terça-feira, 25 de abril de 2017

guerra colonial_crónica


Crónica hoje publicada no semanário "Expresso", sobre os treze anos da guerra colonial, em três frentes e que,
em traços de dor, nos trás os rostos sofridos de mães que perderam os seus filhos.
Neste dia, que perfaz quarenta e três anos, após o golpe militar/revolução de abril/74, em Portugal, a memória
é um direito.


"Mãe, a guerra

Abril de 1974 pôs fim a uma guerra colonial devastadora da juventude portuguesa e geradora de oceanos de dor em milhares de mães destroçadas pela morte dos filhos

Viram-nos partir. Por entre as lágrimas roubadas a um coração despedaçado, cravaram na memória o último sorrido brotado no último instante do último adeus. E eles foram. Olhavam o longe e procuravam sentir o bafo daqueles filhos paridos com dor, com amor, com a esperança de os verem serem homens, pais capazes de lhes darem os netos ansiados.
Viram-nos partir. Por entre a desolação do tempo consumido nas sombras de dias intermináveis, esperavam notícias. Às vezes apenas uma ou duas frases. “Mãe, está tudo bem.” “Mãe, hoje vou sair para uma missão.” E, afinal, nada estava bem. E, afinal, uma bomba, uma mina perdida, uma bala desgarrada cobravam-lhes o mundo. Cobravam-lhes a vida.
Longe, as mães, esperavam. Às vezes chegavam cartas. Muitas não sabiam lê-las. Esperavam pela noite. Aguardavam a chegada de uma vizinha, de um outro filho. Só então, naquele matraquear de palavras construídas a partir da escrita vinda de um além indefinido, percebiam a dimensão da tragédia.
LUCILIA MONTEIRO
Viram-nos partir. Nunca os viram regressar. Nunca a dor as abandonou. Nunca aqueles corações voltaram a experimentar a paz. Nunca aqueles rostos reconstruíram a memória dos dias felizes. Nunca aquelas lágrimas deixaram de lhes escorrer pelo rosto como punhais afiados. A dor é uma peçonha agarrada ao corpo. E o corpo chora. E o corpo daquelas mulheres vagueia no presente como um fantasma ancorado na memória de um passado cruel.
São mães cujos filhos morreram em África, numa guerra colonial prolongada para lá de toda a racionalidade. Tudo começou a ganhar uma outra dimensão quando no dia 4 de fevereiro de 1961 o MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola desencadeia um ataque à cadeia de Luanda. Morrem sete polícias e tudo muda. No dia 15 de março do mesmo ano, um outro passo é dado pela UPA - União das Populações de Angola. A norte, numa área que abrangia os distritos do Zaire, Uíje e Quanza-Norte, acontece um ataque tribal e daí nasce um massacre de populações brancas e trabalhadores negros originários de outras regiões.
Foram treze anos de guerra, sistematicamente condenada pela ONU e distribuída por três frentes: Angola, Guiné (a partir de 1963) e Moçambique (a partir de 1964). O 25 de Abril de 1974 coloca um ponto final no sofrimento de uma juventude portuguesa cujo futuro aparecia sempre condicionado pelo terror da partida para África. Alguns não compareciam às inspeções, outros desertavam. Muitos deles por rejeitarem a participação num conflito que condenavam. Do qual discordavam, numa altura em que praticamente toda a Europa colonial já se desfizera dos seus impérios. A maioria, porém, integrava os contingentes gerais.
LUCILIA MONTEIRO
Partiam. Não sabiam se regressavam. Milhares morreram na vastidão de África. Muitos outros milhares ficaram feridos. Alguns com mazelas físicas ou psicológicas para o resto da vida. Deles se fala com frequência. E na valorização desse sofrimento é demasiadas vezes esquecido um outro sofrimento. O das mães que choram em silêncio.
