quinta-feira, 22 de junho de 2017

crónica_dos olhos que o Fogo viram...


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Não disse à minha mãe que estou sempre quase a chorar

Quando domingo de manhã muito cedo vim do Porto para Pedrógão Grande, não avisei a minha mãe, nem o meu pai, não lhes disse que vim a voar. Fiquei, claro, com remorsos, mas só ontem lhe liguei, a meio da manhã, assim que acordei. Quando ela atendeu, e atendeu logo, quase sem deixar tocar, em vez de me chamar como me chama sempre, num querido diminutivo, ela só disse, e imediatamente, numa voz que vi logo que já lhe vinha a fugir, "ó meu filho, ó...", e eu engasguei--me logo, não consegui dizer nada, estava despregado a chorar. Mas chorei como se me mordesse, chorei para dentro, sem a deixar ver, esganado, até ouvi os meus dentes apertados a ranger.

Mas ela já sabia, conhece-me há 48 anos, sabia que eu tinha que vir, e já me tinha lido, a mim e à Helena, os nossos textos vinham ontem no JN a abrir - "sim, mãe, ela está bem, mãe, não, mãe, ela não veio, ela está aí, está tudo bem, mãe, a sério, a sério que está tudo bem, mãe, então".

Mas ela sabe: aqui não há nada que esteja bem, aqui passou o tornado do diabo, uns viram um tornado, outros viram um tufão, há até quem fale, são os antigos, na mão vermelha do diabo, uma mão direita e desnatural que chegou, apontou e depois ceifou, aleatória, descomunal.

Nunca ando sozinho, mãe, não te preocupes, disse eu ao telefone, ando com o Rui, é o Rui Oliveira, ele faz as fotos, tu já as viste, mãe, o nome dele aparece pequenino (mas as fotos dele são grandes, não são?), ele é do Porto, ele orienta-se tão bem (eu não, tu sabes, tenho outras coisas mas não tenho orientação), ele leva-nos sempre aonde precisamos de chegar, ele conduz bem, com ele estou seguro, mãe, sim, tomamos conta um do outro, tem que ser assim.

Mas estão cá mais colegas, mãe, ontem chegou a Sara e a Filomena e o Carlos e o Artur, e já cá estiveram a Joana, a Carla, a Carla é tão boa, mãe, que jornalista, e ainda o André, eles se calhar ainda vão voltar, tem que ser, ainda há aqui tanto que fazer, talvez quarta ou então quinta, devo voltar na quinta, não sei ainda, ninguém sabe lá no jornal, tu sabes que temos que estar aqui.

O telefonema foi curtinho, isso é anormal, muitas vezes falamos meias horas, é sempre à noite, quando eu chego tarde para jantar, quando chego cedo ela espanta--se, mas ontem não, não conseguia, não lhe disse mais nada, não lhe disse, claro que não, que ando aqui sempre quase a chorar, mas não é por mim, mãe, eu estou bem, é por eles, mãe, ninguém merece morrer assim, mãe, tantas pessoas que morreram a arder."

José Miguel Gaspar
20 Junho 2017 às 13:39
in: Jornal de Notícias

terça-feira, 13 de junho de 2017

homenagem_rui pato/adriano correia de oliveira


em sete anos
sete discos
e 41 temas
Rui Pato 
acompanhou
à viola
Adriano Correia de Oliveira.

oiça os EP,s e LP,s

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Armando Silva Carvalho

Armando Silva Carvalho (1938-2017). O homem que sabia a mar

O poeta Armando Silva Carvalho morreu ontem aos 79 anos. É lembrado neste testemunho pelo amigo de longa data, José Manuel de Vasconcelos, conhecedor profunda da sua obra marcada por uma rejeição constante do supérfluo, das modas e bordados poéticos.
  
