domingo, 29 de outubro de 2017

Primeiro Mundo_Aline Frazão



letra:

Eu não sei porquê
Há incêndio dentro de cada janela e se vê
Eu não sei porquê
Este incêndio que arde dentro, 
come o corpo todo e a gente finge que não vê,
Finge que não vê, finge que não vê?

Mas por dentro arde, como não vai arder
Se não minha terra não tem pra? comer
Já quase creio que não tenho o direito de ser alguém
Por isso arde
Ter de dizer adeus
Sem saber se o deserto me vai vencer
Juntar os últimos sonhos com a roupa do corpo
Partir por mim e pelos meus
E afinal tem que haver algum Deus

Eu não sei porquê
Há incêndio dentro de cada janela e se vê
Eu não sei porquê
Este incêndio que arde dentro, 
come o corpo todo e a gente finge que não vê,
Finge que não vê, finge que não vê
Mas por dentro arde, como não vai arder
Se chegando no primeiro mundo
Me sinto mais esquecido do que era no segundo
Arde
Carimbo de ilegal
Preconceito racial
Só por ter nascido mais ao sul
Xe gente do primeiro mundo, pais da civilização
Por não ter um papel acabei numa prisão
Xe gente da terra inteira
Queima o fogo da desilusão
Este primeiro mundo é só de brincadeira
Só de brincadeira, só de brincadeira
E você finge que não vê
Eu não sei porque

Tens que entender que não há diferença entre nós
A mesma essência
Se a minha liberdade não existe
A tua é só aparência

É só aparência
E você finge que não vê
Eu não sei porque

Primeiro mundo só de brincadeira
Primeiro mundo só de brincadeira
Só de brincadeira, só de brincadeira, 
só de brincadeira, só de brincadeira.


........
Entrevista ao jornal "Expresso":



“As prisões fizeram-me pôr tudo em perspetiva”



Aline Frazão gravou 
este disco em Jura, 
na Escócia, por sugestão de Carlos Seixas, diretor 
do FMM Sines
DINIS SANTOS

“Insular” é uma viagem a Luanda guiada pela poderosa e combativa voz de Aline Frazão. Ainda que ‘doce’ seja o adjetivo que melhor a descreve

Não foi preciso ouvi-la cantar para lhe perceber a força. Bastou ouvi-la falar, há pouco mais de três anos, num encontro que precedeu um concerto inesquecível. A voz é a de uma estrela, ainda que o tom seja baixo; porque, como ela acredita, não é o grito que a levará mais longe, a tornará mais combativa. Apesar dos 27 anos, da “falta de cabelos brancos”, Aline Frazão, nascida em Luanda, há muito que tem maturidade suficiente para ser levada a sério. É uma voz suave mas confiante, uma compositora séria, uma mulher que pensa por si. Depois de vários anos a residir na Europa, com visitas regulares a Luanda e discos como “Clave Bantu” (2011) e “Movimento” (2013), lança “Insular”. A poesia apura-se sem descartar a situação política angolana. A música não perde identidade, mas eletrifica-se, através da colaboração da guitarra de Pedro Geraldes (Linda Martini) e da produção de Giles Perring.
O ponto de partida deste disco é “O Conto da Ilha Desconhecida”, de José Saramago, que inspira uma das canções? Não. Chegou depois. Estava a uma semana de embarcar para Jura, na Escócia, onde fui gravar o disco [no estúdio de Giles Perring], e numa conversa uma amiga fala-me deste conto. Quando o li parecia-me que tinha sido escrito para este disco. Tinha as metáforas perfeitas... A ideia de ir à procura de uma ilha desconhecida, com o objetivo de descobrir quem somos, quando todas as ilhas já foram descobertas... A música e a letra surgiu no dia seguinte. Ganhei mais uma música.
Quem nasce em África fala sempre da imensidão. De onde vem a necessidade ‘insular’, palavra que dá nome ao disco? Antes de pertencer ao continente africano, pertenço a Luanda, que é uma cidade muito específica. Luanda não é uma savana africana. É uma cidade com um horizonte cada vez menos aberto e um skyline cada vez mais preenchido, mais bloqueado. Os meus pais nunca se quiseram aventurar muito, e durante a guerra civil nunca nos afastámos mais de 40 ou 50 quilómetros de Luanda. A minha experiência é a de uma capital africana contemporânea e caótica, na qual se encontra cada vez menos o passado. E a verdade é que as cidades têm muito a ver com a ideia de ilha. E as pessoas têm muito de ilha. As pessoas vivem cada vez mais preocupadas com as suas contas, com as suas vidinhas... O silêncio e o recolhimento são importantes para se chegar a algum lugar. A solidão acontece muitas vezes em ambientes de grande barulho, na cidade.
No disco, fala na solidão... Estamos “nos braços daquela solidão”... Estamos. E de várias maneiras. A solidão pode dar-nos várias respostas. Depende da forma como a abraçamos. A solidão apressada, da vida contemporânea, agitada, promete pouco. Mas uma solidão consciente, virada para dentro, é a que nos dá mais respostas, nem que seja para nos mostrar que não há necessidade de nos fecharmos em nós próprios, mas de nos abrirmos ao contacto com os outros, de modo a dar o mesmo peso aos nossos interesses e aos dos outros. Devemos colocar-nos a um nível de igualdade. E essas são questões que têm tanto de individual e de introspetivo como de social e político.
Mesmo que não pareça, o disco tem uma segunda camada, que é muito política e angolana... Este disco é muito particular. O olhar está mais virado para fora, para o que observei. Mais do que uma construção, é uma desconstrução. Durante o tempo de criação de “Insular” comecei a escrever crónicas [no portal Rede Angola]. Isso afetou a minha escrita de canções. Hoje, faço pouco esforço para transmitir nas canções ideias concretas sobre política. De facto, isso fica nas entrelinhas. Há quem dê conta. Outros não. O que é bom. A música ganha várias dimensões, e cada um encontrará coisas diferentes. Mas este é também um disco onde recuso as definições; e isso está de certo modo expresso nas aguarelas do livreto de António Jorge Gonçalves, que conhece muito bem a minha música e me acompanhou em Jura. Há um mapeamento e uma indefinição. Há um deslocamento no tempo, na geografia, na temperatura... Um lado aquoso.
A opção de as crónicas serem mais políticas ou interventivas foi sua? Exato. Tive esse debate comigo mesma. E oscilo um pouco entre linguagens mais poéticas ou mais racionais e políticas, mas no geral as crónicas acabam por ser mais objetivas e analíticas, o que responde também ao que sou. As crónicas, o gastar tão rápido e semanal de palavras, levaram-me a ser mais cautelosa nas canções. Não no sentido de me conter a nível político, mas ao nível formal da escrita.
Há uma preocupação mais poética? Sim, mas tem a ver com essa economia de recursos; e talvez com menos espontaneidade na escrita. As canções são mais contidas. Não são quilométricas, como nos discos anteriores. Mas há de facto um contexto angolano. Em ‘Sol de Novembro’, por exemplo, há uma citação da poesia de Viriato da Cruz, mas a canção não esquece que neste mês se comemoraram os 40 anos da independência de Angola.
A luta de Luaty Beirão não está fora do disco. A gravação coincide, aliás, com as prisões dos ativistas. Isso é lembrado no livreto... Sim, a canção ‘Langidila’ aparece como homenagem a uma mulher que admiro muito, Deolinda Rodrigues, guerrilheira angolana que morreu em combate, mas também se relaciona com as prisões. Acompanhei muito de perto as notícias e até acho que a ansiedade em relação ao disco se relativizou um pouco perante algo mais importante que estava a acontecer. Quando acabei este disco, senti-me em tranquilidade absoluta, provavelmente porque as prisões me fizeram pôr tudo em perspetiva. É irónico que 40 anos depois da independência volte a haver presos políticos. Não que não tenho havido durante estes anos... Mas este ano? Com acusações tão frágeis e tão mal sustentadas? É um fator de grande preocupação em Angola. Acho que nunca vi tanta gente preocupada e apreensiva...
Texto publicado na edição do Expresso de 28 novembro