Fomos procurá-las. Encontrámos mulheres como Delta Monteiro, 90 anos, de Valpaços. De três filhos, só o mais velho foi para a guerra. Morreu no dia 25 de maio de 1973. Faltavam-lhe apenas dois meses para receber a guia de marcha e regressar ao convívio com aquela mãe que sempre viveu no campo, a vender batatas e hortaliças.
“Quando soube que o Carlos tinha de ir para a guerra, foi como uma facada que me deram”, diz Delta. Não sabe explicar, mas um pressentimento fê-la saber que nunca mais aquele filho regressaria com vida. A memória daquela mãe destroçada ainda hoje se fixa “naqueles olhos tão lindos, castanhos, brilhantes e grandes”. Nunca mais teve direito a sentir a força daqueles braços que lhe rodeavam o corpo e a apertavam com força mas também com doçura.
Todos as semanas, Carlos enviava um aerograma à mãe. O último foi expedido no exato dia em que morreu. Dizia apenas: “Vou ser rápido. Está a chegar a avioneta e eu não quero deixar a mãe sem notícias”. Aquela mãe jamais teria querido saber aquela notícia.
Delta Moreira, 90 anos
Delta Moreira, 90 anos
LUCILIA MONTEIRO
O general Spínola, ou alguém por ele, dirigiu uma carta a Delta Moreira. Para lhe dizer que o filho era um herói e morrera pela pátria. A carta funcionou como salvo conduto para o segundo filho não ir para a guerra. Mas aquela mãe não queria uma carta do general Spínola. Não queria um herói. Só queria ter em casa o José Carlos.
Tal como Helena Cardoso, 94 anos, que foi padeira em Rio Tinto, Gondomar. Sabia de um saber nunca ensinado que “a guerra era a morte”. Mãe de cinco filhos, sentiu-se como que esventrada ao ver o mais velho, José Moreira Regadas, partir para Angola. Esperava notícias, mas as notícias não chegavam. O primeiro aerograma demorou uma eternidade até aterrar em Rio Tinto. Helena chorava. Chorava muito por nada saber de José. Até que um dia lhe chega uma carta. Dizem-lhe que José fora ferido e iria regressar. O José que regressou não era o mesmo José que partira. Atingido por uma mina, perdera toda a autonomia. Não se mexia. “Tempos difíceis, pesados como chumbo”, recorda Helena.
Cada história é um novo poço de tristeza. Às vezes são lutos eternos, os vividos por mães como Rosa Jado, 99 anos. Falar do filho Domingos é, ainda hoje, uma impossibilidade. Domingos foi mobilizado para Angola. Regressou em muito mau estado. Acabou por morrer. Rosa começa por aceitar conversar. Só que, para Rosa, a dor é tamanha: verbaliza a palavra “Angola” e nada mais a retira do pranto em que esmorece. Não há mais nenhuma palavra. Porque nenhuma palavra consegue descrever o sofrimento destas mulheres.
Virgínia Vitorino, 94 anos
Virgínia Vitorino, 94 anos
LUCILIA MONTEIRO
Entre 1961 e 1974, a ditadura portuguesa fez sangrar o país em três frentes de combate colonial. Segundo números oficiais, quando se chega a 1974, ano em que foram mobilizados 150 mil efetivos militares para o esforço de guerra em África, entre 7% a 10% da população portuguesa, e mais de 90% da juventude masculina, tinha sido de alguma forma envolvida na guerra.
Em 13 anos morreram mais de 8 mil soldados e ficaram feridos ou incapacitados mais de 100 mil portugueses. Os danos psicológicos são difíceis de contabilizar, mas alguns especialistas da área da psiquiatria apontam para mais de 140 mil portugueses psicologicamente afetados pela guerra.
Dados do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) permitem concluir que morreram 8.831 militares portugueses, dos quais 4.027 em combate. A maioria das mortes ocorreu em Angola (3 455). Seguem-se Moçambique (3 136) e a Guiné (2 240).
Aqueles números, ao referirem apenas os militares mortos, estão longe de traduzir a realidade, uma vez que não incluem as vítimas mortais de civis brancos e negros, tanto entre os guerrilheiros dos movimentos de libertação como entre a população civil.
