a cronologia e os cenários dos factos construí tudo a partir da obra da Maria Gabriela Llansol.
Porquê?Em primeiro porque os livros dela fazem parte desta história verídica. Há um fado que eu canto que começa com a frase “quem me vê é que me tem” e a seguir eu digo “diz-me o livro que me deste”. Foi rigorosamente assim. É uma escritora extraordinária que criou um mundo que não é só dela mas que é singular e quando entramos nele achamos que é nosso. E tenho uma história à volta dela que, do ponto de vista artístico, me encanta sobremaneira. Pensar que uma escritora pouco conhecida tem uma obra viva e que o seu espólio está a ser tratado por gente como o João Barrento ou a Hélia Correia. E foram grandes amigos dela. Juntaram as coisas mais bonitas: a amizade com o trabalho.
E é daquelas escritoras que são mesmo uma companhia, é um amparo, está ali tudo o que precisamos, quase como se fosse uma pessoa, às vezes até é melhor, porque choramos mais à vontade, porque nos rimos mais à vontade. Ela tem esse espaço de liberdade total. E isso é fascinante. E eu vivi uma boa parte do meu luto nos livros dela. Porque a vida não permite que as pessoas se acompanhem em lutos.
"Canto com o que sou mas não sou de me cantar a mim. Desta vez juntei as duas coisas e quando dei por mim achei que estava a cantar algo que era de nós todos."
Aldina Duarte
E este disco pode cumprir para alguém a função que esses livros desempenharam?É uma grande pretensão da minha parte mas gostava. Se alguma utilidade este disco poderá ter é só essa. Já me aconteceu receber emails extraordinários que contam histórias absolutamente respeitáveis do ponto de vista do sofrimento humano que custa a crer que, pelo facto de terem entrado em contacto com o meu trabalho, descubram um bocado este efeito que a Maria Gabriela Llansol teve em mim. Ou como o Jacques Brel também já teve. Porque eu sou um bocado solitária, é a minha natureza. Sou um bocado como os gatos, gosto de lamber as minhas feridas. Porque é preciso sofrer, quem não sofre não está vivo. E não aprende. Até que se ultrapassa e saio de mim, há um momento em que acontece.
E quando é que isso aconteceu?
Com toda a questão dos refugiados, tocou-me muito. Essa fuga, a correr risco de morte, trouxe-me de volta uma pulsão para viver. Relativizei, claro, sem apagar o meu sofrimento porque é o meu e é verdadeiro. Mas relativizei. E foi aí que voltei ao trabalho e que aconteceram coisas…
…inesperadas.
De repente aparece-me o Rogério Ferreira, com quem trabalho há muito no Senhor Vinho, juntamente com o Paulo Parreira. O Rogério disse-me que tinha um tema do pai, queria que eu ouvisse. É o “Refúgio”. Ou seja, no meio de tudo isto, em pleno século XXI, eu crio de raiz um fado tradicional com letra minha. Ficou Fado Ferreira, com uma música com 40 anos. Porque a música… o bom fadista é aquele que absorve quem houve na emoção da história e da palavra e que deixa que a melodia se transforme apenas no chão que te está a levar.
"Não se vive com medo de sofrer. Quem tem medo de sofrer não está vivo, inteiramente."
Aldina Duarte
Uma das primeiras descrições deste disco apresentava-o como um trabalho que cruza várias artes. Como assim?
De repente faço uma autoficção a partir da obra da Maria Gabriela Llansol. O Pedro Gonçalves diz-me que vamos gravar de uma forma que nunca tínhamos seguido, preparando os temas com o tempo que fosse preciso e depois gravar tudo aos takes mas tudo junto. Ou seja, quando alguém se enganava voltávamos todos atrás.
E qual foi o resultado?
Gravámos o disco em duas ou três tardes. Há um ano que rodávamos os temas, nos ensaios de som dos concertos, em ensaios em minha casa, no Senhor Vinho, todos os dias. Depois, as letras eram minhas, fiz as letras numa semana, todas. Mas acho que ando a escrever estas letras há 23 anos. No fundo é a primeira vez que me atrevo a escrever sobre uma coisa muito minha, muito íntima, sobre mim. Nasce depois de ter feito oficinas de escrita de letras para fados, porque sei bem a técnica mas nunca lhe dei muita importância. Quando foi o momento de fazer, foi tudo de uma vez.
Mas há também uma parte estética.Há, surgiu com o Pedro Cabrita Reis, que eu prezo imenso, um grande amigo e um homem brilhante. E é vidrado no meu trabalho. Fui à procura de melodias tradicionais que não tivessem sido gravadas nas últimas décadas. Arranjei seis melodias fortes e comecei a escrever para elas. Quando tinha sete letras pedi ao Pedro para ele me ouvir enquanto lhe cantarolava as letras. Ele comentou e sugeriu algumas alterações, com a linguagem visual que ele tem. Melhorei as letras todas e mostrei-lhe só o resultado final.
Mas isso evoluiu para algo mais.
Sim, quando ele disse que queria desenhar para o meu disco. Tenho muito pudor em pedir coisas aos meus amigos mas às vezes isso funciona ao contrário. Durante anos não aceitei coisas valiosíssimas porque vinham de amigos. Ainda hoje isso me faz confusão. Enfim. Eu digo ao Pedro que o CD é um suporte pequeno, tendo em conta as obras monumentais que ele faz. Mas o Pedro às tantas diz que vamos fazer um livro.