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

o pequeno príncipe

Texto escrito por Nádia Piazza, presidente da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande e mãe de Luís Fernando, cinco anos, morto na EN 236-1 e declamado, hoje, na RTP3 - Grande Entrevista - por Catarina Furtado:



Dia 20 de junho de 2017

O pequeno príncipe


Dia 20 de junho de 2017
Seus passos mansinhos fazem-se sentir no assoalho do meu quarto como de costume. A mesma hora de sempre. 7:30 da manhã. Desperto sobressaltada a chamar por ele. “Luís, filho?!”
Olho para o corredor a sua espera, ainda não desperta. Nada.
Sonharei sempre com isso.
Foi a minha primeira noite na nossa casa desde o dia 17 de junho e a sua ausência me povoa.
São passos, brinquedos ruidosos, interjeições e interrogações e o som da sua voz de canarinho a trautear uma qualquer melodia aprendida na escola de música.
Mas é da sua mão pequena de que mais sinto falta. Chegava de mansinho no seu corpo esguio e segurava-me a mão com ternura sem eu dar por ele.
Chamava-se Luís Fernando e era feliz.
Luís do avó brasileiro, Fernando do pai e do avó português e era um menino do mundo. Português, brasileiro e italiano. A mãe das Américas, o pai de Moçambique e o menino de Portugal. São as crianças do futuro, cidadãos do mundo e filhos da sua terra.
O Luís foi mais uma vítima do incêndio do dia 17 de junho e sem ele começa a Grande Tristeza.
Não foi o único. Oito crianças sucumbiram nessa noite maldita em que o inferno fez-se sentir na terra e os Homens emudeceram-se num lugar que se chama Portugal.
Não foi criado para ser um príncipe mas sim livre. Seria médico, filósofo ou simplesmente trapalhão. Era menor que a sua idade e maior que o mundo que o aguardava. Um mundo que não o mereceu.
Com ele findou uma geração de Mendes Silva. Já não haverá sucessão. Morreu o menino, morreu um nome. Uma geração de portugueses que foi apagada dos registos.
Essa solidão que me assola a alma nunca será preenchida. Filhos são filhos. Únicos na sua individualidade. Queremo-los, nutrimo-los, investimos, fazemos opções de vida tudo a sua volta e com um sorriso nos lábios. De repente, todo um projeto de vida é-nos roubado. A promessa de uma vida. E de forma tão vil. Até na morte deveria haver dignidade.
Já não o levarei pela mão à escola primária. O seu primeiro ano. Não mais assistirei às suas audições de música. Não lhe ensinarei o quão misteriosas são as raparigas, porque sim. Não lhe saberei os dilemas da vida. Não lhe segurarei os filhos que os queria. “Muitos, mãe”. Talvez por ser filho único, talvez por se sentir um “menino sortudo”, dizia.
Já anunciava o mano, sem saber que o teria. Era vidente por vezes. Era inclusivo, empático e terno. E era sempre o Hulk. Era tanta coisa... Agora, era.
Calcada na Grande Tristeza nasceu outra mulher. Uma mulher que não sabia existir. E com ela, uma causa. A causa de toda a pessoa marcada pela dor que extravasa, incontida: a defesa da Dignidade dos que pereceram e a sua Justiça, a construção de um Futuro para os que virão e o tomar de Consciência de que não nos podemos calar!


