sábado, 20 de agosto de 2016
Lugares_conto_Ana Paula Tavares
Lugares_conto
por Ana Paula Tavares
«Eu já não sou o que fui»
dos Salmos
Sentado em frente à porta da grande muralha o velho tropeçou no corpo inerte e ensanguentado do branco das pedras que costumava passar por ali com um saco às costas e uma mala na mão, ambos cheios de livros, pregos, arame, restos de tecido que o branco vendia e trocava por cabritos, bois e, por vezes, algum favor das mulheres. Com os anos e as vindas foi perdendo o nome para ficar o “branco das pedras” de quem era preciso esconder os melhores bois e as raparigas novas. Palavras fáceis, vinho difícil e a doença da escrita eram as coisas daquele branco que foi, com o passar do tempo, adquirindo a cor de colono velho, cheio de machas e marcas de cicatrizes.
O velho começou a tremer como se tivesse febre sem perceber porque é que a palavra rede se tornava tão insistente. Rede e fuga. Fugir era o que ele queria, desaparecer para o norte onde a família lhe arranjaria as falas da protecção. Só em sonhos vira aparecer uma face assim lívida e aquela espécie de gelo pesado insuportável. O corpo estava abandonado no esporão da muralha dupla que ali marcava antigos sítios de invenção do poder, a força de catanas e pontas de zagaia marcadas pelo tempo. Acendeu devagar a mutopa com folhas ainda novas enchendo os pulmões de fumo e tosse. Grossas bagas de suor desciam pelas fontes. Veio-lhe à mente a palavra veneno, ordálio tinha lido naqueles velhos livros da mala de lona do velho alemão que por ali andara quando ele ainda era um menino. Beber veneno para ficar vivo. Beber veneno para morrer assim. Beber veneno e queimar os pés para salvar a alma do peso das casas e das palavras dos velhos, nossos muito mais antigos.
Ali não eram casas como as nossas, que nos bebem a alma e o corpo até que começamos a ter o seu cheiro na nossa pele de adobo endurecida pelo passar dos dias e das noites. As muralhas do Eléu eram de outras vidas, outras histórias e outras casas, eram muralhas onde estavam inscritas as mãos dos homens escravos e o seu suor e sangue quando durante anos e por ordem do chefe maior arrancaram do chão da Chela as lajes dos bastiões das seteiras, as covas de lobo à volta do chão das cabanas para construir, abrigos individuais para experientes soldados que em certos momentos vigiavam de pé as transformações ao fundo do horizonte. Na parte norte eram precisas casas sãs e bem construídas para homens e montadas porque a saída da guerra era preparada aí atrás da muralha dupla, alternada com muralha simples torneando elevações e pequenos montes. O velho lembrou ainda o quanto seu tio, irmão da mãe, os impedia de se aproximar da muralha quando eram meninos e apenas guardavam cabritos longe dos bois e do chão que estes pisavam para a tornar mais doce e gorda a terra para a semente. Muralhas do Éleu, sua altitude e distâncias desiguais e um homem branco morto roto e sujo ali atirado sem que a vida tivesse chegado ao fim, ainda com muito lugar para os dias e as memórias. A guerra, por aquele tempo, não andava por ali. As mulheres, mesmo as mulheres de deus, estavam longe nas suas tarefas de filhos, leite azedo e manteiga. Aquele era um lugar da guerra, espaço de vida e de morte e nunca lugar de passagem de gente fugida dos outros, os que avançavam e os que recuavam na roda circular da ira e da raiva.
O velho afastou o corpo daquele chão sagrado, apagou o fumo na mutopa e começou a pensar nos dias da sua própria morte que havia que preparar.
Passou os dedos para avaliar o fio da sua própria catana. Um silêncio feroz toldava-lhe os sentidos. Onde estavam os chefes, agora que as pedras da farinha estavam vazias? Por que rios corriam os risos dos monas? Onde estariam as mulheres a tratar dos cabelos, das pulseiras de protecção e das falas doces da tarde? O velho desceu com o corpo pelo monte e sentou-se na base do morro a descansar. Retirou da mala o velho livro de capa preta que ele tão bem conhecia (rezas, dívidas de chefes, contas e a dificuldade daquela letra azul toda deitada para trás). Encontrou um osso com uma gravação que mais parecia um mapa do tesouro. Lembrou-se de ainda antes de adulto ter feito com o pai uma viagem de grandes dias e noites em busca de um tesouro perdido. Lembrou-se porque o pai lhe falara de papéis e ouro e de um osso gravado que deveriam decifrar.
Chegou ao fim da muralha pelo lado sul. No chão profano abriu com ajuda de um pau um buraco onde acomodou o branco, seguindo o desenho dos golpes da catana. Sabia que golpes antigos eram para permanecer em aberto. Regou o chão com os venenos de reserva para que a erva ou a árvore ali não voltasse a crescer. Subiu, como bom filho, a montanha em direcção aos amuralhados. Deitou-se a dormir, voltado para sul, à porta da embala do chefe. Seus sonhos azuis voltaram a sair da mutopa.
in: Rede Angola
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A excelente escrita de Ana Paula Tavares. Gosto muito de a ler.Gostei de a encontrar aqui.
ResponderEliminarUma boa semana.
Beijos.