LUCILIA MONTEIRO
Estima-se que mais de mil civis portugueses terão sido mortos, mais de metade deles nos massacres perpetrados pela UPA. Do lado dos africanos, as estimativas mais conservadoras apontam para um mínimo de cem mil mortos.
Milhares de mães devastadas. Delta Moreira teve direito a uma pensão pela morte de José Carlos. Morreu pela pátria, disseram-lhe. Delta nunca quis o dinheiro da pátria. Há uma continuada indignação quando diz “aquele dinheiro parece que me sangra nas mãos”.
Milhares e milhares de mães a chorarem. Milhares e milhares de mães a ouvirem o eco das palavras imaginadas a martelarem-lhes a cabeça. A tortura da frase nunca ouvida, mas interiorizada: “Mãe, a guerra...”."

in: jornal "Expresso"

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Gisela João_Nua


Entrevista:

"Gisela João: “A cantar é quando as pessoas me conhecem tal como sou”


  •    
    Aos oito anos já sabia cozinhar uma feijoada e um cozido, e foi enquanto lavava a loiça que ouviu ecoar na rádio a voz de Amália Rodrigues a cantar “Que Deus me Perdoe”. Nos versos «se a minha alma fechada/ se pudesse mostrar/ e o que eu sofro calada/ se pudesse contar/ toda a gente veria/ quanto sou desgraçada/ quanto finjo alegria/ quanto choro a cantar...» Gisela João encontrou-se a si, a criança que queria brincar, mas que ao invés tinha de tomar conta dos seis irmãos mais novos e da casa.
    Uma cassete de Amália passou então a ser a sua grande companheira e os poucos momentos livres eram passados no quarto, a cantar, num mundo só da jovem de Barcelos e que só ultrapassou as quatro paredes do quarto para participar numa espécie de Mini-Chuva de Estrelas de Barcelos, onde Gisela se apresentou de caracóis, lábios pintados de vermelho e sapatos roubados à avó. Não ganhou e os miúdos da sua idade gozaram-na: cantava música de velhos.
    Na adolescência o fado começou a disputar atenção com a música eletrónica e, na aparelhagem, a voz de Amália foi substituída pelas batidas de DJs como Plastikman, Jeff Mills e Laurent Garnier. «Comecei a ter vergonha de cantar e reneguei o fado». Foi a inauguração da Adega Lusitana, uma casa de fados na sua Barcelos, que a fez regressar ao género. Ali cantou durante dois anos, altura em que se mudou para o Porto para estudar Design de Moda. Um encontro com o também fadista Hélder Moutinho acaba por trazê-la até Lisboa e ao Sr. Vinho, casa de fados de Maria da Fé.
    Todas as noites chorava, em casa, sozinha, longe dos seus. Encontrou sempre refúgio e determinação no fado. «Um cavalo bravo», descreve-a Hélder Moutinho. Já o realizador de cinema João Botelho garante que Gisela é a única mulher que conhece que «quando tira os sapatos fica mais alta».
    O primeiro trabalho, Gisela João, chegou em 2013 e em apenas duas semanas alcançou o primeiro lugar no Top de Vendas Nacional, tendo valido à fadista o Prémio Revelação Amália. Obsessiva, chama aos álbuns os seus filhos, mas a gravidez do seu mais novo, Nua, lançado em novembro de 2016, ultrapassou, em muito, os nove meses. Muitas noites sem dormir até encontrar o que queria dizer, mas sobretudo a libertar-se das expectativas alheias que lhe toldavam o raciocínio. Foi sozinha com os seus botões que descobriu que já tinha há muito a resposta para as suas dúvidas: ela própria. Nua.
    Passaram quatro anos desde a primeira vez que nos sentámos à conversa, à data na discoteca Lux, onde Gisela João dá liberdade ao corpo e onde deu também o seu primeiro grande concerto a solo. Ficou, nessa altura, a promessa de uma tarde a trocar receitas de bolos e pontos de bordado. Essa tarde acabou por nunca acontecer e o reencontro deu-se, não à beira do forno, mas nos bastidores do Coliseu de Lisboa, onde Gisela João, 33 anos, subirá pela segunda vez ao palco a 31 de março, no Porto, e a 7 de abril, em Lisboa. Tal como é. 

