Nas colinas de António Machado
I
Na crista das colinas
sem neve, a pedra; o seu esmeril;
aguça mais a luz:
como dormir
com estas flechas
brancas na memória?
flechas de catedrais;
como esquecer
este rumor de vidro e algodão
no céu? poema escrito
entre uma aresta e um gume,
entra nas veias, fere:
agulha de morfina fria;
como arde este cristal?
II
Fogo, fulgor
das veias fatigadas
subindo à pedra; à luz;
à neve
por cair;
estrutura imóvel refractando
que chama interior?
petrificando que mineral humano
apenas esboçado?
nenhuma eternidade
se concebe melhor;
nenhuma estrela;
nenhum fulgor perseverante
como o deste cristal.
III
As nuvens descem;
ou o paradouro sobe da colina, da prata;
colina plateada; ou voga
no ar o tuinal
ainda turvo; ou a pré-atmosfera
do sono se anuncia
no halo inquieto
onde a neve começa
a ganhar peso
pouco a pouco; ou piso-a já
fechando os olhos: ou o seu filtro
me purifica; ou nada disto: o feltro
da insónia apenas; a polir
por dentro este cristal.
IV
Move-se a esfera,
quase imperceptível; pedra aérea:
colinas ascendendo
em torno de mim,
eixo do mundo; mais veloz,
a rotação arrasta as lâminas da luz,
tritura-as, espalha-as
como chuva
num esplendor de fósforo; afinal,
a neve é isto: pedra
em flocos; o seu brilho de mica;
o seu regresso à terra; quando
o movimento cessa e coalha
o som deste cristal.
V
Nenhum revérbero
agora; superfície,
serenidade; mas
na coroa circular, melhor, no horizonte
de rocha, pulsa ainda
um fogo fátuo:
xisto, sílica, trazidos
de minas profundíssimas; e nele
a cinza à espera
do vento árido, sem pólen,
que fende o céu
esterilmente: cálice vazio;
ou cheio de silêncio; mas
cálice, cristal.
Carlos de Oliveira
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