quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Mário de Andrade_O valioso tempo dos maduros

Poema belíssimo



O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS – de mário de andrade / são paulo

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas..
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua
mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

fado com dono_Aldina Duarte

Intensa e vibrante esta interpretação na voz da Aldina, mulher de alma e com alma.


letra: Maria do Rosário Pedreira
música: Armando Machado
voz: Aldina Duarte

Diz quem já me ouviu cantar 
Que, quando soa o meu canto, 
A terra inteira estremece; 
E os rios perdem o mar, 
E as pedras rolam de espanto, 
E até o mal se enternece  

Diz quem meu fado conhece 
Que ele enfeitiça e encanta, 
E comove, e tira o sono 
É a paixão que entretece 
Os fios de quem o canta 
Porque o meu fado tem dono  

Eu canto para procurar 
Aquele que já foi meu 
E a morte me arrebatou 
Não desisto de cantar, 
Chamando o nome de Orfeu 
Em todo o lado aonde vou  

Mesmo que o saiba fechado 
No Inferno mais profundo 
E não me aguarde outra sorte, 
Levo comigo o meu fado - 
Vou até ao fim do mundo 
Para morrer da sua morte.

sábado, 20 de agosto de 2016

Lugares_conto_Ana Paula Tavares



Lugares_conto
por Ana Paula Tavares


«Eu já não sou o que fui»
dos Salmos

Sentado em frente à porta da grande muralha o velho tropeçou no corpo inerte e ensanguentado do branco das pedras que costumava passar por ali com um saco às costas e uma mala na mão, ambos cheios de livros, pregos, arame, restos de tecido que o branco vendia e trocava por cabritos, bois e, por vezes, algum favor das mulheres. Com os anos e as vindas foi perdendo o nome para ficar o “branco das pedras” de quem era preciso esconder os melhores bois e as raparigas novas. Palavras fáceis, vinho difícil e a doença da escrita eram as coisas daquele branco que foi, com o passar do tempo, adquirindo a cor de colono velho, cheio de machas e marcas de cicatrizes.

O velho começou a tremer como se tivesse febre sem perceber porque é que a palavra rede se tornava tão insistente. Rede e fuga. Fugir era o que ele queria, desaparecer para o norte onde a família lhe arranjaria as falas da protecção. Só em sonhos vira aparecer uma face assim lívida e aquela espécie de gelo pesado insuportável. O corpo estava abandonado no esporão da muralha dupla que ali marcava antigos sítios de invenção do poder, a força de catanas e pontas de zagaia marcadas pelo tempo. Acendeu devagar a mutopa com folhas ainda novas enchendo os pulmões de fumo e tosse. Grossas bagas de suor desciam pelas fontes. Veio-lhe à mente a palavra veneno, ordálio tinha lido naqueles velhos livros da mala de lona do velho alemão que por ali andara quando ele ainda era um menino. Beber veneno para ficar vivo. Beber veneno para morrer assim. Beber veneno e queimar os pés para salvar a alma do peso das casas e das palavras dos velhos, nossos muito mais antigos.

Ali não eram casas como as nossas, que nos bebem a alma e o corpo até que começamos a ter o seu cheiro na nossa pele de adobo endurecida pelo passar dos dias e das noites. As muralhas do Eléu eram de outras vidas, outras histórias e outras casas, eram muralhas onde estavam inscritas as mãos dos homens escravos e o seu suor e sangue quando durante anos e por ordem do chefe maior arrancaram do chão da Chela as lajes dos bastiões das seteiras, as covas de lobo à volta do chão das cabanas para construir, abrigos individuais para experientes soldados que em certos momentos vigiavam de pé as transformações ao fundo do horizonte. Na parte norte eram precisas casas sãs e bem construídas para homens e montadas porque a saída da guerra era preparada aí atrás da muralha dupla, alternada com muralha simples torneando elevações e pequenos montes. O velho lembrou ainda o quanto seu tio, irmão da mãe, os impedia de se aproximar da muralha quando eram meninos e apenas guardavam cabritos longe dos bois e do chão que estes pisavam para a tornar mais doce e gorda a terra para a semente. Muralhas do Éleu, sua altitude e distâncias desiguais e um homem branco morto roto e sujo ali atirado sem que a vida tivesse chegado ao fim, ainda com muito lugar para os dias e as memórias. A guerra, por aquele tempo, não andava por ali. As mulheres, mesmo as mulheres de deus, estavam longe nas suas tarefas de filhos, leite azedo e manteiga. Aquele era um lugar da guerra, espaço de vida e de morte e nunca lugar de passagem de gente fugida dos outros, os que avançavam e os que recuavam na roda circular da ira e da raiva.

O velho afastou o corpo daquele chão sagrado, apagou o fumo na mutopa e começou a pensar nos dias da sua própria morte que havia que preparar.

Passou os dedos para avaliar o fio da sua própria catana. Um silêncio feroz toldava-lhe os sentidos. Onde estavam os chefes, agora que as pedras da farinha estavam vazias? Por que rios corriam os risos dos monas? Onde estariam as mulheres a tratar dos cabelos, das pulseiras de protecção e das falas doces da tarde? O velho desceu com o corpo pelo monte e sentou-se na base do morro a descansar. Retirou da mala o velho livro de capa preta que ele tão bem conhecia (rezas, dívidas de chefes, contas e a dificuldade daquela letra azul toda deitada para trás). Encontrou um osso com uma gravação que mais parecia um mapa do tesouro. Lembrou-se de ainda antes de adulto ter feito com o pai uma viagem de grandes dias e noites em busca de um tesouro perdido. Lembrou-se porque o pai lhe falara de papéis e ouro e de um osso gravado que deveriam decifrar.

Chegou ao fim da muralha pelo lado sul. No chão profano abriu com ajuda de um pau um buraco onde acomodou o branco, seguindo o desenho dos golpes da catana. Sabia que golpes antigos eram para permanecer em aberto. Regou o chão com os venenos de reserva para que a erva ou a árvore ali não voltasse a crescer. Subiu, como bom filho, a montanha em direcção aos amuralhados. Deitou-se a dormir, voltado para sul, à porta da embala do chefe. Seus sonhos azuis voltaram a sair da mutopa.

in: Rede Angola

 

sábado, 13 de agosto de 2016

Iracema_Elis Regina e Adorian Barbosa_1978




Iracema_no bar do Bixiga

Maravilhoso e Histórico

 Este vídeo foi gravado no
 bairro da Bela Vista, que tem o apelido de Bixiga, sim, não é Bexiga, mas Bixiga por causa de uma doença trazida pelos europeus no fim do século retrasado ou início do passado, se não me falha a memória. O Adorian Barbosa, que acompanhava a Elis Regina aí no vídeo era daqui, do bairro. Muito simpático e querido por todos. Dia desses foi aniversário dele, já falecido há uns 25 anos. Temos uma praça muito linda com o seu nome. Vou fotografar qualquer dia e enviar s você.  

A ELIS era gaúcha (nascida no Rio Grande do Sul). Faleceu muito jovem em 1981, vítima de drogas, infelizmente. 
by:Elena Martins