    Inicialmente esta entrevista esteve agendada para um outro dia, no qual entrevistei a bailarina e coreógrafa Anne Teresa de Keersmaeker, que já dançou ao som de um fado seu e de quem é amiga.
    A sério? Ela é uma grande inspiração para mim.
    E é apenas um dos grandes nomes que foram marcando o seu percurso desde muito cedo, e que incluem o fadista Helder Moutinho, o realizador de cinema João Botelho, o empresário Manuel Reis, o músico Nicolas Jaar e, mais recentemente, o fundador do Teatro Praga, André E. Teodósio.
    A maior parte são pessoas que fui conhecendo sem sequer saber quem eram, o que faziam ou que importância tinham. Gosto disto. Acredito que as pessoas valem por si e não por aquilo que fazem. Gosto de não ter essa interferência. E estas pessoas foram aparecendo na minha vida e foram-me acrescentando coisas. E não diretamente por me dizerem para fazer assim ou assado, mas pelo simples facto de poder conhecê-las e à sua essência e assim inspirar-me pelo percurso delas, pela forma como trabalham e como veem as coisas. E fazer isto sem perguntar nada, apenas observando e aprendendo. Gosto de criar relações com as pessoas e tenho aprendido sempre muito com aqueles que se cruzam comigo.
    Uma das conversas que mais regularmente se ouvia em relação a si, quando começou o seu percurso, era como podia estar rodeada por tantos profissionais de renome, que de alguma forma a apadrinharam, quando a maior parte das pessoas ainda nem sabia quem era?
    E continuam a não saber!
    Acha?
    Tenho a certeza. Nós estamos num meio, em Lisboa, onde tudo acontece. Vou beber um copo e encontro outro músico ou um jornalista... Mas isto é um circuito fechado que não representa nem em 10% daquilo que se passa no resto do país. Lembro-me que, quando vim de Barcelos para Lisboa, encontrei aqui coisas que já eram bastantes conhecidas mas que em Barcelos ninguém tinha sequer ouvido falar. Senti isto com muitas bandas. Uma das minha âncoras quando vou para palco é ter a consciência de que haverá, pelo menos, uma pessoa na plateia que nunca me ouviu e não me conhece. E é para essa pessoa que estou a cantar e que quero agarrar e quebrar.
    Não apenas por uma questão de visual, mas sobretudo pela postura e pela forma como interage com o público, deverá ser relativamente fácil para si contrariar posturas mais sisudas.
    Tento fazê-lo. Até porque - e sei que não parece nada, bem pelo contrário, mas sou mesmo muito tímida - quando sinto que as pessoas não estão tão recetivas e estão muito sérias, acabo por ficar com muitas vergonha e sentir-me a recolher. Começo a sentir uma enorme vergonha por estar em palco. Às vezes acontece-me mesmo estar em palco e pensar «o que é que eu estou aqui a fazer? Não quero estar aqui, sinto-me humilhada». Sou muito consciente - já me disseram que tem a ver com o facto de ser Escorpião -, e autocrítica. Para mim, trabalhar com música é a coisa mais séria de todas. E em palco estou exposta, é para mim que as pessoas todas estão a olhar.
    Se transpuser esse pensamento para a escala dos Coliseus…
    A escala dos Coliseus deixa-me mesmo muito nervosa. Tenho andado muito nervosa, nem consigo dormir. Saber que as pessoas, no meio desta crise toda, gastam dinheiro para comprar um bilhete para um concerto meu, dão-se a esse trabalho, faz com que sinta uma grande responsabilidade. Penso que tenho de chegar ali e dar o meu melhor para aquelas pessoas regressarem a casa bem dispostas e a sentirem que o mundo é delas.