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    Falar do Armando Silva Carvalho é inevitavelmente recordar grande parte da minha própria vida nestes últimos trinta e cinco anos, da qual ele, de maneiras várias, esteve sempre próximo. Lembrá-lo neste dia da sua morte física é convocar interiormente alguns amigos mais chegados, situações diversas, viagens, livros, escritores, e sempre esse imenso mar de Peniche, de um esplendor inquieto como ele próprio, que era a sua principal paisagem física e mental, junto do qual tantas vezes demos os nossos passeios e desenrolámos conversas nunca terminadas sobre as malformações do reino lusitano, a exiguidade de algumas das suas personagens e os travos agridoces da criação literária.
    e desenrolámos conversas nunca terminadas sobre as malformações do reino lusitano, a exiguidade de algumas das suas personagens e os travos agridoces da criação literária.
    Tal como Cesário Verde, uma das suas primeiras referências, andou durante muito tempo a medir as distâncias poéticas entre a cidade e o campo, quando trocou a sua região natal e o aperto de uma infância e adolescência mal suportadas, pela capital, sombria e, à sua maneira, também provinciana, na qual estudou direito, bastante a contragosto, fez jornalismo e trabalhou em publicidade como forma de ganha-pão.
    Olho Marinho, a aldeia onde nasceu,  em 1938, tem um nome curioso se pensarmos que a sua poesia é um permanente exercício do olhar, do olhar crítico, de ironia amarga, ressentida, por vezes provocatória, e que, por outro lado, o mar está presente desde cedo no que escreveu (poesia e prosa) e foi à sombra dele que viveu os seus últimos anos, virando costas às burguesices lisboetas, que cada vez mais deplorava, e regressando aos seus cenários de origem, apenas lamentando a distância a que deixou alguns amigos que muito estimava.
    No mar via sobretudo a vastidão e a força incontida, algo que se identificava com a própria “vulcanologia” poética, lamentando certa escrita enxugada de alguns confrades, alimento comum de um povo que “não soube ler na sua própria língua”. O sentimento ressentido ou o ressentimento sentido deste poeta que se qualificou sempre de acidental é uma tonalidade afectiva que acompanha toda a sua obra, sempre firmemente refractária a enxúndias poéticas e à goma elástica de certos versos que por vezes nos assolam. O mar de que falava adquiriu com o tempo uma dimensão metafísica, mesmo religiosa, sugerindo o poderoso ilimitado que nos transcende. A poesia de Armando Silva Carvalho foi sempre uma rejeição do supérfluo, das modas e bordados poéticos com seus rendilhados enfunados e pletóricos. Já em jovem escrevia: “Deitado no meu corpo/disfarço o mais que posso/o artifício que encanta”, dando-nos um vislumbre da importância que as coisas em geral têm na nossa vida, particularmente a coisa-corpo que nos arrasta pelo mundo, mesmo o mais espiritual, gerando por vezes “funestas alquimias” que nos são decisivas.
    Nesse tempo de florescência incontida, cultivava já a magreza das palavras, à sombra em parte da poesia 61 e dos poetas seus amigos que as exercitavam na corda bamba da expressão essencial, e sobretudo de João Cabral de Melo Neto, outra grande referência, poeta da secura e da dureza. Mais tarde, os seus versos ganharam amplitude horizontal, tornaram-se mais extensos, encheram-se de gritos surdos, alguns com a densidade das preces. Nos poemas escritos nos últimos anos da sua vida, quase confundia o mar da poesia, com a sombra do outro mar, o que lhe enegrecia os dias e o deixava face ao inelutável “peso das fronteiras”, sugestivo título de um dos seus primeiros livros.
    Se é verdade que ao longo de uma obra extensa como a sua, podemos encontrar momentos de diferenciação, de alguma clivagem, em livros como “Alexandre Bissexto” e, sobretudo, em “Canis Dei”, acentuando preocupações que, à falta de melhor, podemos classificar como espirituais, a poesia de Armando Silva Carvalho manteve sempre o registo da distanciação eloquente, traduzida por uma acidez enegrecida e densa, por vezes violenta, que frequentemente se transforma em auto-ironia, sem qualquer comiseração.
    Os seus últimos poemas falam sobretudo da consciência dorida da inevitabilidade do envelhecimento: “A verdade é só uma, o que foste ontem/já não te conhece (…) A idade abafou todo o prodígio,/ palmo a palmo, vou medindo o esplendor em dissolução. Palavra por palavra”. Há também aqui algo de premonitório, como se alguns poemas deste livro fossem o primeiro encontro com um tempo final que já começava a ser nítido, espécie de compte rendu antecipado do que sabia inevitavelmente viria a acontecer.
    A velhice e a decadência física que geralmente a acompanha não tem sido tema de eleição da poesia portuguesa, apesar de algumas obras fundamentais que dele tratam, como “Limite de Idade” de Vitorino Nemésio e “Terceira Idade” de Mário Dionísio. “A Sombra do Mar”, seu último livro publicado, é um notável exercício do direito de cada um contemplar o seu próprio fim. O seu tom não é desvalorizador, como no poeta açoreano, jocoso e auto-irónico, nem tem a ponderação discursiva do autor de “Solicitações e Emboscadas”. Aqui o sentimento é o de uma angústia de idades sobrepostas, de aceitação estóica, de uma corajosa mas lamentativa confrontação, sabendo-se que a sombra vai progredir sempre do mesmo modo, tal como o rugido permanente e inevitável do mar que se contempla em recolhimento, com essa espécie de ataraxia que o olhar provoca em resultado do sentimento de identificação.
    O mar deste último livro, que cintila nos textos as suas diversas acepções e que é sempre metáfora do que é essencial para o homem (o amor, a morte, o tempo, o júbilo, o sonho, Deus), é também o mar concreto de uma longa vivência nas suas margens. O poeta do mar de Peniche escrevia muitas vezes os seus poemas junto às escarpas, dentro do seu carro, não já o nervoso e impulsivo “amante japonês” de outros tempos, mas o abrigo mais caseiro de um tempo contemplativo e de grandes (e pequenos) balanços, já longe, felizmente, desse outro mar que foi horizonte da fortaleza, paisagem de cativeiro árduo e persistente, que lemos em “Os Ovos de Oiro”, “onde os peixes de atiram/ contra os barcos/ e as grutas dos rochedos/ nada acoitam.”
    Sempre o mar, de forma mais intensa e directa ou apenas discretamente, assombrou o imaginário de Armando Silva Carvalho. A sua voz persistiu, fez-se ouvir, clamando das profundezas, a invadir um quotidiano discreto, de hábitos trémulos, fragilizados por uma aprendizagem do nada ou do muito pouco, próximo da secura monástica. Os últimos tempos foram de solidão negociada com a morte, ouvia dela a voz monocórdica, por vezes exaltada, mas sempre intempestiva, como a dos loucos. 
    in: jornal 'SOL', 2.jun.2017