Fotografia: Isabel Pinto
Que livro é esse?
Para frases da Maria Gabriela Llansol eu fiz uma letra. A Isabel Pinto fez uma fotografia para cada letra e o Pedro desenhou uma ilustração para o texto da Hélia Correia que faz parte do disco. A fechar o disco, o João Barrento escolheu um texto da Llansol, de acordo com as letras, para ler e fechar o disco. O livro, que vai surgir só no ano que vem, inclui tudo isto, como se todos fizessem a sua própria autoficção. E o disco apresenta já tudo isto.
Há outro elemento fundamental neste disco e que é visível logo na capa: a água. Que importância tem a água no meio de tudo isto, da paixão, dos livros, do fado?
Quando era pequena tinha uma infelicidade enorme por não saber nadar. Ainda por cima passei a infância em Sintra, Penedo, Almoçageme, Praia da Adraga, Praia das Maçãs, as minhas férias eram sempre aí porque a família da minha mãe é toda de Colares. Lembro-me de estar sempre a mergulhar, queria estar sempre dentro de água, não sabia nadar mas queria estar sempre a mergulhar. E aprendi a nadar entre crianças, já adulta. A água para mim está associada a alívio, entro na água e tenho sempre um vislumbre do que é estar bem. Como se me acrescentasse alguma coisa que me está em falta. Ir ao Guincho no Inverno. A água e o ar. E é isso que sou a cantar."
in: jornal "Observador"

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Aldina Duarte: "O meu fado tornou-se a testemunha daquilo que sou"