domingo, 1 de outubro de 2017

Catalunha
















Palavras Para Julia*

Paco Ibáñez

(*poema de Juan Augustin Goytisolo, Catalão, escrito para a filha, Julia. O mesmo nome da mãe do Autor, que morreu num bombardeamento franquista.)

letra:
Tú no puedes volver atrás
porque la vida ya te empuja
como un aullido interminable,
interminable.

Te sentirás acorralada
te sentirás perdida o sola
tal vez querrás no haber nacido,
no haber nacido.

Pero tú siempre acuérdate
de lo que un día yo escribí
pensando en ti, pensando en ti
como ahora pienso.

La vida es bella ya verás
como a pesar de los pesares
tendrás amigos tendrás amor,
tendrás amigos.

Un hombre solo una mujer
así tomados de uno en uno
son como polvo no son nada,
no son nada.

Entonces siempre acuérdate
de lo que un día yo escribí
pensando en ti, pensando en ti
como ahora pienso.

Otros esperan que resistas
que les ayude tu alegría
que les ayude tu canción
entre sus canciones.

Nunca te entregues ni te apartes
junto al camino nunca digas
no puedo más y aquí me quedo,
y aquí me quedo.

Entonces siempre acuérdate
de lo que un día yo escribí
pensando en ti, pensando en ti
como ahora pienso.

La vida es bella ya verás
como a pesar de los pesares
tendrás amigos tendrás amor,
tendrás amigos.

No sé decirte nada más
pero tú debes comprender
que yo aún estoy en el camino
en el camino

Pero tú siempre acuérdate
de lo que un día yo escribí
pensando en ti, pensando en ti
como ahora pienso.

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Em actualização

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e espanholistas"


Teresa Magalhães

Leia ou releia a entrevista a Gabriel Magalhães, professor universitário, especialista em língua e cultura espanhola, escritor e cronista do diário catalão La Vanguardia



