quarta-feira, 28 de abril de 2021

"O que ando a ler"



Germano Oliveira

Editor online

"Respeito muito a sorte, um dia a minha família quis meter-me no ciclismo e tive de fazer um teste com outros atletas, no fim da prova caí e bati com a boca no chão, o meu primeiro troféu no desporto foi lábios inchados para uns dias e um dente torto para a vida, que campeão, agora sempre que sorrio os outros podem ver como a sorte me sorriu mas nunca quis que os dentistas mexessem na minha sorte porque sempre que a escovo com o meu dentífrico quando me levanto de manhã e depois quando me deito à noite essa é a maneira que tenho de celebrar todos os dias a gratidão de ter a minha inteligência intacta: eu ia sem capacete no dia em que caí porque o ciclismo agora obriga a usá-lo mas naquele tempo não, portanto eu podia ter batido com a cabeça mas bati com a boca no chão, não sei como aconteceu mas sei que cair é um azar mas cair bem é uma sorte e eu cá prefiro negar coisas a dentistas do que depender de neurologistas, a vida é mesmo um milagre ainda maior quando o estado da cabeça continua no seu melhor, por isso respeito muito a sorte de ter um dente que se tornou torto e uma inteligência que se manteve direita, penso sempre nisso quando pego na minha escova de dentes e para mim tem beleza e conforto maiores que um sorriso perfeito, portanto deixem-me em paz dentistas que me querem pôr um aparelho, anos depois já era ciclista a sério e voltei a ter uma queda que me entortou outra parte do corpo mas tenho tanta sorte na minha sinuosidade e aprendo tanto com ela, veja bem: um dia fui treinar sprints na estrada de Entre-Os-Rios para depois ir competir à pista de Alpiarça, acabou mal, a corrente da bicicleta partiu-se e eu capotei, lembro-me de ver o mundo ao contrário enquanto andava à volta no ar e depois de não me conseguir levantar quando tentei sair do chão, foi assim que descobri pela primeira vez como dói cair depois de subirmos na vida e como custa ainda mais levantar-nos, mas voltando à história: nesta queda eu ia de capacete e ele estalou-se quando bati na estrada e a minha clavícula também, é uma agonia absurda mas de tudo o que se podia ter quebrado foi o osso do ombro que se articula com o esterno e o úmero que cedeu, o pescoço caiu bem as costas também e a cabeça idem porque graças a Deus o capacete, depois no hospital avisaram-me que iria caminhar torto durante umas semanas porque o ombro afetado tinha ficado temporariamente desnivelado, ainda hoje está porque fui a um endireita depois do hospital porque queria acelerar a recuperação mas devia era ter feito a fisioterapia que me recomendaram para curar lentamente a lesão, por isso respeito muito a sorte que só me deixou um ombro torto em vez de danos piores para me ensinar que há decisões de momento que têm consequências para a vida inteira, continuando: tive mais quedas entretanto, numa ganhei uma cicatriz na coxa quando deitei abaixo parte do pelotão ao cair numa curva com areia e fui entre todos aquele que se magoou menos e noutra fiquei com uma cicatriz debaixo do queixo quando bati a 50 à hora numa pessoa que atravessou a estrada sem olhar, às vezes penso na sorte que tive em todas as quedas graves porque ora aprendi filosofia ora anatomia mas nunca perdi o essencial que é a minha memória e imaginação e o meu juízo e raciocínio e a minha capacidade de abstração e conceção, o dicionário diz que isso tudo é inteligência e essa ficou-me sempre intacta nos meus desastres de bicicleta, não interessa a dimensão da inteligência mas sim que é a nossa, neste caso a minha, tive tanta sorte “e não há nada de mal nisso, o inimigo queixava-se de Napoleão por ele ter generais com sorte, ao que o imperador retorquia que não gostava de generais sem sorte”, isto é do João Lobo Antunes no prefácio do “De Profundis, Valsa Lenta”, é a história de quando o grande José Cardoso Pires teve um acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, aconteceu assim e é contado pelo próprio:

“Janeiro de 1995, quinta-feira. Em roupão e de cigarro apagado nos dedos, sentei-me à mesa do pequeno-almoço, onde já estava a minha mulher com a Sylvie e o António, que tinham chegado na véspera a Portugal. Acho que dei os bons dias e que, embora calmo, trazia uma palidez de cera. Foi numa manhã cinzenta que nunca mais esquecerei, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a correr a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme plátano por trás da varanda. Parei na chávena de chá e fiquei. ‘Sinto-me mal, nunca me senti assim’, murmurei numa fria tranquilidade.
Silêncio brusco. Eu e a chávena debaixo dos meus olhos. De repente viro-me para a minha mulher: ‘Como é que tu te chamas?’.
Pausa. ‘Eu? Edite.’ Nova pausa. ‘E tu?’ ‘Parece que é Cardoso Pires’, respondi então”,

e a seguir ele levanta-se para ir tratar da higiene matinal e eu descubro a lê-lo que a minha escova de dentes fez coisas melhores por mim que a dele por ele,

“Tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença), exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto”,

tenho uma pessoa na minha vida que sei que leu recentemente duas vezes este livro do José Cardoso Pires, esta minha pessoa teve um acidente de bicicleta mais grave que todos os meus porque quando se levantou não pôde negar coisas a neurologistas e aprendeu de maneira absolutamente pior que a minha quanto nos custa reerguer a vida depois de ela nos cair ao chão, eu tive sempre a sorte toda nas vezes que caí e esta minha pessoa teve toda a sorte nenhuma de uma só vez, respeito muito a sorte mas não entendo mesmo como ela se distribui, talvez eu tenha mais medo do que respeito pela sorte, enfim, esta pessoa da minha vida que caiu esqueceu-se de palavras nomes factos e memórias depois do acidente, o José Cardoso Pires descreve no “Valsa Lenta” em quem nos transformamos quando isso acontece:

“Sem memória esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido”,

mais adiante no livro o José Cardoso Pires conta que chegou a ser noticiado que ele tinha morrido, “morte cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa passou a notícia à imprensa para o outro lado dos muros do Hospital de Santa Maria”, mas o triunfo dele não foi ter ficado vivo mas ter voltado a ser a pessoa dotada que era antes do AVC, isso é que é ressuscitar: o diagnóstico inicial que lhe fizeram não fazia prever uma recuperação total, antevia-se uma perda permanente de faculdades intelectuais, mas a ciência é continuamente surpreendida pela instinto humano de preservação e superação - ninguém soube explicar de que maneira aconteceu mas ele recuperou subitamente, num dia era o Outro e no dia a seguir era o José Cardoso Pires, os médicos espantaram-se, “alguém me dá os parabéns como se tivesse sido eu o autor deste triunfo e um psiquiatra meu amigo expõe o fundamental da recuperação surpreendente, surpreendente, repetiu ele, que me tinha acontecido”, no prefácio do livro o João Lobo Antunes também conta a sua surpresa com a recuperação do José Cardoso Pires e é nessa reflexão que aparece o Napoleão mas tanto mais,

“É claro que lhe podia enunciar cientificamente os possíveis mecanismos pelos quais se operou a sua restitutio ad integrum. Não sei, nem para o caso importa muito, quais eles foram. Eu tenho duas outras explicações originais, uma talvez pouco científica, e a outra digna de mais madura reflexão.
A primeira é que você simplesmente teve sorte, e não há nada de mal nisso. O inimigo queixava-se de Napoleão por ele ter generais com sorte, ao que o imperador retorquia que não gostava de generais sem sorte, princípio para mim fundamental na prática da profissão.
A segunda é que a área que temporariamente você deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a do comum dos mortais. E isto não é treta, porque se sabe hoje que os donos do ouvido absoluto, que lhes permite a identificação imediata de qualquer som - e Mozart tinha-o, e de forma admirável -, têm a área auditiva do córtex cerebral indiscutivelmente hipertrofiada”,

respeito muito a sorte mas respeito ainda mais a inteligência, por isso estou hipertrofiado não de esperança mas da certeza de que a minha pessoa que caiu está agora a ser autora de um triunfo à maneira dela, nada surpreendente surpreendente para quem a conhece porque a área que ela deixou temporariamente à sede e à fome e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímia, é mais musculada que a do comum dos mortais e isso não é treta porque ela é a campeã do halterointeligenciofilismo: a má sorte pode partir-nos a vida mas a inteligência pode consertá-la e tu, pessoa que caiu e que já vi entretanto de pé, tu és dona de uma força absoluta e tens uma inteligência que é inspiração e também a tua salvação - e se tiveres medo neste teu caminho, porque ter medo nem sempre é cobardia porque às vezes é somente inteligência, lê duas vezes a Clarice Lispector: “Naquela hora da noite conhecia esse grande susto de estar viva tendo como único amparo apenas o desamparo de estar viva. A vida era tão forte que se amparava no próprio desamparo”."

in: "Expresso Curto"