Quando se Ama Loucamente, que será editado na próxima sexta-feira, é um disco de quem celebra a vida depois de cumprir o luto de um amor que acabou como "uma morte acidental". E de quem foi salva por uma comunidade de estranhos
"Sabe lá a gente o que anda para cá enterrado no mais fundo de nós. Vamos morrer sem saber, e se calhar não é preciso, mas às vezes há sofrimentos de tal maneira profundos... por qualquer razão a vida exige que a gente vá lá. Às vezes a única maneira de voltar à superfície é submergindo." Aldina Duarte fala num banco do jardim da sua vida, em Lisboa. Aponta para a árvore debaixo da qual escreveu, "de jorro, numa semana", as letras que canta no seu novo álbum. Quando se Ama Loucamente será lançado na próxima sexta-feira às 18.30 na FNAC do Chiado, com a fadista a cantá-lo. "É aquela ali, que dá flor no outono. É a única que eu conheço assim." Coincidência ou não, também Aldina só deu flor no outono: viveu meia vida até chegar ao fado.
Este é o disco em que a fadista canta o luto de um amor que acabou como "uma morte acidental", de súbito, durante a paixão. Um acontecimento colossal na sua vida. "Já sou isto. Eu canto um fado ou outro que associo a sentimentos, a pessoas, a momentos da minha vida: aqui não. Isto é um testemunho. O meu fado tornou-se a testemunha daquilo que eu sou, mesmo que mais ninguém entenda. Quem me vir nestes fados que eu canto, está a ver-me: estou a ser vista como eu sou. Mas também não me vou dar para além disso."
E se a vemos assim, ao seu sexto álbum, é porque muito confluiu para que Quando se Ama Loucamente nascesse. A leitura recolhida dos livros de Maria Gabriela Llansol em que Aldina cumpriu silenciosamente o seu luto, e de onde sairiam depois as letras que escreveu; a canção que Manel Cruz, dos extintos Ornatos Violeta, lhe enviou - Quando se Ama Loucamente -, escrita e composta para ela, quando ainda não lhe passava pela cabeça fazer um disco; ou, além de tudo o que não se enumera, o facto de ter visto na televisão refugiados a desembarcar na Europa. "Essa foi a primeira vez que reparei que não estava o dia inteiro a associar tudo àquele fim. Fiquei com uma gratidão tão grande à vida. Senti que afinal aquela dor era de um coração que está tão vivo ou mais do que era, mais inteiro ainda. O meu maior medo na vida é que algum dia me acontecesse alguma coisa tão grave, ou tão maior que eu, que me fechasse o coração, que eu não conseguisse voltar a sentir, por causa do terror de determinada dor. Tenho medo de ter medo de sentir. É isto."
Todas as letras são dela, à exceção da canção de Manel Cruz, e de Beijo Enganador, de Maria do Rosário Pedreira, nome já comum na sua obra. Outro que agora se repete é o de Pedro Gonçalves, dos Dead Combo, que tal como aconteceu no último disco, Romance(s), assina a produção musical. E ainda Paulo Parreira na guitarra portuguesa, e Rogério Ferreira na viola.
"Queria que a história tivesse aquela subtileza que a Llansol tem: parece que dá a ver claramente o que é invisível, parece que consegue dizer o que é indizível. É disso que se trata. Foram dores que eu não quis dizer a ninguém. Eu sou mesmo um animal nisso, não deixo ninguém perceber a minha fraqueza." Não se pense, todavia, que este testemunho é uma espécie de livre-trânsito para a vida privada da fadista que detesta estar no centro de tudo. "A minha privacidade continua intacta e continuará. No dia em que perdermos a noção do espaço privado e público, provavelmente ficaremos uns insensíveis de merda. Desculpe a expressão, não me ocorre outra coisa. Detesto esse aspeto da realidade que estamos a viver hoje. Esta exposição do que é privado, sem freio. É um tiro no pé, uma coisa suicida."
Uma "tábua de salvação"
"Eles não fazem ideia", diz, com um sorriso, Aldina. Falávamos da Comunidade Fado para Todos, que desde janeiro do ano passado se reúne no Museu do Fado para discutir, ouvir (e às vezes cantar) o fado, sob a batuta de Aldina. Um grupo tão heterogéneo que nele cabem uma dona de casa, uma psicóloga, ou um informático bancário. Ela agradece-lhes "pela inteligência coletiva e pela nobreza de espírito" no booklet que acompanha o álbum. "A comunidade foi terapêutica. Acho que foi a minha tábua de salvação", admite. A comunidade foi um projeto de Aldina ainda pensado ao lado do seu então companheiro, e que começaria depois "em plena dor". Ninguém entre os que se contam na comunidade adivinharia. "Obrigava-me a olhar para os outros, a sair de mim, em nome daquilo que eu mais amo. Estava a falar de fado, de poesia, com pessoas que não me conheciam de lado nenhum, nem eu a elas." Agora já não é assim, claro.
No 50.º aniversário da fadista, curiosamente na semana em que gravou o disco, eles ofereceram-lhe aquilo a que Aldina chama "a prenda mais bonita da minha vida". Um livro com poemas escolhidos para ela, e depoimentos escritos por eles acerca de Aldina e da comunidade, que gravaram também em vídeo. "E ainda fizeram uma letra dedicada a mim, e gravaram-na a cantar, pessoas que nem cantam. É uma coisa comovente..." Quando, há cerca de uma semana, Aldina deu um concerto no largo do Teatro São Carlos, lá estavam eles na plateia, aqui e ali, espalhados, discretos, entre admiradores anónimos, pessoas que passavam, ou Camané e Maria da Fé, duas figuras centrais na vida e no fado de Aldina, que lhes agradeceu logo no começo do concerto.
Outro elemento que garantiu a constância da vida no seu quotidiano, apesar do luto que Aldina vivia, foram as noites no Sr. Vinho, a casa de fados de Maria da Fé, onde canta desde 1997. "Fiz uma coisa que nunca tinha feito", começa a contar enquanto conversávamos ainda acerca do concerto. "Vim de cantar no São Carlos para 2500 pessoas, um momento extraordinário da minha vida e que nunca mais vou esquecer, e de repente fui a correr para o Sr. Vinho. Estavam ainda sete pessoas e pedi à Maria da Fé se podia cantar. Ela nem queria acreditar. 'O que é que estás a fazer?' Cantei três fados de que gosto muito. Senti-me tão bem. Cheguei a casa. Fiz as melhores férias da minha vida, mas cheguei a casa. Visitei o sítio mais lindo do mundo, mas cheguei a casa. Parece que é ali que tudo se cumpre. Disso é que eu nunca me vou esquecer."
Sobre a paixão: "Está tudo doido?"
Resistem na distância as histórias mais belas / Ninguém há de apagar um amor que foi feliz, canta a fadista em No Amor do Teu Nome. Como quem vê a vida de novo reerguida, e a si mesma levantada depois de algo que não pediu mas aconteceu (Que há quem escolha a sua sorte / E quem não possa escolher, escreveu Maria do Rosário Pedreira em Beijo Enganador), Aldina Duarte diz ver agora "como é que as coisas, ao longo deste luto, foram ganhando cores tão diferentes; e é lindíssimo ver a mesma coisa a transformar-se." De repente, e pelas mãos do tempo, o que era "horroroso, afinal era um cisne."
A fadista para por momentos e depois recomeça: "Eu sempre gostei dos contos de fadas, mas antes do Walt Disney a branquear. São histórias de amor fantásticas e extraordinárias que mexem com as convenções todas. São sempre muito corajosas, embora acabem em tragédia. Mas qualquer fim é trágico quando o que se quer é viver, não é?"
Oiça-se o disco e perceber-se-á que o luto que Aldina canta nunca diz que não valeu a pena. Pelo contrário, ao arrepio de uma letargia que tantas vezes acompanha o luto, todo ele é vida, uma celebração da paixão. "Acho que vale a pena arriscar qualquer forma do amor que seja. A paixão é uma delas, e muito válida. Não é maluqueira, como se está a fazer querer. Está tudo doido? Só podem estar doidos. Porque é que de repente fica exclusivamente associada a delírio, ao que é doentio? A paixão é o começo das coisas mais sérias da vida na maior parte das vezes, e dos grandes acontecimentos da História da humanidade. Portanto, quis fazer-lhe um elogio."
Outra coisa que Quando se Ama Loucamente nos dá é um outro tempo, fora das horas, quase no avesso da vida. Aí onde a fada Aldiana canta : Quem sabe se qualquer dia / Noutra vida por magia / Eu te encontro inda menino. "Esse é o território da fé e da esperança", explica. E o lugar das fadas. "Eu tenho tanto de cristã como de pagã. Um dia falei com o Padre Tolentino Mendonça e disse: 'Eu misturo os anjos com as fadas.' Ele respondeu: 'Em cada cristão há um pagão.'"
A história de amor de onde partiria o álbum Quando se Ama Loucamente começou com a oferta de um livro de Maria Gabriela Llansol de ele para ela. E no fim de tudo, conta: "Ela foi mesmo o meu grande abrigo, das minhas dores, de tudo o que eu não dizia." No final do disco, ouve-se a voz de João Barrento, do espaço Llansol, a ler uma passagem da escritora que morreu em Sintra, onde Aldina passava os três meses de férias de verão e onde um dia, diz, "gostava de morrer calmamente, e feliz". Ri-se outra vez. Como quando canta, nela o trágico e o seu contrário justificam a existência um do outro num instante.
Por sugestão de Pedro Gonçalves, todo o disco foi gravado num só take: "O mais parecido possível com uma casa de fados." Entretanto, virá uma caixinha de música com uma fada e a melodia que se ouve em Conto de Fadas, que abre o disco. Pedro Cabrita Reis pintou uma aguarela que aparece no disco, Hélia Correia escreveu um texto, Isabel Pinto fotografou Aldina na água, elemento a que esta recorre quando precisa de voltar à vida.
A fadista diz que quando canta costuma dirigir-se a alguém. Agora não. "Estes fados eu não canto para ninguém. Canto-os, não me preocupo com mais nada." No final do disco, vemo-la a rir. É Aldina que se levanta de novo."