Filipe Fialho

Jornalista
Poucos portugueses conhecem Espanha como Gabriel Magalhães. E não é apenas por ser professor de língua e cultura espanhola na Universidade da Beira Interior. Nascido em Angola há 52 anos, passou boa parte da sua vida no País Basco, na Galiza e na Extremadura, tendo-se doutorado e dado aulas em Salamanca – para só depois se fixar na Covilhã. Lê e escreve com desenvoltura nos principais idiomas da Península Ibérica e é autor de dez livros que vão do ensaio à ficção. Desde 2009 que assina uma crónica regular no diário catalão La Vanguardia.
É verdade que se considera um “cristão católico”, “de esquerda” e um “agente duplo peninsular”, como já assumiu em entrevistas a jornais espanhóis? O que é ser tudo isto em simultâneo?
Tenho a sorte de ter um pai vertiginoso, que me ofereceu, em criança, uma biografia que passou por dois países: Portugal e Espanha. E não se foi mais longe porque havia o saudável travão da minha mãe. De resto, as malhas que o império tece fizeram-me nascer em Angola, onde estive apenas uns meses. Acho perigoso que um português seja só português de Portugal: corremos o risco, se tal acontecer, de ficar com uma biografia mesquinha, agachada. Um português a sério, creio, vai tomando o tamanho do mundo, ou pelo menos de uma parte do mundo. Sinto-me bem no meu país, na Península Ibérica e na Europa. Foi este o mapa que consegui construir, com a minha esposa e a minha filha. Quanto ao meu cristianismo católico, para mim ele significa uma aventura espiritual que dá uma particular energia a valores como a liberdade, o amor solidário, o interesse pela cultura, o desejo de paz, a valorização da mulher. Passei pela esquerda, é verdade, mas hoje em dia já não acredito nessa geometria, nem na da direita: gosto da política que usa o compasso do consenso e da seriedade, da transparência e da boa vontade.
Não defende o projeto de unificação política entre Portugal e Espanha por entender que o iberismo se trata de um conceito anacrónico, equivalente ao abraço de dois pugilistas exaustos. Em contrapartida, é um apologista da peninsularidade. Pode explicar melhor em que consiste esta última?
Trata-se de amar o outro ibérico. De desfrutar da riqueza cultural da nossa Península e ilhas adjacentes. Na Idade Média, havia um rei de Castela e Leão, Afonso X, que escreveu os seus poemas no português daquela altura, que era o galego-português. Camões redigiu poemas em castelhano e Torrente Ballester, um conhecido escritor espanhol, disse-me uma vez que, para ele, o autor de Os Lusíadas tinha criado os mais belos sonetos da língua de Cervantes. No fundo, a Península Ibérica pode ser uma festa para todos nós, um roteiro de felicidades, sem que isso implique um projeto político concreto. E tudo isto pode estragar-se quando deslizamos para esse neoimperialismo que, de uma forma latente, por vezes é o iberismo.
Há pouco mais de um ano, quando lançou o livro Los españoles (não editado em Portugal), mostrou-se particularmente otimista quanto à capacidade de convivência dos espanhóis, apesar das tensões permanentes. A atual crise por causa da Catalunha fê-lo mudar de opinião?
Escrevi esse livro para propor esse otimismo. Para o incentivar. Para tentar que a Espanha não regressasse aos seus demónios. Há alguns anos que se via esta tempestade a formar-
-se no horizonte. Aquilo que está a acontecer nestas últimas semanas é muito grave. Do lado “espanholista”, cada vez têm mais força os radicais. E o mesmo se tem passado do lado “catalanista”. Procedendo assim, corremos o risco de despertar os dinossáurios mais horríveis do parque jurássico da cultura espanhola. Trata-se de um desacerto, cometido por ambos os lados do conflito.
Na sua última crónica para o 
La Vanguardia, publicada antes do referendo de 1 de outubro, refere a incapacidade de diálogo entre Madrid e Barcelona. Estamos perante um problema tribal entre “espanholismo autoritário, disfarçado de constitucionalismo” e “catalanismo obsessivo e hipnótico”?
Há um certo lado negro da globalização que precisa de deitar abaixo tudo o que se lhe opõe. Começou por eliminar a União Soviética, que caiu como um castelo de cartas mal jogadas, e agora atira-
-se à Europa. Com os seus direitos sociais, a sua intensa liberdade, a sua cultura, ela é um “mau exemplo”, digamos assim. E estes tribalismos, sejam eles britânicos, “catalanistas”, “espanholistas”, funcionam como cargas explosivas que vão deitando o edifício europeu por terra. Não acontece só em Espanha. Está a dar-se em várias zonas do continente.
A crise económica e a austeridade, a par da corrupção, podem ter contribuído para o atual estado de coisas?
Sim, sem dúvida.
Já escreveu que, em Espanha, “as revoluções perdem-se quase sempre nos seus próprios labirintos”. Isso significa que a causa independentista catalã está condenada a fracassar, a exemplo do que sucedeu em 1934?
Neste momento, a causa independentista catalã é um movimento de massas, com perto de 2 milhões de pessoas num censo de 5 milhões e meio de eleitores. Não é a maioria, mas estamos perante muita gente e muito ativa. De resto, particularmente bem organizada, como é apanágio da Catalunya. Trata-
-se, pois, de uma revolta que quer ser uma revolução, funcionando com base na força de um grupo social que tenta impor-se e arrastar os restantes. Não é possível saber o que vai acontecer: qual o resultado deste desafio. Contudo, não deixa de ser arrepiante verificar que, na Europa do século XXI, criada para o diálogo, a negociação e a concórdia, ainda se joga ao póquer com o destino dos povos. E esta crítica tanto vale para o lado “catalanista” como para o “espanholista”: há muitos anos que ambos os lados se deveriam ter sentado à mesa, com boa fé, para resolver este problema.