    Regressando ao início da conversa. O que sente que a aproximou das pessoas de quem já falámos?
    Eu era uma miúda e não me aproximei de nenhuma dessas pessoas com qualquer intenção. E imagino que isso tenha influenciado. Por exemplo, hoje em dia, que já tenho dois discos e há mais gente que me conhece e me aborda na rua, passei a ter alguma dificuldade em confiar nas pessoas. Fico a pensar se estão a ser verdadeiros comigo ou a acharem que as posso fazer chegar a algum lado. Posto isto, acho que é legítimo que qualquer uma das pessoas que conheci possa sentir isto. Já aprendi que estamos constantemente a vermo-nos ao espelho e se ficamos desiludidos, muitas vezes, é porque pensámos no que faríamos sem olharmos para o outro. Adoro que me tratem de igual para igual e acho que essas pessoas sentiram isso da minha parte. Sou uma comunicadora, levo logo as pessoas para minha casa, mas às vezes sinto que posso estar a dar de mais. Antes não pensava nisto. Mas hoje em dia, como estou sempre a dizer às minhas amigas, gostava de ser mais reservada. De resto, continuo e quero continuar o que sempre fui. Se for preciso ir cozinhar ou tomar conta de crianças, vou.
    Regressar regularmente a Barcelos ajuda-a a manter os pés no chão?
    Ajuda muito! É muito fácil uma pessoa iludir-se. E se eu não me iludi mais foi por causa da família que tenho. Saio de Lisboa, deste mundo que temos aqui, vou a Barcelos e falo com os meus irmãos e com os meus pais, e vejo o que é a vida de quem não vive aqui neste mundinho de Lisboa. Isso faz-me ter sempre os pés assentes na terra. Isto é muito efémero. Vamos ver um concerto e ficamos excitados com as luzes, o som, aquilo tudo. E vamos para casa felizes. Mas agora imaginem: se sou eu que estou em palco todas as palmas são para mim, as pessoas querem tirar fotos comigo, o foco sou eu, e isso vicia. Só que, quando vou para casa, estou sozinha. Às vezes é uma solidão assustadora, enorme. Por isso adoro que venha uma amiga dormir a minha casa. Isto tudo sempre me impediu de me iludir. Às vezes a minha melhor amiga até me diz que gostava que eu usufruísse mais das coisas boas que me acontecem. Ela diz isto porque me vê em tanto sofrimento, porque estou sempre a correr a dizer que tenho de trabalhar e corresponder aquilo que esperam de mim.
     E as pessoas pensam que é só chegar ali e cantar.
    Pois. Acham que é uma sorte andar sempre a viajar. Lá vai ela para o aeroporto, dizem. Para mim isto é mesmo muito sério, dou tudo o que tenho - mas só pode ser assim. Não sei ser de outra forma. Gostava, mas não sei. Sou uma control freak, mas até sei de onde isso vem. Por exemplo, ainda agora estive em Nova Iorque para um concerto...
    A propósito do qual saiu uma crítica muito positiva no “New York Times”.
    Pois foi, car*! Sou de Barcelos e saí no “New York Times”! (risos) E, pelo que me disseram, o jornalista em questão raramente elogia.
    Mas disse que era uma control freak e que sabia de onde isso vinha.
    Sim. Como desde muito miúda tomei conta dos meus irmãos e tinha de ser responsável por todos, acho que a ideia de ter de saber sempre tudo ficou muito vincado na minha personalidade. Ando na estrada com os músicos e não descanso se eles não tiverem tudo aquilo de que precisam. Isto vem da infância.
    Ainda há pouco deixou escapar esta ideia, mas a questão da expectativa foi muito dura para si?
    Foi.
    De alguma forma, a Gisela João já era antes de ser.
    A dada altura, eu própria estava a criar expectativas sobre mim, que é a pior coisa que pode acontecer. É muito fácil perder o norte daquilo de que realmente gostamos. Quando saiu o primeiro disco as pessoas disseram maravilhas e depois criaram expectativas enormes. De tal forma que, quando foi para gravar o segundo disco, só ouvia dizer que tinha de ser ainda melhor. Isso criou-me uma ansiedade tão grande que só chorava. Bloqueei.
