PALAVRAS DO DESERTO
Do medo e do milhafre
por Ana Paula Tavares

Do medo e do milhafre
O cacimbo é o tempo prolongado, o sonho que custa a ser sonhado, a casca da árvore presa por fios, as palavras contidas no silêncio dos velhos, denso como a pele que lhes marca os ossos nos dias que descontam a vida colhendo o sol com as mãos magras e finas. Ficam voltados para dentro, descobrindo nas muitas camadas depositadas as vidas que foram vivendo entre bois e filhos desatentos, enfim, a tudo o que mexe cá fora e tem peso e desce por gravidade a encontrar lugar na terra que tudo acolhe. A morte próxima é neles uma busca de dores maiores e desencontros e longos caminhos percorridos alinhados aos que nunca foram trilhados. Caminhos de pé posto e outros mais cortados das catanas, sempre escolhas — este e não o outro –, entre a curva da montanha e o desenho das estrelas. No cacimbo, enquanto as aves fogem da tempestade e do frio, como quem anuncia barcos e novos portos de abrigo, as mulheres mais velhas com as mãos vazias de ninho devolvem o sentido da vida inscrevendo provérbios nas novas cabaças da família. Sabem que todo o processo envolve três nós: nascimento, vida e morte e o ponto de convergência só se adivinha vivendo a separar e a adivinhar cada um dos caminhos que se apresentam em cruz. AnaNaPalavra chegou por esse tempo com poucas palavras: “há um tempo para chorar e um tempo para rir, o nosso tempo para chorar chegou e veio para ficar”. O rosto parecia velado, tantas eram as escarificações e as marcas dos anos na pele azulada, e o corpo parecia parado, tão lentos eram seus movimentos de barco ancorado no deserto de uma solidão antiga. Perdera a qualidade de fazer perguntas com que nos tinha iniciado para a vida. Vinha do seu último ritual de passagem onde devolvera a sua qualidade de mulher para assumir o ser em toda a sua espessura. Ainda parecia um de nós, mas nada na forma como se movia nos deixava perceber a memória partilhada de uma anterior figura que nos amparara o crescimento, levara pela mão até à casa redonda e ensinara o segredo dos silos e dos remédios mais sagrados. Estava ali para desatar nós, ausente e a mostrar-se num processo de transformação que nos deixava inquietos. O medo desceu sobre a montanha e a nossa vida ficou pequena, tanto era o tempo que perdíamos a olhar AnaNaPalavra e a adivinhar a eternidade que trazia para contar: “depois das mortes vieram mais mortes, há que saber os segredos”.
Voltámos às tarefas dos dias, avaros dos nossos e dos novos pastos, crentes em que o prodígio das sementeiras e das colheitas nos faria viver a vida que o chão da nossa terra nos pedia. As mulheres novas amamentavam os monas e as cabras pariam filhos no curral. Todos nós queríamos alargar os dias para que a hora da vergonha tardasse a chegar. A noite era dura e transparente e jogava connosco o jogo da vergonha. O segredo (pensávamos) estava escondido nos lugares sagrados e embora estivéssemos destinados a viver sem sonhar (estava-nos interdito o sonho), o guardião do sino e o mais velho de todos os ferreiros tinham pelo fogo conseguido proteger a aldeia de todos os castigos. Estávamos entre o céu e a terra (pensávamos), no universo ideal da eternidade diária. Não pensávamos.
AnaNaPalavra não era a pessoa por quem esperávamos. É verdade que ela era dos nossos. Tinha as marcas da linhagem. Tinha o segredo da linguagem. Não sabíamos porque tinha voltado agora, quase transparente e sobretudo sem a dupla face que a fazia ser uma de nós.
Foi tecendo à sua volta um último cesto: sepultura e berço de um chão e de uma vida longe da eternidade. As palavras ácidas caíram sobre nós como a chuva de Março: intensas, como se todas as estrelas do céu resolvessem apressar o nosso destino. A morte de Garita, a faca do crime, os amores selvagens e fora das regras foram punidos assim, pela mão de AnaNaPalavra e o regresso dos sonhos mais antigos. Antes de fechar o cesto disse:
“Eu vivi aí, há muito tempo, com os pastores e os camponeses. Vivi, portanto, nesse reino, vi com os meus próprios olhos e ouvi com as minhas orelhas os seres fabulosos por detrás das coisas: os espíritos guardiães das fontes, as sereias que cantam no rio, os mortos das aldeias dos antepassados que me falavam iniciando-me nas verdades alternativas dos dias e das noites. É-me portanto suficiente nomear as coisas, os elementos…”1
1 De um poema de Leopold Sedhar Sengor / Léopold Sédar Senghor
in: RedeAngola
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