Estarão os espanhóis ainda a pagar o preço de uma guerra civil mal enterrada e uma transição democrática mal gerida e pouco transparente?
É verdade, em boa parte, aquilo que diz embora as palavras que usa na sua pergunta sejam demasiado duras e até injustas. A Constituição de 1978 tem mérito: foi aquilo que era possível fazer naquela altura. Foi votada em referendo nacional. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de uma carta magna democrática. Mas devia ter sido atualizada: passaram quase quarenta anos e só se fizeram duas reformas, uma delas para alterar apenas duas palavras. Sabe quantas revisões sofreu a Constituição portuguesa, sendo nós um país sem diversidades nacionais internas? Sete. Sete contra duas. 
O contraste entre estes simples números mostra o erro político estrutural que foi cometido no país vizinho: o “espanholismo” encastelou-se num texto constitucional que lhe dá certas vantagens, não tendo tido a generosidade de o atualizar, apesar de todas as transformações que a vida e as culturas dos espanhóis foram sofrendo.
Tem amigos dos dois lados da barricada. Consegue manter a equidistância face a esta crise? 
Já admitiu que, por conviver com a cultura catalã, também se sente humilhado e incompreendido. A violência policial de 1 de outubro despertou em si algum sentimento soberanista?
Não é uma questão de equidistância estratégica. Trata-se de manter uma cultura do diálogo em todas as direções: de falar com todos, quando já ninguém quer falar com ninguém. Quanto às humilhações que refere, aquilo que sempre me doeu muito foi a falta de reconhecimento da cultura e da grandeza da Catalunya por parte de um setor da sociedade espanhola, que menospreza essa parte do seu próprio país. Acho isso tristíssimo, injusto, mesquinho. De resto, é algo que tem alimentado o independentismo. Quanto às cargas policiais, elas sinalizam o ponto a que se chegou, a gravidade deste momento, os monstros da história que estão a acordar de novo. Na Europa do século XXI, não é assim que os problemas se resolvem: aquilo é inaceitável como caminho para o futuro.
O conceito de “Espanha plurinacional” reentrou no debate público espanhol mas tudo indica que vários dirigentes políticos se recusam a admitir que o país é constituído por diferentes nações. Será que o futuro e a paz passam por outros protagonistas e novas elites que reconheçam as diferentes identidades e as “várias formas de se ser espanhol”, para usar novamente uma expressão sua?
Noto, em primeiro lugar, que essa ideia já está apontada na Constituição 1978, que, no seu artigo 2, fala de “nacionalidades”: não foi é desenvolvida. Sim, esse é o futuro: seguir esse caminho. Mas isso, esse horizonte, exigiria uma mudança completa de atitude por parte dos dirigentes. A Espanha é um belo projeto, uma peça de teatro maravilhosa, mas que não tem, neste momento, atores que estejam à altura de a representar.
Em 2014, escreveu Como sobreviver a Portugal? (Editorial Planeta). Admite publicar uma obra intitulada Como sobreviver a Espanha?
O livro Los españoles já era isso. Não tinha esse título, mas o sentido daquelas páginas já passava por aí: como construir um país que não seja uma nação oscilando, pendularmente, entre a sua alegria e a sua tragédia.
Ainda acredita que o nosso País é menos igualitário que Espanha? O rendimento médio de quem vive em Madrid ou em Barcelona é praticamente o dobro de qualquer habitante da Andaluzia e da Extremadura...
Quando falei em Espanha como país igualitário, referia-me à tendência para a proximidade, a convivência, mesmo para uma intimidade que um português pode sentir como excessiva e que é típica do espanhol. Por outro lado, a desigualdade em Portugal não deve ser medida apenas entre um habitante de Beja ou de Freixo de Espada à Cinta e alguém que mora no Porto ou em Lisboa embora o interior seja efetivamente desfavorecido. Essa desigualdade deve calibrar-se, também, entre aquele que fica num beco sem saída tão escuro que se vê obrigado a partir – e aquele que pode permanecer no rame-rame da pátria. Essa pátria marcada pela austera, apagada e vil tristeza de que falava Camões, mas que, no fundo, representa uma vidinha cómoda. Portugal não é um país para todos os portugueses. Pode chocar dizer isto, mas muitos dos que partiram percebem perfeitamente aquilo que estou a dizer. Nós também temos os nossos infernos. Essa é a desigualdade maior e crónica do nosso país.
“Ao lermos Camões, percebemos que Portugal é uma fantasia. Ao lermos Cervantes, percebemos que Espanha é a realidade”. Assume a autoria desta frase?
Se procurarmos a Ilha dos Amores camoniana nos mapas da Google, não a vamos encontrar. Se quisermos dar com o assento de batismo do Álvaro de Campos, também não teremos muita sorte. Portugal baseia-se muito neste encadeamento de fantasias, que depois acontecem também em coisas mais quotidianas: os azulejos, por exemplo, disfarçam as paredes. Os nomes das coisas suavizam em parte essas mesmas coisas, dando-
-lhes um halo mágico. Pelo contrário, em Espanha, Cervantes, através do Quixote, propôs àquela gente que, sem desvalorizar a grandeza da fantasia, olhassem para o lado concreto do mundo. Para o lado objetivo da realidade. Talvez a minha frase seja demasiado radical, mas creio que continua a ter um fundo de verdade."
in: revista "Visão", 21.10.2017.
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INTERNACIONAL 

