"A AMIZADE PODE SER CONSIDERADA UMA CRÍTICA DO AMOR": O QUE EU ANDO A LER
Há uma serial killer na vida dos apaixonados-namorados-casados-e-amantes e é preciso ler George Steiner, escritor que publicou em páginas sagradas (New Yorker, Guardian) e aprendeu em universidades inacessíveis (Harvard), para entendermos a homicida: "Amizade, assassina do amor" é um dos capítulos de “Fragmentos”, minilivro que é um miniensaio sobre a minivida que temos, porque a vida que vivemos é-nos vida sempre mini, insuficiente (a insatisfação é uma virtuosa falha do carácter humano). Steiner elabora filosófica e delicadamente sobre o vigor da amizade e como ela salva, preenche, resgata e vicia mais que os dotes do amor. E a amizade é tão lustrosa e poderosa que para Steiner não somos dignos dela: "É a bonificação da existência humana, a sua recompensa imerecida". Mas quando ela acontece que seja perene e com a lealdade toda, porque para Steiner não há sofrimento maior que o provocado pelos amigos que se traem - e ele sustenta que é mais provável sobreviver-se à traição no amor que na amizade, porque o ato de amar contempla cinicamente na sua conceção um inevitável epílogo de destruição e o ato de amigar perspetiva um acontecimento infinito sem as contingências eróticas e íntimas da tragédia de amar. Portanto, e perante uma tese tão laudatória da amizade, como é que Steiner a transforma em homicida?
"Teologias diferentes, as filosofias que dela emanam, as letras que cantarolamos, e que dançamos desde a criação, proclamam que o amor é o cume, a coroa, a derradeira dádiva do património humano", começa por ironizar Steiner - ou por constatar. E a seguir expõe o exemplo sagrado de como tendemos estupidamente a ridicularizar a amizade quando a comparamos com o amor: "A fé intima-nos a amar Deus - a aspirar e a confiar no seu amor. Em contraste, a noção de ter Deus por amigo causa embaraço". Mas ele concede que há acontecimentos no amor que contêm glórias inatingíveis para os demais sentimentos: "No momento em que o amor recua, não há arrepio de frio que se lhe compare, o gás do pântano infiltrando-se no nosso ser. O orgasmo simultâneo (provavelmente raro) é o ponto a que a experiência humana pode chegar mais próximo de uma abolição do eu, da imersão no outro", assinala Steiner sobre a perda e o êxtase. "Apenas no amor, ao olharmos para um espelho, podemos encontrar uma imagem que é mais do que nós mesmos. Perguntamos novamente: como pode a amizade ser sua 'assassina'?"
A resposta é longa, luminosa e tem um arranque notável: "A amizade pode ser considerada uma crítica do amor". Porque para Steiner, e manifestamos desde já o nosso desacordo com ele, amizade e amor não podem ser concomitantes: ou se ama e com isso acontecerá inevitavelmente fatalidade ou se é amigo e com isso virá a mais sólida experiência da existência humana. "A amizade pode abrir mão dos imperativos anárquicos da sensualidade, das exigências e frustrações do sexo. (...) A amizade é aquilo que, no âmbito da razão, no âmbito da compreensão desinteressada, é apaixonado. Aquilo que torna inteligentes a generosidade do pensamento e o coração. (...) No casamento, em qualquer experiência erótica, pode vir a provar-se fatal. Os amantes não são amigos. (...) A agenda do amor é interrompida por erupções de ódio, por discussões acres, pelo assomo abrupto, e por vezes inexplicável, do aborrecimento e da indiferença. A maioria dos casamentos e a maioria dos casos amorosos perduram graças a um rosário de reconciliações, nem sempre verdadeiras. (...) O declínio da libido deixa um sabor amargo. Mas existe também um outro caminho mais subtil, mais ambíguo. No casamento, nas vidas em comum que nasceram de um amor autêntico, o tempo pode amadurecer, trazendo as maravilhas altruístas da amizade. (...) Mulheres e maridos, outrora enredados no desejo, amadurecem naquela serenidade estimulante própria da amizade. Nesse outono precoce, as necessidades carnais, a fome física, as charadas e os melodramas da sexualidade tomam-se irreais, infantis (como a fala infantilizada do êxtase). Quando encarada de um modo desapaixonado, a acrobacia do sexo, com os seus cheiros e os arquejos escabrosos que liberta, surge-nos como risível, se não mesmo repelente. Aquelas posições, aqueles mimetismos de satisfação (pergunte-se às mulheres!)... A amizade não requer subornos, nem 'brinquedos sexuais' — uma designação elucidativa -, nem vaselina. Para Freud, havia algo de degradante no sexo depois dos quarenta e cinco anos." E é assim que Steiner constata que a amizade pode bem ser a "assassina do amor". Ele que tem um grande lamento artístico: "Não temos nenhum grande romance que mostre como os amantes se tornam amigos. Os rios turbulentos morrem na tranquilidade do mar".
Queremos crer que Steiner teve mais fortuna na amizade que no amor. Que os demais de nós tenhamos tanta sorte numa e infinitamente mais no outro. Para que se escreva: "Amizade, muralha do amor".
in: " Expresso Curto ", 13.dez.2018