    Como ultrapassou esse bloqueio?
    Um dia estava em casa e lembro-me de me questionar se era isto que queria, este sofrimento, e não era. E disse a mim própria: «Gisela, o que é que fizeste no primeiro álbum?» E a resposta era simples: cantar músicas de que gostava e que me faziam sentir alguma coisa. Então era esse que tinha de ser o meu foco no segundo disco. Gosto muito de ditados, e acredito muito neles, porque acho que não vieram nem de bêbados nem de drogados, mas antes refletem conhecimento e vida. Nesta altura pensei muitas vezes num ditado em especifico quando estava a preparar-me para gravar o segundo disco: quem dá o que tem a mais não é obrigado. Acredito que as pessoas que dizem que gostam do meu trabalho, se sentirem que o que canto vem do coração, vão gostar também. De resto, no percurso de qualquer artista, há coisas de que gostamos mais e outras de que gostamos menos. Não é tudo perfeitinho, porque a própria vida não é perfeita. Por exemplo, não quero a minha voz tratada para ficar limpinha nas gravações.
     Para chegar a essa conclusão foi necessária uma travessia no deserto?
    Nem tanto. Sou muito medricas mas ao mesmo tempo ponho sempre a cabeça no cepo. E quando estou confortável e sei que fiz aquilo em que acredito... Atenção, não tenho sangue de barata e claro que me custa se oiço uma crítica mais violenta.
    Foi tudo isto que ditou que passassem três anos até que lançasse um novo álbum?
    O primeiro disco saiu em julho de 2013 e durante esse ano e o seguinte foi uma avalanche de trabalho. Não conseguia parar para trabalhar no disco seguinte. Não queria fazer só por fazer e decidimos ir fazendo, aos pouquinhos. Depois de tanto tempo a trabalhar, quando senti que finalmente estava pronto quis que saísse logo pois as pessoas não podiam esperar mais. Acabou por sair no dia da morte do Leonard Cohen portanto deixou de ser o dia em que saiu o meu segundo disco e passou a ser o dia em que o Cohen morreu. Mesmo assim tenho um público que é quase como se fosse minha família.
    Aliás, basta espreitar as suas redes sociais para ter essa noção.
    É verdade. [e saca do telemóvel para mostrar uma troca de mensagens entre fãs, que teve lugar no seu mural de Facebook, a propósito de uma fotografia com um gato. Logo depois conta a história de uma fã que atribui à música de Gisela João a ajuda para sair de uma depressão] Não tenho cem ou duzentos mil fãs, mas ainda no outro dia uma amiga fez um estudo e concluiu que o meu público é poderosíssimo, interage muito comigo e defende-me de unhas e dentes. São fãs verdadeiros.
    Daí o seu nome no Facebook ser “Gisela João a berdadeira”, numa clara homenagem ao norte do país.
    Isso! (risos) Adoro lidar com as pessoas. Por exemplo, no outro dia recebi uma carta de um senhor a agradecer-me porque tinha posto a mãe, de oitenta e tal anos, a cantarolar o dia todo. Se pudesse, se fosse rica, oferecia os bilhetes dos concertos e os CDs a toda a gente.
    O título do seu segundo álbum, Nua, já estava decidido desde o início?
    Sim! Depois de ter aquela conversa comigo própria. Não podia ser outra vez Gisela João e esta é outra forma de dizer que sou eu que estou ali. E estou ali nua e transparente. Quando canto é isto que sou, transparente. A cantar é quando as pessoas me conhecem tal como sou.
    E sente que, às vezes, as pessoas não acreditam que seja realmente assim, acham que é uma personagem?