Catalunha: um combate de bandeiras


O nacionalismo espanhol é muitas vezes ignorado, como se não existisse. O processo catalão tornou-o mais visível. Histórias de uma batalha pela hegemonia disfarçada de normalidade, no fim de semana que os espanholistas pretendem tomar as ruas de Barcelona
Já foi ameaçado várias vezes de morte, a última no dia em que falou com o Sol. Jordi Borrás é um fotógrafo e ilustrador catalão, neto de um artilheiro que combateu pela República, que se exilou em França e foi guerrilheiro antifranquista. Tem um livro admirável sobre o espanholismo na Catalunha, PLVS Vultra  – Una crònica gràfica de l’espanyolism a Catalunya.
Este domingo os unionistas defensores da unidade de Espanha vão sair à rua para tentar contrariar o tsunami independentista que tomou as praças e terras da Catalunha. Nas ruas vão estar partidos parlamentares como Ciudadanos e PP, mas também uma série  de grupos e agrupamentos políticos de extrema-direita como Vox, Alternativa Para a Catalunha, Movimento Social Republicano e muitos grupos neonazis. São, aliás, os mais extremistas destes que têm feito, quase sozinhos, a defesa de Espanha una e indivisível nas ruas da Catalunha. Em 3 de outubro, dia de greve geral, quando mais de 800 000 catalães gritavam «as ruas serão sempre nossas», 500 neonazis contra-atacavam à porta de um quartel da Guarda Civil. 
Mariano Rajoy, Filipe VI e o líder dos Ciudadanos falam de uma maioria silenciosa de catalães que quer ser espanhola para sempre, mas que está fechada em casa. Nem as sondagens, nem as votações dão essa certeza: há 26,4% de pessoas que votaram nos partidos assumidamente espanholistas – PP e Ciudadanos –, nas eleições catalãs de 2015; contra 48% de partidos independentistas, como a coligação Junts per el Si e a CUP. No meio ficaram os 9% do ramo catalão do Podemos e os 12,72% dos federalistas do Partido Socialista da Catalunha. 
O livro de Jordi Borrás pretende mostrar por imagens e por textos quem são os 20% que as sondagens dizem que se opõem a um referendo e como este conflito entre o nacionalismo espanholista e os catalães tem raízes não só no sangue como até nas pedras.
Quando passamos pela cidade velha, Jordi fala de uma zona onde, depois dos Borbouns terem invadido Barcelona, obrigaram os seus habitantes a destruir as suas casas pedra à pedra, «para mostrar quem mandava». O livro não é sobre o passado, mas sobre o presente que se joga neste momento nas ruas, mas mostra que em muitos aspetos da sociedade e história catalãs essa guerra continua presente: quando a língua catalã esteve proibida, quando exibir a seynera, a bandeira catalã, era crime. E até nas pequenas grandes coisas, como quando o Futebol Club de Barcelona foi fundado em 1899, seguiu-se rapidamente como resposta a Sociedade Española de Futebol, em 1900, que oito anos depois passou a Clube Desportivo Español, ao qual o rei Afonso XII concede o qualificativo de «Real». No prólogo deste livro, Matthew Tree escreve o seu testemunho: Em 1978, três anos depois da morte de Franco, passou seis meses num país que até há pouco tempo não sabia que existia, a aprender uma língua que até então pensava que era uma espécie de dialeto. Catalunha não tinha recuperado governo próprio e a Guarda Civil comportava-se como se a sociedade catalã fosse toda um ninho de traidores. «Era uma época em que, num bar, um homem disparou contra um televisor, porque pela primeira vez em 39 anos, se podia escutar um político a falar catalão». As ruas estavam ainda ocupadas pelo medo. Os filhos dos homens mais ricos e poderosos do antigo regime circulavam armados nos seus carros e com brilhantina no cabelo, fazendo ondear dos carros as bandeiras espanholas. Na praça central de Vic encontrava-se a sede da fascista Fuerza Nueva, onde estava pendurada uma gigantesca bandeira espanhola. Como por milagre a extrema-direita desapareceu por baixo das pedrinhas da calçada. Segundo Borrás, não foi assim. «Vou dar um dado para que se perceba o que aconteceu com a extrema-direita, um dado de um estudo do Centro de Investigações Sociológicas de 2011, isto é um estudo de um organismo do Estado. Mais de 80% das pessoas que se considera de extrema-direita votou no Partido Popular em 2011. Fizeram o chamado voto útil. O que nem sequer é de admirar muito, sabendo que o PP descende da Aliança Popular, que reunia na sua direção sete ministros do ditador Franco», conta.
Em Portugal, sublinha o fotógrafo, «depois da revolução alguém passou por um tribunal, aqui nunca ninguém foi incomodado com isso». Aliás, recentemente, o juiz Baltazar Garzón quando tentou investigar os crimes do franquismo foi corrido da Audiência Nacional. Mas isso não quer dizer que as coisas não tenham mudado nessa galáxia política. «Até meados de 80, a extrema-direita era muito passadista olhava só para o passado e Franco e não tinha conseguido renovar-se para a nova situação. A Aliança Popular foi muito hábil, com Fraga, conseguiu converter-se no voto útil desse setor. Quem não o aceitou organizou-se numa miríade de organizações, dividiram-se mais do que os trotskistas». Muita extrema-direita «usou a democracia para continuar os seus negócios. Pensam o mesmo, mas atuam útil», garante Jordi Borrás. Várias vezes há tentativas de autonomizar esse setor, que não se reconhece no PP, a última tentativa foi VOX, que teve quase 250 mil votos nas europeias e teve a uma unha negra de entrar em Estrasburgo. Não é fascista, mas plasma da Frente Nacional. «Outro partido a nível catalão que aparece com este propósito é Plataforma para a Catalunha, que é um tentativa de conseguir votos para do catalanismo, mas sendo espanholista. Chega a eleger 60 eleitos locais em 2011, com um discurso islamofóbico». Mas com a crise económica e a erupção do Podemos, por um lado, e Ciudadanos, que nascem na Catalunha, por outro, fazem-na esvaziar. «Aliás na Catalunha, os Ciudadanos surgem como um partido monotemático, ponta de lança do anticatalanismo e pela unidade de Espanha, que atrai, dada a sua novidade, o voto espanholista de direita de esquerda». 
São esses setores todos que vão estar na rua no domingo, quando se multiplicam no resto de Espanha manifestações nacionalistas em reação ao processo da Catalunha. «Estes setores só têm uma coisa a uni-los que é a unidade de Espanha». Até agora, não conseguiram opor-se nas ruas aos independentistas, se a campanha da Assembleia Nacional Catalã (ANC) já levou para as ruas mais de dois milhões de pessoas em 2012, a maior marcha espanholista, no dia de Espanha, em 12 de outubro de 2010, eles não ultrapassaram mais de 30 mil pessoas. Barulhentos de mais para serem silenciosos, e poucos para serem uma maioria. Vamos ver quantos irão à manifestação da Sociedad Civil Catalana (SCC), uma espécie de némesis unionista e espanholista da Assembleia Nacional Catalã.  
in: jornal "Sol"
..,....
Se na Catalunha dá para o torto, abre-se uma Caixa de Pandora que pode levar décadas a fechar, com danos consideráveis.