in: jornal "DN"




segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Violeta Parra




Ela despediu-se agradecendo à vida

Nasceu há cem anos Violeta Parra, a mulher que traduziu em música a alma do Chile e que continua “cada vez” mais atual. Assim o afirmam a filha e a neta, Isabel e Tita Parra, também elas cantautoras e que vão dar um concerto a Lisboa. Ambas falaram ao Expresso


A guitarra foi o primeiro e único instrumento de Violeta Parra, ensinado pela mãe
A guitarra foi o primeiro e único instrumento de Violeta Parra, ensinado pela mãe
FOTO D.R.

Nasceu no campo chileno, filha de Clarisa e Nicanor, camponesa e professor de música, pais de outros quatro filhos. Todos, sem exceção, seguiram o rumo da música, mas foi Violeta, Violeta Parra, a que mais se destacou. E ela não se limitou a cantar: passou anos a investigar e gravar a música tradicional do seu país de um modo como ninguém antes o tinha feito, desenterrando uma herança até então desconhecida.
Hoje, as suas canções são indissociáveis desse Chile interior, dessas notas que sempre estiveram lá, à espera de que alguém as recolhesse. Há cem anos que viu o mundo pela primeira vez e há 50 que morreu tragicamente, cometendo suicídio. Justamente um ano depois de escrever a sua canção mais conhecida, o hino “Gracias a la vida”.
in: jornal "Expresso"
(Integral em http://expresso.sapo.pt/cultura/2017-09-12-Ela-despediu-se-agradecendo-a-vida)