    Sinto isso muitas vezes. Sobretudo quando saiu o meu primeiro disco. Era porque mostrava as pernas para parecer uma boazona, quando na verdade é só porque sou muito baixinha e não posso usar coisas compridas. Ou que usava sapatilhas em palco só para chocar. Ouvi essas coisas todas. Mas não são as sapatilhas que cantam, meus amigos, sou eu. Se uso sapatilhas é para ter mais conforto. Hoje em dia, nas redes sociais, toda a gente opina. Ouvi dizerem que a forma como eu falava era estudada. Não é. Mas também é para o lado que durmo melhor. No final, vou sempre bater na mesma tecla e acho que o vou fazer para o resto da vida: acredito piamente que, quando fazemos as coisas de coração, confortáveis e confiantes, as coisas funcionam e, no fim do dia, deitamos a cabeça na almofada descansados. Isso é muito importante. Se o meu discurso fosse pensado, se as sapatilhas e as pernas fossem para vender mais, aí sim, iria sofrer muito mais com essas críticas, porque me iriam tocar na ferida.
     O que mais confusão fez a muita gente terá sido o facto de a Gisela ter uma abordagem bastante tradicional ao fado, ter uma voz mais associada às vozes tradicionais do fado, mas o resto não bater certo com isto.
    Muita gente me dizia: «Tu não cantas fado tradicional, pois não?». Fico furiosa com isso. Mas deito-me todos os dias e pouso a cabeça na almofada muito tranquila comigo própria. Tenho um percurso de que gosto e do qual me orgulho. Experimento e hei de experimentar muita coisa, mas tenho de saber que isso vem com um preço a pagar. Ainda assim acho que nunca vou ser mainstream, pelo menos não com aquilo que faço. Se calhar posso ser noutras abordagens. Mas assim, com aquilo que faço, acho que não. Detesto rótulos, sinto que não me encaixo em nenhum e detesto que me tentem encaixar. Mas as pessoas não vão para o trabalho a ouvir o meu álbum. Preferem coisas mais gaiteiras.
    Curiosamente, a sua avó sempre lhe disse que não valia a pena desejar ser uma velha gaiteira porque gaiteira já o era agora.
    (risos) Mas vou ser uma velha gaiteira! Custa-me muito ver aquelas pessoas que estão sempre a olhar para os outros com um ar de snobeira, quando na verdade é inveja, porque elas querem ter a mesma liberdade daqueles que olham com um ar snob. Como aquelas pessoas que não dançam ou não riem por medo de parecerem maluquinhos. Ou gaiteiros. Essa castração é muito má. Até para os que estão à volta. Está alguém a dançar, feliz, consciente que paga as suas contas, e essas pessoas acabam por conseguir fazer o outro sentir-se mal só porque é livre. Sinto isto muitas vezes. Olham para mim como uma maluquinha, que fala muito e ri muito. «Olha as figuras a que ela se presta», dizem-me. E eu digo sempre: «Das coisas que têm de perceber sobre mim é que dificilmente conhecerão pessoa mais livre do que eu». Não há nada que tenha mais valor que a liberdade, que a nossa individualidade.
    Essa liberdade, no seu caso, revela-se muitas vezes na pista do Lux, onde, como apaixonada por música eletrónica, gosta de dançar pela noite fora e onde deu o seu primeiro concerto a solo. Decidir dar o primeiro concerto na maior e mais importante discoteca do país teve também a ver com esse desejo de liberdade?
    Não quero saber o que pensam, pelo menos não neste sentido. Curiosamente, hoje em dia, vejo pessoas que olhavam para mim de soslaio e que entretanto deram o braço a torcer e me vão ver a esses lugares menos óbvios. Para mim, o Lux fazia todo o sentido, porque é outro lado de mim. Desde miúda que estava na noite com amigos de Barcelos, onde houve uma discoteca chamada Vaticano, e muitos dos DJs que lá iam também passavam pelo Indústria, no Porto, e pelo Lux, em Lisboa. E lembro-me de brincar que um dia ainda ia cantar no Lux. Quando surgiu a oportunidade, como podia dizer que não? Esta sou eu, é a minha postura na vida. E não sei ser de outra forma.  "
    in" jornal "Sol"