Vamos começar pelo princípio: a questão da autodeterminação dos povos. Sem espinhas, é um conceito teórico muitíssimo louvável. Todas as pessoas deveriam ter o direito a escolher a que nação pertencem, mais ainda quando se distinguem dos demais por razões de língua, características culturais e ainda somam a isso a possibilidade da viabilização económico-política de um estado independente. Nós, povos ex-colonialistas, impregnados das culpas dos nossos antepassados, tendemos logo a ser a favor da rebeldia, seja ela justificada ou não.
Mas há também o outro lado da história: no seu mais recente livro Michael Walzer usa exemplos do passado recente (a Índia, a Argélia e Israel – independentemente do mérito da causa de cada um, que é evidentemente diferente do de hoje) para demonstrar que os “movimentos de libertação” não são expressão da vontade popular generalizada, que está mais preocupada com a sua vidinha, mas de uma elite separatista, que constrói uma nova narrativa e tudo faz para convencer as populações de que as suas intenções e a forma como vêm a história corresponde a uma verdade que o poder instituído anda empenhado em esconder.
Na prática, os caminhos rumo à independência são sinuosos e armadilhados. Joga-se numa arena perigosa em que vale quase tudo pela causa da independência. Aproveitam-se oportunidades, espera-se por momentos da fraqueza do adversário. É um jogo sujo, regra geral, de parte a parte. Gera violência. Em casos mais extremos gera guerra civil. Em casos ainda mais extremos gera limpeza étnica. A nível regional gera instabilidade. Em muitos casos tem efeito de contágio, estremecendo outros separatismos mais ou menos adormecidos. Claro, pensamos todos, que nada disso vai acontecer na Catalunha. Afinal, estamos no século XXI, estamos na Europa. Mas deixem-me lembrar-vos duas coisas: não só os dois lados da barricada, leia-se Barcelona e Madrid, têm chegado a extremos que nunca pensámos possíveis, como os últimos anos têm demonstrado que nacionalismos, quer emotivos, quer ideológicos, quer mais centristas, quer mais extremados, não são uma relíquia do século XIX. Estão bem e recomendam-se. Assim, a história não se repete, mas rima. Os nacionalismos regressam, mas agora num contexto muito diferente do passado. E nós, na Europa, estamos mal preparados para ele.
Como é que se chegou aqui? O separatismo catalão tem uma longa linhagem. O dia nacional da região, o 11 de setembro, remete para acontecimentos de 1714, quando Barcelona perdeu a sua autonomia para Espanha, na guerra da sucessão. No século XX, os costumes e a língua foram espezinhados pela sangrenta Guerra Civil e pela especial aspereza com que Franco tentou dissolver a cultura catalã. A memória coletiva destes eventos passou de geração em geração, como reclamam os testemunhos vindos de Barcelona e publicados em vários jornais internacionais desde domingo passado. Sentimento parcialmente aplacado, ironicamente, pela Constituição de 1978, que consagrou autonomias regionais no contexto da “indissociável unidade da nação espanhola”. Mas, ainda que a Catalunha tenha aceite o texto fundador da democracia, a relação com Madrid caracterizou-se por uma certa ambiguidade. A Generalitat sempre procurou avançar rumo a uma maior autonomia e Madrid sempre tentou reter os seus poderes. Mas o governo regional foi presidido por moderados. Primeiro por uma coligação das direitas, CiU (1978-2003) e depois pelo seu equivalente na esquerda, uma coligação liderada pelo PSC, uma espécie de PSOE da Catalunha (2002-2010). Os separatistas duros passaram a estar nas margens, nomeadamente na tradição republicana do ERC, que tentou um golpe independentista pouco antes da guerra civil, e na tradição das diversas fações anarcossindicalistas.
Mas como se sabe, as ideias minoritárias adormecem, mas não morrem. E o separatismo catalão acabou por acordar com a ajuda de três elementos: (1) a crise económica de 2008, que criou um sentimento de injustiça entre a população a ver os lucros de Barcelona (cerca de 20 por cento do PIB) a serem redistribuídos pelas províncias mais pobres; (2) o processo judicial movido pelo Partido Papular de Mariano Rajoy, de 2006 a 2010, que resultou na retirada pelo Tribunal Constitucional à Catalunha do estatuto de “nação” (ambíguo) aprovado em referendo regional legal. O TC alegou razões de inconstitucionalidade e o PP questões de equilíbrio entre unitaristas e regionalistas; e (3) a mudança política na composição do governo regional, que passou a ser constituído pela coligação minoritária “Juntos pelo Sim” (à independência) que mistura, desde 2015, o CDC de Carles Puigdemont, um partido de direita liberal que se tornou independentista em resultado das políticas centrais – apesar de algumas dissidências; a ERC o partido republicano independentista dos anos 1930; e a CUP um movimento de esquerda separatista composto por pequenas correntes tendencialmente radicais. Juntos têm a maioria absoluta na Generalitat, ainda que a única ideia comum seja a independência do território autónomo.
Esta mudança passou despercebida (quem é que segue a política interna da Catalunha?) mas é em muito semelhante ao crescimento dos diversos populismos na Europa (velhos nacionalismos, novos tempos). Só que este tem uma característica diferente dos outros. O separatismo nacionalista é sempre um assunto sensível, emotivo e mobilizador de paixões. O que, regra geral, é um cocktail Molotov em política.
Os acontecimentos que se têm vindo a desenrolar desde domingo são o culminar de todas estas tendências: uma memória coletiva dolorosa, trazida à superfície por acontecimentos recentes, guiada por uma coligação que chegou ao parlamento regional pelo voto de protesto às políticas de Madrid conjugada com uma gestão mais que danosa do dossier catalão por parte do governo central (incluindo da Coroa). Barcelona aproveitou a fraqueza do chefe de Governo, Mariano Rajoy, que precisou de duas eleições gerais e quase um ano para formar um governo minoritário, e montou-lhe uma armadinha.
É neste contexto que se anunciou o referendo. Madrid tinha a lei do seu lado. Proibiu a sua realização em sede de justiça, por razões de inconstitucionalidade, mas a Generalitat foi mais arguta: desobedeceu, e arrastou para essa desobediência mais de dois milhões de cidadãos. Nada na consulta pública foi legal: caixas de plástico a fazer de urnas, locais de voto aleatórios, cadernos eleitorais cibernéticos, de cariz, no mínimo, duvidoso, uma afluência às urnas de apenas 44 por cento dos eleitores inscritos, e a forte suspeita de que quem se absteve, fê-lo por desejar a Espanha unida, tal como está. Parece-me que estes argumentos teriam sido suficientes para que Rajoy, apoiado pelo Filipe VI, declarasse a ilegalidade e ilegitimidade dos acontecimentos de 1 de outubro e seguisse em frente. Como aliás já aconteceu no passado.
Mas Madrid perdeu a cabeça, e quando se perde a cabeça, já se sabe, perde-se a razão. Enviou 12.000 guardas civis que investiram contra a população. Nesta guerra de contrainformação sabemos que houve excessos da polícia nacional contra a população, choro de mossos d’esquadra e, ao que consta, quase 900 feridos (dos quais não sabemos a gravidade). O que fica do dia 1 de outubro é a imagem do povo catalão a suportar estoicamente a intervenção policial em nome da independência. As câmaras de televisão de todo o mundo captaram imagens suficientes de violência desproporcional para deixar a imagem internacional de Madrid pelas ruas da amargura e para revoltar milhares de catalães que até aí estavam longe de querer separar-se da Espanha. Rajoy, diz-se, “é o maior fazedor de independentistas”. E é. Fez mais pela independência da Catalunha em 24 horas do que todos os separatistas juntos. Em democracia, quando se tem a lei do nosso lado e pelo menos parte da legitimidade, o uso da força contra a população (que possivelmente acredita verdadeiramente na bondade da ideia da separação) tem duas consequências: perde-se a razão imposta pela moralidade do estado de direito e perde-se o apoio da população visada. Os independentistas ganharam uma dupla batalha: abriram uma brecha em Espanha (e na Europa) muito difícil de fechar e ganharam o apoio da uma parte importante da “opinião pública internacional”. Se o conceito popularizado por Jürgen Habermas a propósito da guerra do Iraque não quer dizer nada muito concreto, o efeito prático é bem conhecido.
E agora? Há três cenários possíveis. Uma crescente tensão entre as partes com um desfecho que é difícil de prever. Em política há poucas coisas tão perigosas como o nacionalismo separatista pelas razões descritas acima, mas que nunca é demais lembrar: violência interna, instabilidade regional, efeito dominó. E a Europa está cheia de separatistas que podem ver no braço de ferro catalão uma inspiração para avançar com as suas próprias causas.
O segundo cenário é os dois lados da contenda espanhola ultrapassarem os últimos dias e se sentem a negociar. As probabilidades de diálogo no curto prazo são escassas. Mas nunca, pela gravidade da situação, podem ser postas de lado. A bem da Catalunha, da Espanha e da Europa.
O que nos leva ao terceiro cenário, o de um árbitro externo. As crises sucessivas da União quase nos fazem esquecer qual foi o objetivo principal da sua criação, mesmo quando era só para o carvão e o aço: a de evitar que a guerra voltasse ao continente. E por mais deméritos que a UE possa ter (depende do ponto de vista de cada um), este objetivo tem sido comprido, salvo nos Balcãs, que eram Europa, mas não União Europeia. Eu diria que chegámos a um momento crítico em que Bruxelas volta a ter uma missão pacificadora. Assobiar para o lado e dizer que é um assunto interno espanhol é um tipo de comportamento que foi experimentado vezes que cheguem para se saber que não resulta. Esperemos, pois, que a União encontre forma de mediar o conflito, não pela sua internacionalização (não é a fazer o jogo da Catalunha que se chega lá) mas porque a paz no continente tem de ser um dos principais valores comuns aos estados-membros. Porque se na Catalunha dá para o torto, abre-se uma Caixa de Pandora que pode levar décadas a fechar, e com possíveis danos consideráveis."
in: jornal "Observador"


















Catalunha é um problema nosso", diz Alegre
02 DE OUTUBRO DE 2017  14:4
João Pedro Henriques
Histórico do PS afirma-se ao DN "indignado com a repressão" levada a cabo pelas autoridades espanholas sobre o referendo independentista catalão.
"Não pode haver dois pesos e duas medidas. Não podemos criticar a Polónia, a Hungria e a Turquia e assobiar para o lado e dizer que o problema da Catalunha é um problema interno de Espanha."
Em declarações ao DN, Manuel Alegre afirmou que a forma como as autoridades de Madrid reprimiram na Catalunha fazem com que "a partir deste momento" a questão catalã seja "um problema da democracia e da liberdade". E mais: é "um problema da Europa e um problema nosso".
Afirmando que "pessoalmente" é "solidário" - como afirma que Mário Soares o seria - "com o ato da Catalunha de dispor do seu próprio futuro" por "meios democráticos e pacíficos", Manuel Alegre admite, porém ter "dúvidas" sobre "os métodos utilizados pelos dirigentes catalães".
Só que - acrescentou - "isso não invalida o direito de o povo se pronunciar". E não lhe "anula" a sua "repugnância com os métodos utilizados pelo poder central de Espanha". Houve "repressão" e isso é "impróprio de um país democrático e europeu".










in: jornal "DN"


"O dia em que Espanha perdeu a Catalunha


Puigdemont abre a porta à declaração unilateral de independência já nos próximos dias. “Votámos, votámos”, é o grito mais ouvido agora entre os catalães. “Independência, independência”, repetem. Rajoy não está a ouvir.